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Vladímir Sorókin: "O governo russo vive uma histeria neoimperialista"

Vladímir Sorókin: "O governo russo vive uma histeria neoimperialista"

No país do presidente Vladimir Putin, um autor escreve sobre o poder da arte para despertar o indivíduo e cria cenas homossexuais entre líderes soviéticos

FILLIPE MAURO E RUAN DE SOUSA GABRIEL
03/08/2014 - 10h00 - Atualizado 03/08/2014 10h00
DEMOLIDOR Sorókin em Veneza, Itália, em 2012. Ele diz odiar o nacionalismo em todas as formas (Foto: Barbara Zanon/Getty Images)

Com a decadência e o fim da União Soviética, em 1991, emergiram do submundo cultural de Moscou artistas russos interessados em propor uma nova vanguarda artística, após décadas sob o jugo soviético. Nesse ambiente, nasceu a literatura de Vladímir Sorókin, o mais célebre autor russo na atualidade. Desde os anos 1980, é um dos grandes opositores do autoritarismo e nacionalismo em seu país. Admira as democracias europeias e alerta para a “escuridão” que avança sobre as liberdades dos russos. A postura política liberal o aproxima dos ocidentalistas, intelectuais russos que defendem a aproximação com as democracias desenvolvidas. Desde o século XVII, os ocidentalistas se batem com os eslavófilos, defensores dos governos autocráticos e das raízes eslavas. A posição de Sorókin nesse antigo debate o torna “o mais clássico dos vanguardistas”, segundo o jornal The Moscow Times. Seus livros foram traduzidos para dezenas de idiomas e são sucesso de venda nos Estados Unidos. Sorókin é o primeiro autor russo a participar da Feira Literária Internacional de Paraty (Flip). Em julho, lançou no Brasil a peça Dostoiévski-trip (Editora 34, R$ 32), seu primeiro título publicado aqui. Ele respondeu por escrito às questões de ÉPOCA.

ÉPOCA – Um de seus livros mais polêmicos, O dia do oprítchnik, apresenta uma Rússia totalitária, sob o comando de um líder autoritário. Em 2006, quando foi lançado, o senhor negava ter a intenção de fazer sátira com o governo do presidente da Rússia, Vladimir Putin. O senhor ainda rejeita essa leitura do livro?
Vladímir Sorókin
Quando escrevi O dia do oprítchnik, um amigo historiador disse: “Vladimir, você escreveu palavras mágicas para que tudo isso não aconteça com a Rússia”. Gostei dessa interpretação. Mas esse mesmo amigo, alguns anos mais tarde, comentou com tristeza: “Parece que não são palavras mágicas, mas uma profecia”. Hoje, é um clichê escrever na internet russa: “Na Rússia, tudo ocorre como num romance de Sorókin”.

ÉPOCA – O regime soviético tentou controlar a literatura. Na Rússia de hoje, há tentativas dessa natureza?
Sorókin –
Por enquanto, não houve tentativas desse tipo. Mas sempre digo: por enquanto. À luz das tendências neoimperialistas recentes, isso é bem possível, embora esteja fadado ao fracasso. Já há tentativas de censura. A linguagem obscena foi proibida, a propaganda da homossexualidade foi proibida, há um artigo no Código Penal que condena declarações extremistas. A escuridão se torna mais densa! Na Rússia, as autoridades sempre temeram os escritores. Nos anos de Stálin, eles eram eliminados ou obrigados a escrever mentiras em forma de realismo socialista. Depois de Gorbachev, os escritores se tornaram livres. Repito: por enquanto. Hoje, os escritores não são levados a sério. Eles não são úteis para o Kremlin. Mas a histeria neoimperialista que tomou conta de nosso governo após a anexação da Crimeia pode levar o Kremlin a cometer muitas bobagens. Não só com os escritores.

ÉPOCA – Como reagiu em 2002, quando foi denunciado pelo crime de “pornografia” e viu seguidores do presidente Putin jogar seus livros em privadas?
Sorókin –
Foi como se eu tivesse ido parar dentro de um teatro do absurdo. Naquele dia, estava sentado, trabalhando à minha mesa. De repente, um amigo me ligou e disse o que vira em frente ao Teatro Bolshoi. Pensei que era brincadeira. Em seguida, outro amigo me ligou e me pediu para ligar a TV. O noticiário mostrava meus livros, arremessados a uma enorme privada com o Teatro Bolshoi ao fundo, sob a música de Tchaikóvski! Eu estava no centro de um ciclone. Um ano depois, o processo foi arquivado por ordem superior. Naquela época, o Kremlin ainda tinha uma política “vegetariana”. O incesto e o canibalismo são animais raros, extintos, incluídos na lista vermelha da humanidade. Mas, em certas épocas, eles proliferam muito e escapam das reservas. O trabalho do escritor é descrever a migração desses rebanhos.

ÉPOCA – A Rússia tem leis homofóbicas. A controvérsia em torno da cena de um romance que o senhor escreveu, de sexo homossexual entre clones dos ex-líderes soviéticos Stálin e Khruschev, reflete essa proibição? Ou o problema, para os que o criticam, foi a “desonra” dos líderes soviéticos?
Sorókin –
Essa cena de amor é do meu romance O toucinho azul, em que todo o século XX é virado no avesso: Stálin é um aristocrata alto e bonito, um viciado em drogas e um esteta, Khruschev é um conde corcunda, apreciador do Marquês de Sade. Essa é a essência do romance, escrito no final dos anos 1990.

ÉPOCA – O senhor já disse que é oriundo de uma literatura marginal de Moscou, onde era comum ser “apolítico”. Continua pensando dessa maneira?
Sorókin –
Sou apolítico no sentido de não pertencer a nenhum partido político. Não vou a manifestações, não participo de atividades sociais. Mas minha posição cívica se formou há muito tempo. Sou defensor do modelo europeu de democracia e odeio o nacionalismo e o totalitarismo em todas as suas manifestações.
 

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A Rússia continua sendo um país
que acredita mais na palavra que
na realidade

ÉPOCA – Em seu livro Dostoiévski-trip, os personagens ganham  personalidade ao beber os “narcóticos da literatura”, drogas com nomes de grandes escritores, como Kafka e Dostoiévski. A Rússia consome bem essas “drogas” nos últimos anos?
​Sorókin –
Essa peça, apesar de escrita há muito tempo, reflete em muitos aspectos minha visão da literatura: é uma droga necessária tanto para o autor como para os leitores. Ela nos permite sobreviver à rotina da vida, nos torna mais inteligentes e mais sábios. Como disse Salvador Dalí, não sabemos o que é arte, mas não podemos viver sem ela. A Rússia continua sendo um país logocêntrico, que acredita mais na palavra que na realidade. A literatura ficou para trás no mundo todo com o ataque de meios visuais nas últimas duas décadas. Mas ainda temos bastante “droga literária”.

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ÉPOCA – Dostoiévski era um defensor do governo autocrático e do nacionalismo. Em Dostoiévski-trip, o senhor afirma que é melhor diluir Dostoiévski do que consumi-lo em estado bruto. O que, no pensamento de Dostoiévski, deve ser “diluído”?
Sorókin –
Sou mais afinado com o Dostoiévski psicólogo que com o Dostoiévski filósofo. Na peça, não há sua filosofia, mas a energia de seus personagens. Todos são atormentados por ideias fixas. Dostoiévski é uma dinamite do drama humano. (O escritor americano) Henry Miller confessou que, quando leu Os demônios, pareceu-lhe que a terra tremia. No final da peça, é abordado justamente o poder das ideias dos personagens de Dostoiévski. Para um leigo, essa droga continua muito forte! Foi assim que surgiu a ideia de sua “diluição”. Dostoiévski descreveu o homem russo em sua forma pura, como convém a um clássico, para depois se tornar interessante ao mundo todo. O paradoxo é que lê-lo em russo é bastante difícil. Seu estilo é confuso e sem pureza, algo típico da prosa russa do século XIX. Não é de admirar que muita gente não gostasse dele. Dostoiévski é melhor para pensar, para refletir.

ÉPOCA – Há uma escassez de autores contemporâneos russos ou os leitores de outros países é que não conseguem ver o que se produz atualmente na Rússia?
Sorókin –
Bons escritores são sempre poucos, e é assim que deve ser. Simpatizo com os escritores que vêm para a literatura com sua própria metafísica, como se fosse uma mobília. Os escritores ordinários usam móveis dos outros. Eu mesmo gosto de sentar numa cadeira de (Vladimir) Nabókov ou me deitar sobre a cama de (Liev) Tolstói, mas não por muito tempo. Deve-se dormir e sentar-se em seus próprios móveis. Prefiro a poesia clássica russa. O verso russo clássico tem uma música que não pode ser substituída por nada, por vanguarda nenhuma.

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ÉPOCA – Vários de seus livros apresentam, de forma surreal, tudo o que há de mais grotesco na humanidade. O senhor se considera um pessimista?
Sorókin –
Sou um pessimista otimista. A vida é bela, e deus criou para nós um magnífico cenário em que é possível viver. O comportamento das pessoas, neste mundo maravilhoso, é que muitas vezes me deixa deprimido. Na Rússia, esse espetáculo é especialmente triste.

ÉPOCA – O senhor já disse a jornalistas que “não superestima a literatura” e que “ela não passa de tipos sobre uma folha de papel”. O que quis dizer?
Sorókin –
Não se deve confundir a literatura com a vida. É prazeroso viver com mitos, mas até certo limite. Um psiquiatra me contou que tinha uma paciente de 18 anos que enlouqueceu ao ler O idiota (de Dostoiévski). O romance, que ela conhecia de cor, acabou substituindo o mundo real. É preciso consumir a droga literária na dose certa. Overdose faz mal. 

Com tradução de Ekaterina Vólkova Américo








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