Cultura

Milton Hatoum, o arquiteto do tempo

Milton Hatoum, o arquiteto do tempo

Depois de nove anos em silêncio, Milton Hatoum publica A noite da espera, o primeiro romance de uma trilogia que se passa em Brasília, São Paulo e Paris durante a ditadura

RUAN DE SOUSA GABRIEL
21/10/2017 - 10h01 - Atualizado 25/10/2017 14h00
Milton Hatoum,escritor (Foto:  Victor Affaro/ÉPOCA)

O relógio decorado com o escudo do Flamengo marca 6 horas e 40 minutos. O ponteiro dos segundos descansa próximo ao 10. Mas passa das 3 horas da tarde e faz um calor seco em São Paulo. O escritor Milton Hatoum, o flamenguista dono do relógio preguiçoso, sentado a sua mesa de trabalho, descruza os braços e entrelaça os dedos das mãos num suspiro. “A passagem do tempo é a grande aliada do escritor. É sobre isso que ele escreve”, diz Hatoum, um senhor de 65 anos, bronzeado e de cachos muito brancos. O tempo parece passar mais lento naquele escritório. Um punhado de livros divide o espaço com poucos móveis: duas estantes, algumas cadeiras. Uma edição de capa vermelha de A educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, repousa sobre uma das duas mesas de madeira. O ruído bruto da cidade e a feiura da desengonçada arquitetura paulistana são abafados por uma muralha de plantas na varanda: costela-de-adão, pacová, uma romãzeira. Hatoum fala devagar, como quem é interrompido pelos próprios pensamentos. A voz é firme e o discurso pontuado com silêncios e sorrisos tímidos. Ele dá umas poucas baforadas num infindável cigarro artesanal antes de abandoná-lo no cinzeiro. “Eu parei de fumar, mas de vez em quando dou uma pitada.” Hatoum sabe usar o tempo a seu favor. Em silêncio desde Órfãos do Eldorado, publicado em 2009, ele tem um novo romance chegando às livrarias: A noite da espera (Companhia das Letras, 240 páginas, R$ 39,90), o primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio, uma história que rondava a cabeça do escritor havia um bom tempo.
 

FAROESTE MANAUARA Milton Hatoum aos 15 anos, em março de 1968, recém- chegado a Brasília. Com dois amigos e a bênção  dos pais, ele se mandou de Manaus e foi para a capital (Foto: Arquivo CB/DAPress)

Hatoum escreveu a primeira versão dessa história no começo dos anos 1980, quando morava em Madri, na Espanha. “Era uma espécie de autobiografia precoce e inútil”, afirma. Aquele romance frustrado era quase uma “crônica jornalística”: narrava um pouco da juventude dele em Brasília na época mais sombria da ditadura militar. Hatoum nasceu em Manaus, em 1952. Em 1968, aos 15 anos, com dois amigos e a bênção dos pais, se mandou para a capital, onde estudou no colégio de aplicação da Universidade de Brasília (UnB). Lá, ele se envolveu com o movimento estudantil e foi preso numa passeata em 1969. Tudo isso – mais as amizades, a boemia e a passagem de Hatoum pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – estava naquele manuscrito, que acabou destruído pelo fogo. Hatoum resolveu queimá-lo para afastar a tentação de publicá-­lo por mera vaidade. “Eu narrava uma experiência recente, não tinha o afastamento que a escrita pede. Para escrever, você tem de deixar o tempo passar”, diz.

>> Novo livro de Lucrecia Zappi reproduz o ruído do bairro onde ela cresceu

>> Como o escritor pernambucano José Luiz Passos pensa a República

Meu pai está na Novacap, o escritório de engenharia e arquitetura; disse que vai comprar uma Rural-Willys, não pode viver sem carro em Brasília, e eu não queria viver aqui. Os bairros e avenidas têm siglas com letras e números, me perdi no primeiro passeio pelas superquadras da Asa Sul, parecia que estava no mesmo lugar, olhando os mesmos edifícios. São bonitos, cercados por um gramado que cresce no barro; essa beleza repetida também me confundiu. Tudo confunde, nada lembra lugar algum. O céu é mais baixo e luminoso, e as pessoas sumiram da cidade.
Trecho do livro A noite da espera

O tempo passou e Hatoum se tornou um dos autores mais destacados da literatura brasileira: agrada ao público, à crítica e vende bem. A noite da espera chega às livrarias com uma tiragem de 20 mil exemplares – a média de um autor brasileiro é 3 mil. Três de seus quatro romances anteriores – Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte – venceram o Jabuti de Melhor Romance, o mais prestigioso prêmio das letras brasileiras. Órfãos do Eldorado conquistou um honroso segundo lugar. Hatoum arrebata os leitores e a crítica desde sua estreia literária, em 1989, com Relato de um certo Oriente. O romance acompanha uma mulher que retorna a Manaus com o desejo de encontrar Emilie, a matriarca de uma família libanesa há muito estabelecida na Amazônia. Cada capítulo tem um narrador diferente e todos eles se debruçam sobre o passado, formando um coro que remete à tradição oral dos imigrantes árabes. Hatoum conquistou elogios de críticos afamados, como Davi Arrigucci Jr. e Leyla Perrone-Moisés. “Não se resiste ao fascínio dessa prosa evocativa, traçada com raro senso plástico e pendor lírico”, escreveu Arrigucci Jr. na contracapa de Relato de um certo Oriente. Como um Raduan Nassar do Norte, Hatoum reflete sobre a opressão familiar, a imigração libanesa e a memória por meio de uma prosa límpida e ritmada, que corre caudalosa e triste, como um rio amazônico.

>> Noemi Jaffe, a arqueóloga de palavras

>> Maria Valéria Rezende, a escritora que traz o sertão de volta à literatura

Em 2000, Hatoum publicou Dois irmãos, seu livro mais celebrado, uma história de rivalidade fraterna com uma piscadela para o escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880). Hatoum transplanta a mito bíblico de Esaú e Jacó para Manaus. O drama dos gêmeos Omar e Yaqub é narrado por Nael, filho de um dos irmãos (nunca descobrimos qual) com Domingas, a empregada da família, inspirada numa personagem de Um coração simples, uma novela de Flaubert. Dois irmãos vendeu mais de 200 mil exemplares, foi traduzido para oito idiomas e virou uma graphic novela assinada por Fábio Moon e Gabriel Bá. No início deste ano, a Rede Globo exibiu uma adaptação do livro dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Cauã Reymond interpretava os gêmeos Omar e Yaqub. Tanto Dois irmãos quanto Cinzas do Norte aludem à ditadura militar: num deles, um poeta é morto pela repressão; no outro, assistimos à modernização de Manaus, capitaneada com punhos de aço pelos generais que mandavam no país. Depois de publicar Cinzas do Norte, Hatoum voltou a pensar naquela história que virou cinza na década de 1980. “Percebi que podia escrever sobre uma amizade que se passava na ditadura militar, um romance de formação sobre aquela época”, diz Hatoum, que torce um clipe de papel com os dedos enquanto fala.

>> Reedições celebram o centenário de Campos de Carvalho, o assassino da lógica

Ele começou a rascunhar a história do triângulo amoroso entre uma franco-brasileira, um cubano e um brasileiro exilados em Paris na década de 1970. Luiz Schwarcz, editor de Hatoum e presidente do Grupo Companhia das Letras, leu o manuscrito e ficou curioso sobre o passado da ponta brasileira do triângulo amoroso: Martim, um paulista que foi para Brasília com o pai e nunca mais viu a mãe. “Martim tinha uma personalidade que pedia para ser expandida. O Milton tinha deixado uns silêncios ali, que podiam ser trabalhados”, afirma Schwarcz. “O Luiz tinha razão”, diz Hatoum. “E eu parei para escrever a história do Martim. Demorou cinco anos.”

>> Legião estrangeira divulga a obra de Clarice Lispector mundo afora

>> Figura do “leitor adúltero” protagoniza livro do marido de Elena Ferrante

Assim nasceu a trilogia O lugar mais sombrio, filha bastarda daquele manuscrito madrilenho. A noite da espera é um conjunto de anotações escritas por Martim em dois tempos: na temporada brasiliense de 1968 a 1972 e no exílio em Paris, em 1978. Ele se mudou para Brasília com o pai, um engenheiro caladão, depois que a mãe, uma professora de francês, anunciou estar apaixonada por um pintor e que iria morar com ele num sítio no interior paulista. Em Brasília, Martim se perde pelas superquadras de Lúcio Costa, rema no Lago Paranoá, arruma emprego numa livraria subversiva e vai estudar arquitetura na UnB. Ele se envolve com um grupo de estudantes meio engajados que fazem teatro amador. Todos eles meio perdidos, tentando se encontrar na política, na arte, nos estudos ou na paisagem do Cerrado. Dinah, a namorada de Martim, é a melhor atriz do grupo e a mais politizada. Fabius e Vana estudam Direito. Lázaro é um moço da periferia e cursa letras. Nortista estuda arquitetura e trafica doce de cupuaçu e maconha. Ângela é filha de senador e esotérica, a mais perdida da tribo. Eles editam uma revista literária, a Tribo. Aos poucos, essa militância política e cultural entra na mira da repressão. Assim como Martim, que prefere a poesia à política, Hatoum nunca foi um militante dos mais aguerridos. “A minha vida está um pouco implicada na história dessa tribo”, diz. “Eu sou um pouco o Nortista, um pouco a Ângela. Cada um dos meus fantasmas está ali.”

>> Biografia romanceada de Floriano Peixoto reflete sobre dilemas do Brasil atual

Sentei numa poltrona do saguão, abri o livro de Flaubert e comecei a ler a passagem em que Frédéric e Mme. Arnoux se encontrariam às três da tarde num apartamento de Paris, o primeiro rendez-vous amoroso, verdadeiro e clandestino. Frédéric sonhava com esse encontro, e eu com minha mãe; eram três horas da tarde no romance de Flaubert e no hotel em Goiânia, Mme. Arnoux e minha mãe não apareciam. Pulava frases do romance, voltava ao início do parágrafo, minha vista turva só enxergava o relógio redondo na parede, o ponteiro preto e fino dos segundos movia-se com lentidão no círculo branco, minha ânsia crescia e retardava os segundos e minutos, melhor esquecer o relógio, fechar o livro e sair do hotel.
Trecho do livro A noite da espera

A noite da espera não é apenas mais um romance sobre a ditadura. É um romance de formação. Uma história sobre a passagem da ingenuidade à vida adulta, da juventude ao desencanto. Martim, como bom rapaz desencantado, busca refúgio nos livros e tenta dar algum sentido a sua vida ao ler sobre outros personagens meio perdidos. Numa das cenas mais bonitas do romance, ele lê Flaubert, o escritor francês que Hatoum conheceu ainda mocinho, em Manaus. Enquanto espera a mãe num hotel em Goiânia, Martim lê o capítulo de Educação sentimental, em que o jovem Frédéric aguarda um encontro amoroso com Madame Arnoux, uma mulher mais velha e casada. São 3 horas da tarde em Goiâ­nia e no romance parisiense. Nem a mãe, nem Madame Arnoux aparecem. Os tempos da vida e da literatura se cruzam. O desencanto de Frédéric é o desencanto de Martim.

As homenagens de Hatoum a Flaubert não se limitam a referências em Dois irmãos e A noite da espera – ele já traduziu contos do francês. Hatoum confessa que Flaubert influenciou suas ideias sobre literatura e seu método de trabalho. Flaubert consagrou o “narrador invisível”, aquele que não dá palpites na história nem puxa papo com o leitor. Enquanto fala, Hatoum se lembra de uns versos do argentino Jorge Luis Borges e declama – em espanhol: Que Deus por trás Deus a trama começa/de poeira e tempo e sonho e agonias? “Esse é o narrador flaubertiano, esse Deus que trama vida e morte”, diz. Flaubert era incansável na busca da “palavra precisa” (le mot juste, em francês). Ele era um revisor diligente, cortava longos trechos e demorava dias para escrever uma única página.

>> Inéditas em livro, crônicas apresentam faceta política de Rubem Braga

>> Multiplataforma, Victor Heringer pediu ajuda na rede para escrever seu novo livro

ABAIXO A DITADURA! Manifestação em favor da anistia ampla, geral  e irrestrita em Brasília, nos anos 1970. Milton Hatoum foi preso num protesto contra a ditatura em 1969 (Foto: Thinkstock/Getty Images)

Hatoum não é diferente. Esse perfeccionismo explica por que os intervalos entre seus livros são tão longos, como se o próprio tempo fosse seu editor. Ele escreve à mão. Depois digita os manuscritos. Revisa e faz cortes. Reescreve. Em seu escritório, há pilhas de manuscritos abandonados. Nos anos 1990, sempre surgia uma notícia nos jornais sobre o antecipado segundo romance de Hatoum: Um rio entre dois mundos, um calhamaço de mais 600 páginas sobre os conflitos de um pintor com os pais que nunca veio a lume. Em cima da mesa, descansam duas provas de A noite da espera, uma delas cheia de post-its azuis, amarelos e cor-de-rosa. O novo romance teve 12 versões que só Hatoum leu. Doze. A leitura dos editores resultou em outras quatro. O formação arquitetônica ajuda quando Hatoum está perdido na escrita dos romances. “A arquitetura nunca me abandonou”, diz. “Eu faço gráficos e desenhos para não me perder. Traço linhas temporais.” Em A noite da espera, Hatoum faz um trabalho primoroso com a arquitetura do tempo narrativo. No começo, as entradas do diário de Martim são espaçadas por semanas ou meses. A lentidão da narrativa ajuda a criar a atmosfera melancólica que envolve o adolescente paulista na solidão do Planalto Central, longe da mãe. À medida que o livro e a violência do regime avançam, as entradas do diário ficam mais frequentes – três ou quatro num único dia. O texto fica mais fragmentado e corrido, como se narrador e leitor perdessem o fôlego – ou fugissem de soldados da ditadura e de memórias que ameaçam sufocá-los.

>> Oswald de Andrade e um ciclone na São Paulo onde caía neve

>> Luiz Lopes Coelho, o escritor boêmio que criou um detetive bossa-nova

Hatoum promete lançar o segundo volume da trilogia no ano que vem e o terceiro (aquele que já foi primeiro) em 2019. “É chato ficar prometendo. Eu dava prazos aos editores e não conseguia cumprir. Isso durou anos, cara”, diz. “Os editores me cobravam numa boa. O Luiz Schwarcz me aguenta há 30 anos, a minha chatice, os adiamentos, as reescritas...” Schwarcz responde com paciência e bom humor. “Cada escritor tem seu jeito, e o Milton é assim”, afirma. “Não há editor que tenha força para impor um ritmo que não é o do escritor e ainda ter um bom resultado.” O próprio Hatoum faz troça do tempo que demora para botar o ponto final nos livros. “Quando comecei este livro, eu ainda tinha um pouco de cabelo preto. A minha mulher disse: ‘Milton, você envelheceu! Acaba logo esse livro!’. Ninguém aguentava mais”, diz Hatoum, aliviado. O relógio flamenguista ainda marca 6h40, mas já são quase 5 horas da tarde. O nosso tempo tinha acabado.

A noite da espera (Foto: Divulgação )







especiais