Cultura

Mariana Enriquez transforma a tragédia política argentina em contos de terror

Mariana Enriquez transforma a tragédia política argentina em contos de terror

Nos contos de As coisas que perdemos no fogo, a escritora Mariana Enriquez recorre ao sobrenatural para trabalhar os medos argentinos

RUAN DE SOUSA GABRIEL
14/07/2017 - 08h00 - Atualizado 14/07/2017 10h45
A escritora argentina Mariana Enriquez em Veneza,na Itália (Foto: Awakening/Getty Images)
GÓTICA A escritora argentina Mariana Enriquez em Veneza, na Itália. Ao lado, a capa do livro de contos As coisas que perdemos no fogo (Foto: Divulgação )

O que é um fantasma? Na acepção da escritora argentina Mariana Enriquez, fantasmas não são só aquelas almas atormentadas que se cobrem com um lençol branco e vagam por mansões em ruínas a assustar os vivos. “Um fantasma é algo ou alguém cujo trauma se repete sempre, de modo a aprisioná-lo. Os traumas históricos – e na Argentina há muitos deles – também são assim”, afirmou em entrevista a ÉPOCA. Mariana escreve histórias de terror. Na superfície, seus contos são histórias assustadoras, cheias de suspense e irrupções do sobrenatural. Mas, por baixo dos clichês do gênero, escondem-se histórias ainda mais terríveis, sobre a tragédia política argentina e o medo atávico inoculado no país pela ditadura militar (1976-1983). Os 12 contos de As coisas que perdemos no fogo (Intrínseca, 192 páginas, R$ 39,90), recém-publicado no Brasil, estão cheios dessas histórias subterrâneas. “A casa de Adela”, sobre uma menina sem braço que desaparece numa casa decrépita, alude à política da ditadura argentina de roubar os filhos dos inimigos do regime e entregá-los a famílias aliadas. Em “Teia de aranha”, o sumiço de um homem na calada da noite, numa região onde uma ponte foi construída sobre ossadas humanas, remete aos milhares de desaparecidos políticos cujos corpos jamais foram resgatados. “Eu queria escrever contos de terror que fossem muito argentinos e latino-americanos, capazes de abordar a política e os medos das nossas sociedades – mas com um pé no sobrenatural”, diz.

>> Discípulo de Borges, Alberto Manguel exalta a curiosidade em novo livro

>> Como a Igreja Católica ajudou a consolidar o fascismo

Mariana tem 43 anos e vem recorrendo à literatura de gênero para refletir sobre os medos argentinos já há algum tempo. Aos 21 anos, ela publicou o romance Bajar es lo peor (Cair é o pior, em tradução literal), que a transformou numa celebridade literária, dessas que frequentam programas de televisão. Bajar es lo peor não tinha elementos sobrenaturais – o terror do livro se baseava no desespero da geração que chegava à vida adulta no início dos anos 1990, numa Argentina democrática, mas com a economia arruinada. É um romance cheio de rock’n’roll, álcool, drogas e excessos – mas sem muita esperança. O medo das crises econômicas, o fantasma da pobreza e a sucessão de promessas frustradas que fazem a história argentina (e latino-americana) são temas que Mariana costuma retomar na literatura. Às vezes, a realidade é tão irracional e assustadora que dispensa as tintas sobrenaturais. “Interessa-me trabalhar com a constante incerteza política e econômica que nos ataca, essa sensação de que a realidade pode se romper a qualquer momento”, diz Mariana. “A emoção que sentimos quando a violência ou o sobrenatural irrompem num conto de terror é parecida com essa incerteza perpétua que vivemos em nossos países, onde nunca sabemos o que vai acontecer e só os muito abonados podem fazer planos.”

>> Bibliotecário debuta com romance gótico Loney e ganha elogios de Stephen King

Dez anos após o estouro de Bajar es lo peor, Mariana voltou à literatura e passou a escrever histórias de terror para esconjurar os fantasmas argentinos. Ela ganhou da imprensa o título de Princesa do Terror. Seus contos foram rotulados como “góticos”, um gênero que se desenvolveu na Europa do século XVIII e opunha as luzes da razão a castelos sombrios e uma natureza selvagem, símbolos dos medos e perturbações dos personagens. Uma vertente da literatura gótica se desenvolveu no sul dos Estados Unidos no século XX, o Southern Gothic. Nos romances de escritores como Flannery O’Connor e William Faulkner, o calor inclemente e os latifúndios arruinados da região são metáforas da decadência e das perversões da aristocracia agrária. Bem mais ao sul, nos arredores da Bacia do Rio da Prata, desenvolveu-se também uma literatura com as sombras do gótico. O escritor uruguaio Horacio Quiroga (1879-1937) escolheu o nordeste da Argentina, região de clima quente, úmido e propenso a inundações, como cenário de suas histórias macabras. Outros autores, como o também uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994), o argentino Ernesto Sabato (1911-2011) e o chileno José Donoso (1924-1996), preferiram os casarões coloniais decadentes da oligarquia sul-americana. Os contos góticos de Mariana passeiam pela paisagem tropical do norte argentino e pelas periferias urbanas. Em “O menino sujo”, o cenário é uma mansão abandonada em Constitución, antigo bairro grã-fino de Buenos Aires tomado pelo crime, pela pobreza e – segundo a ficção de Mariana – por rituais satânicos e infanticídios.

>> Inglesa publica livro sobre como domou o luto treinando um falcão

>> Preocupado com Trump, Leonardo Padura lança romances policiais no Brasil

Uma das maiores influências literárias de Mariana é o americano Stephen King, o mestre do terror, que ensinou ser possível abordar temas sociais densos por meio dos clichês de um gênero literário para o qual muitos críticos torcem o nariz. “King é um escritor realista que trabalha os medos americanos de modo inteligente e contínuo”, diz Mariana. “Há ocasiões em que a literatura de terror pode refletir muito melhor sobre a sociedade do que aquela literatura considerada mais respeitável, justamente por trabalhar com arquétipos e tratar dos nossos medos mais primários.” Um dos medos primordiais da Argentina (e também da América Latina) é o medo da violência – das ditaduras, das polícias ou dos criminosos. O conto “Pablito clavó un clavito: uma evocação do Baixinho Orelhudo” recupera a história do primeiro serial killer argentino, o Petiso Orejudo (Baixinho Orelhudo), um adolescente que matava e torturava bebês e crianças na Buenos Aires europeizada do início do século XX. Segundo o narrador do conto, o caso do Petiso Orejudo “parecia uma espécie de metáfora, o lado obscuro da orgulhosa Argentina do Centenário, um presságio do mal por vir, um anúncio de que havia muito mais que palácios e fazendas no país”. Parece um resumo do projeto literário de Mariana, que almeja apontar para esse “muito mais”, onde se escondem os fantasmas.

>> A mistura do radicalismo político e literatura fantástica de China Miéville

E o Brasil? O passado e o presente brasileiros também podem render enredos de terror? Mariana afirma que sim. “Lembro que o impeachment de Dilma Rousseff foi aterrorizante em todos os sentidos: o deputado (Jair Bolsonaro, do PSC) que dedicou o voto aos torturadores da presidente foi a encarnação da maldade”, diz. “E, claro, a crise pode ser o pano de fundo de um conto de terror, porque as crises sempre são momentos extremos, que podem trazer o pior ou o melhor das pessoas. E o sobrenome do atual presidente é revelador.”








especiais