Cultura

Dieta, invasão brasuca em Portugal, a beleza da palavra “borogodó”: uma conversa com Valter Hugo Mãe

Dieta, invasão brasuca em Portugal, a beleza da palavra “borogodó”: uma conversa com Valter Hugo Mãe

O escritor não abandona dieta em restaurante português e conta de seu romance brasileiro

RUAN DE SOUSA GABRIEL
05/07/2018 - 14h01 - Atualizado 05/07/2018 14h01
Em São Paulo, Valter Hugo Mãe acha que a crise política arrasou o entusiasmo brasileiro com a Copa (Foto: MARCELO SARAIVA/AGÊNCIA O GLOBO)

“Esta é uma casa portuguesa?!” A pergunta do escritor luso Valter Hugo Mãe veio junto com a exclamação de quem já descobriu a resposta. Conversávamos havia 20 minutos numa mesa discreta no Tasca da Esquina, no Jardim Paulista, bairro nobre de São Paulo, numa quinta-feira à tarde, mas Mãe só percebeu que estava num restaurante português quando passou a examinar o cardápio — a “ementa”, como se diz em lusitano. “Agora que estou a ver: muito bacalhau, muita sardinha... Vou ver se peço algo mais simples, estou fazendo uma dieta”, explicou. Mãe padece de enxaquecas e eliminou alimentos que provocam dor de cabeça: queijo, chocolate, açúcares e gorduras, cebola e frutas cítricas, como abacaxi e laranja. Maçã pode. “Eu vou a catar maçãs pela rua. Eu vejo uma frutaria e compro uma maçã para mais tarde. Maçã faz bem ao fígado e não engorda. Ela é toda benigna.”

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Mãe começou o regime há um mês e perdeu quase 5 quilos. Ele tem 46 anos e 1,74 metro de altura. Aos 30 anos, pesava 50 quilos e se surpreendeu ao descobrir, recentemente, que estava com 91! — ele supunha pesar, no máximo, 78 quilos. “Ainda quero emagrecer mais uns 8 quilos, para ficar bem elegante.” A elegância de Mãe é meio hipster: óculos de aros grossos, uma cerimoniosa barba quase grisalha, camisa preta de mangas curtas estampada com peixes e ondas em vermelho e branco. Os gestos são comedidos. Ele mantém os cotovelos sobre a mesa e as mãos enlaçadas. A risada é discreta — um “hehehe”, não um “kkkk”. Ele não mexe o corpo ou revela os dentes ao rir. Talvez por efeito do vocabulário e da sintaxe lusitanos, Mãe parece falar sempre em versos.

“Eu queria algo que fosse meio dieta. O que podia ser?” O garçom ofereceu o contrafilé ao molho da casa ou algum prato executivo, como arroz com polvo e camarão ou cogumelos gratinados com queijo. Mãe pediu os cogumelos — mas sem queijo, só com azeite e um pouquinho de sal — e uma porção de arroz branco para acompanhar. “Tem água de coco?” Não tinha. “Então, água. Sem gás e sem gelo.” Mãe não bebe álcool — nem café. Não gosta. “Fui muito pressionado a beber, porque tive uma vida muito boêmia. Ainda tenho. Quando estou em casa, há umas horas da noite em que vou ao café. Mas bebo água. Todos os meus amigos vão apodrecendo lentamente e eu fico na água, sempre sóbrio. É ótimo, porque as histórias começam à 1 da manhã — e eu lembro de tudo”, disse. “Eu convivo muito com gente que bebe francamente e fuma, mas não suporto nem fumar nem beber, nunca considerei prazeroso. Se eu tomasse um cálice de vinho do Porto, estaria com uma enxaqueca em cinco minutos.”

Valter Hugo Mãe começou um regime há um mês e, dos 13 quilos almejados, já perdeu quase 5. No almoço com ÉPOCA em um restaurante de São Paulo, comeu cogumelos com azeite e sal e uma porção de arroz branco (Foto: MARCELO SARAIVA/AGÊNCIA O GLOBO)
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Mãe prometeu seu romance brasileiro, ambientado no Norte, para o final de 2019. “A menos que eu entre em pânico”, disse

Mãe passou quase todo o mês de junho no Brasil. Foi a Belém, no Pará, e se embrenhou na selva amazônica. Interrompeu a excursão para dar um pulinho rápido a Lisboa, onde assistiu ao jogo entre as seleções portuguesa e espanhola na Copa do Mundo, que terminou num honroso empate: três gols espanhóis e três gols de Cristiano Ronaldo. De volta ao Brasil, participou do Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, em Minas Gerais. Mãe se hospedou na suíte presidencial do faustoso Grande Hotel de Araxá. A dieta rigorosa permitiu que se deliciasse com o pão de queijo mineiro — mas com moderação. “Admito que comi uns dois pães de queijo no café da manhã do hotel. Só a dieta me impediu de comer todos (risos)”, confessou. “O pão de queijo em Minas Gerais é perfeito: tostado, estaladiço, leve, o queijo bem sutil lá dentro. A gente fica com a impressão que não vai engordar!”

O Grande Hotel de Araxá, inaugurado em 1944 com a presença do ditador Getulio Vargas, tem jardins desenhados pelo paisagista Roberto Burle Marx e, dizem, fantasmas. “Eu só me dei conta que estava escutando os pretensos fantasmas na segunda noite. Na primeira, eu estava convencido de que os vizinhos de cima eram muito indelicados e ficavam arrastando os móveis”, contou Mãe, tão calmo que o ouvinte ficou na dúvida se ele falava sério ou não. Na manhã seguinte, passeando pelos jardins, Mãe descobriu que não havia andar de cima ou vizinhos. “Na segunda noite, voltei a ouvir os móveis se arrastando, e os funcionários me disseram que ouve-se o arrastar de móveis em qualquer ponto do hotel. Falaram de um menino que fica aninhado nos cantos. Não tive a sorte de vê-lo. Seria valioso ter uma prova franca de que há alguma transcendência.” A conversa enveredou pela metafísica — Mãe não sabe se acredita ou não em Deus —, mas foi interrompida pela chegada da comida. “Isto será abacate?”, perguntou, remexendo seus cogumelos. “Abacate pode.”

Mãe afirmou estar convencido de que Portugal vai ganhar a Copa do Mundo na Rússia. “Ou seja: Cristiano Ronaldo vai ganhar”, riu. Mas confessou não ter paciência para assistir ao jogos. “Eu gosto que a minha quinta ganhe, mas basta saber o resultado. Não tenho saco para ficar ali hora e meia, duas horas, à espera de saber como acaba. É como um livro que a gente só lê para saber se a donzela vai casar. Não leio livros assim.” Mãe veio ao Brasil durante a Copa de 2014, mas lembrou que já estava de volta a Portugal no dia do 7 a 1. “Estou achando que o povo brasileiro está desmotivado com esta Copa. É uma Copa blasé, não tem bandeira, não tem fanático na rua”, disse. “Em 2014 era uma loucura, um Carnaval, uns nervos, uma irritação! Agora estou achando tudo muito calmo. Parece que as pessoas estão tentando controlar a emoção para não partir o coração outra vez.” Mãe desconfiou de que o drama político brasileiro respinga no futebol.

Nos últimos anos, Portugal e Brasil seguiram caminhos divergentes. No início da década, sob o governo de centro-esquerda de Dilma Rousseff, o Brasil crescia, enquanto Portugal afundava na crise do euro e padecia sob um draconiano pacote de austeridade tocado pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita. “O governo de Passos Coelho foi o mais cretino, o mais obsceno e empobrecedor que Portugal conheceu desde o fim do fascismo. Era um governo que voluntariamente estava massacrando o povo, criando desemprego e exportando pessoas, fez emigrar a juventude qualificada”, protestou Mãe.

Ele costuma desbravar sebos brasileiros atrás de preciosidades da terrinha. “Muito mais barato”

À medida que a década avançou, os dois países trocaram de papel no drama. O Brasil amarga uma crise político-econômica grave e vive sob a receita da austeridade para sanar os males nas contas públicas. Em Portugal, o governo de Passos Coelho foi substituído por uma coalização de esquerda e tem conseguido resultados auspiciosos na economia. Lisboa é uma das capitais europeias que mais atraem turistas e foi invadida por brasileiros endinheirados. “Quando a gente vai a qualquer lugar mais elitista, vê que metade dos clientes são brasileiros. Eu diria até que é a primeira vez que Portugal tem grã-fino puro, aquele rico que tem jato privado e se hospeda em hotel cinco estrelas. Essa excentricidade, esse tipo de riqueza ilimitada, não existia em Portugal.”

Mãe contou que os ricaços brasileiros andam comprando palácios antigos e casarões históricos em Portugal. Ele, quando vem ao Brasil, também gasta dinheiro com velharias — livros antigos que garimpa em sebos paulistanos. Ele prefere os sebos pequenos, onde encontra raridades, primeiras edições que custariam fortunas em Lisboa, a preço de jornal. “Ao longo das minhas vindas ao Brasil, fiz uma boa biblioteca de primeiras edições de portugueses, como Vergílio Ferreira e Herberto Helder, que são muito caros lá. Aqui, eu consegui comprar uns seis ou sete livros de Helder, daqueles bem valiosos, e nunca paguei mais de R$ 20.” Desta vez, ele desembolsou R$ 40 numa primeira edição do poeta surrealista Mário Cesariny. Ele estimou que, em Portugal, o mesmo livro não sairia por menos de € 150 (R$ 675). Mãe também aproveitou para comprar o livro Brazuca negão e sebento, do filósofo francês Jean-Christophe Goddard, indicado pelo escritor carioca Jorge Viveiros de Castro. “O título é bem abusado e provocador, me chamou a atenção”, confessou. “A edição é muito bonita. O livro problematiza a identidade brasileira, essa mesclagem, esse vira-latismo de que muito se fala.”

O garçom interrompeu a conversa para retirar os pratos e anotar os pedidos de sobremesa quando Mãe falava de seu carinho por palavras brasileiras como “borogodó” e “xodó”. “Você sabe de alguma sobremesa sem açúcar?” “Fruta só.” Mãe perguntou se havia kiwi. “Abacaxi ou manga.” Abacaxi não podia. Liberto dos talheres e dos cogumelos, Mãe fez gestos mais amplos e seus olhos se acenderam quando o assunto foi a própria linguagem. Sem segurar o riso, confessou que está escrevendo um romance ambientado no Brasil. Mãe é autor de sete romances e um livro infantil, O Paraíso são os outros, que acaba de ganhar nova edição brasileira, com ilustrações do próprio Mãe, pela Biblioteca Azul. Os cinco primeiros romances são portugueses. A desumanização, o penúltimo, se passa numa Islândia ancestral. O mais recente, Homens imprudentemente poéticos, é ambientado num Japão quase mitológico. Havia anos, Mãe prometia um romance brasileiro, que talvez venha a lume no final de 2019. “A menos que eu entre em pânico”, alertou. “É bem possível que eu amarele no meio do percurso. No meio dos livros, tenho a tentação de desistir. Eles são tão violentos que eu sempre penso: ‘Por que estou sofrendo quando eu posso só desistir e fazer outra coisa?’. Mas eu quero muito...” O garçom interrompeu com creme de arroz-doce — cortesia da casa. Mãe não deu muitos detalhes sobre o livro brasileiro, mas adianta que o cenário será “eventualmente o Norte, um lugar bem aldeia (risos)”. “Eu adoraria ter uma casa em São Paulo, mas não sou um escritor do urbano. Estou escrevendo sobre uma comunidade mínima, prestando atenção a árvore e arara e jacaré. Não será sobre o Brasil real, mas sobre um Brasil imaginário, sentimental e afetivo. Espero que as pessoas não fiquem zangadas comigo.”

Mãe não provou o creme de arroz-doce, mas disse que gostou da comida. “O cogumelo estava absolutamente maravilhoso. Se eles colocassem queijo, destruiriam o prato.” Esta é com certeza uma casa portuguesa? “Tem coisas que são bem portuguesas, mas é uma cozinha de autor, não são coisas que um cidadão português comum cozinha em sua casa. Os ingredientes são os mesmos, os alimentos são os mesmos, mas aqui tem um toque mais criativo. Mas foi excelente. O arroz estava absolutamente perfeito.” Algumas fatias de manga continuaram no prato.








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