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O último clássico russo a ganhar uma edição brasileira

O último clássico russo a ganhar uma edição brasileira

"O que fazer?", de Tchernichevski: a história de um triângulo amoroso se tornou o livro de cabeceira dos revolucionários bolcheviques

RUAN DE SOUSA GABRIEL
23/10/2015 - 18h26 - Atualizado 23/10/2015 19h42

Em 1902, o líder comunista Vladimir Ilitch Lênin (1870-1924) publicou um panfleto em que defendia a transformação do Partido Operário Social-Democrata Russo numa “vanguarda revolucionária” que pregasse a doutrina marxista aos trabalhadores. Lênin insistia na formação teórica e política dos operários como uma forma de pavimentar o caminho rumo ao socialismo. O panfleto tinha um título sugestivo: O que fazer?

COOPERAÇÃO Costureiras soviéticas em tela de 1960. Essas profissionais estão no centro da trama de O que fazer?, de Tchernichevski (Foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images)

Aos ouvidos russos, O que fazer? remetia ao título de um influente romance que tinha lugar garantido na cabeceira de todo jovem revolucionário. O que fazer?, o de ficção, foi publicado em 1863, depois de contornar a censura. O autor, Nikolai Tchernichevski (1828-1889) foi preso por defender ideias socialistas. Na cadeia, escreveu a história de um triângulo amoroso entre uma jovem costureira, Vera Pavlovna, e dois estudantes de medicina, Lopukhov e Kirsanov. O livro incendiou a juventude russa. O próprio Lênin admitiu tê-lo lido cinco vezes. A primeira edição em português de O que fazer? (Editora Prismas, 482 páginas, R$ 70) chegou às livrarias no final de setembro.

O que fazer?, de Nikolai Tchernichevski (Foto: divulgação)

O que fazer? é o último clássico russo do século XIX a ganhar uma edição brasileira”, afirma Angelo Segrillo,  professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e tradutor do romance, pouco lido no Ocidente. O século XIX presenteou a Rússia com muitos escritores talentosos, como Tolstói, Púchkin e Gógol. Tchernichevski teve de competir com eles pela atenção das editoras ocidentais. Perdeu. Não ajudou em nada ele ter sido apontado, pelo regime soviético, como o profeta da revolução de 1917.

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Nos anos 1860, a literatura russa refletia o debate político. Em 1861, o czar Alexandre II aboliu a servidão em todo o Império Russo, mudando o modo de vida da nobreza rural. No ano seguinte, Ivan Turguêniev publicou o livro Pais e filhos, repleto de personagens que sonhavam com a modernização da Rússia segundo o modelo ocidental. Tchernichevski não gostou da maneira caricata como Turguêniev descreveu os revolucionários. O que fazer? foi sua resposta.

Apaixonada pelo melhor amigo do marido, Vera funda uma cooperativa de costureiras que acolhe mulheres marginalizadas. “Vera reúne moças tuberculosas e prostitutas que, ao integrarem um novo arranjo social, transformam-­se em novas mulheres e até se curam. Uma verdadeira ressurreição”, afirma  Bruno Gomide, professor do Departamento de Letras Orientais da USP. A fórmula da cooperativa de Vera foi recuperada pelos bolcheviques: se as estruturas forem transformadas, uma nova humanidade surgirá. “Mais cedo ou mais tarde, vamos organizar a vida de modo que não haja pobres”, diz Lopukhov, o marido que aceita ser trocado pelo melhor amigo, num vislumbre das novas relações sociais que a nova ordem econômica permitiria. “Os personagens de O que fazer? são despidos de ambiguidade psicológica”, afirma Gomide. “São seres dedicados unicamente a uma causa.” Fiódor Dostoiévski (1821-1881), escritor russo e defensor da religião e da monarquia, rejeitou as teses de O que fazer?. Em resposta, escreveu Memórias do subsolo, uma novela em que ironiza a nova sociedade justa, igualitária e racional sonhada por Tchernichevski.

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O que fazer? não oferece um programa político, mas apresenta ideias que alimentaram revolucionários, representados no livro por Rakhmetov, o protótipo do militante que se sacrifica pela causa. “Por trás da história do triângulo amoroso, o romance está repleto de metáforas que apontam para a revolução”, afirma Segrillo. A  influência de O que fazer? na cultura russa mostra como realidade e literatura se afetam mutuamente. Os livros refletem a sociedade construída pelos homens, mas também moldam os homens que constroem a sociedade. Não faltam exemplos. Uma onda de suicídios sucedeu à publicação de Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, em 1774. O peregrino, do pastor inglês John Bunyan, de 1678, influenciou o movimento puritano na Europa e nos Estados Unidos. Nos anos 1950, On the road, de Jack Kerouac, se tornou a bíblia de quem não aguentava mais tanta pureza. Além de literatura, O que fazer? foi arma revolucionária.








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