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Dostoiévski recebe alta

Dostoiévski recebe alta

Uma nova tradução de contos do autor russo levanta a questão: é legítimo tratar o autor e seus personagens como pacientes em um divã?

RUAN DE SOUSA GABRIEL
21/04/2017 - 10h00 - Atualizado 24/04/2017 16h43
O escritor Flódor Dostoiévski em 1865 (Foto: adoc-photos/Corbis via Getty Images)


 

NEURÓTICO O escritor Fiódor Dostoiévski em 1865. Ao lado, a capa dos Contos reunidos. É comum que psicólogos e psicanalistas se debrucem sobre a obra do autor.  (Editora 34, 552 páginas, R$ 89) (Foto: Divulgação)

Num dia de 1876, o escritor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoiév­ski (1821-1881) ouviu da mulher, Anna Grigórievna (1846-1918), uma história curiosa. Ela passara a manhã perambulando por São Peters­burgo e, enquanto se locomovia de um lugar para o outro, viu uma velhinha encurvada, de bengala, que andava um pouco e logo se sentava para descansar. Quando a avistou pela terceira vez, decidiu interrogá-la. A velhinha contou que tinha 104 anos e ia almoçar na casa dos netinhos. Como caminhava com dificuldade, parava com frequência para tomar fôlego. Anna Grigórievna deu uma moeda à velhinha e se despediu. Dostoiévski criou outro final para essa história. Inventou que a centenária conseguiu chegar à casa dos netos para o almoço, mas morreu sentada à mesa. O conto “A mulher de cem anos” foi publicado em Diário de um escritor, um periódico onde Dostoiévski publicava ensaios, contos e arrumava briga com a intelectualidade de São Petersburgo.

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Até agora, o brasileiro só podia ler  “A mulher de cem anos” por traduções indiretas. Uma primeira tradução diretamente do russo, feita pela psicóloga paulistana Priscila Marques para os Contos reunidos, de Dostoiévski (Editora 34), chegou às livrarias neste sábado, dia 15. Priscila traduziu 22 das 32 narrativas curtas reunidas na antologia. “A mulher de cem anos” foi uma das que mais a impressionaram, por reunir os traços distintivos dos contos do russo: a implosão do muro que separa a realidade e a ficção, pinceladas cômicas e aquela crueldade – capaz de matar até centenárias inofensivas – que fascina e atormenta o leitor. “Dostoiév­ski é perverso ao voltar à história da velhinha só para matá-la, mas esse conto me abalou também por uma situação pessoal: no ano passado eu perdi minhas duas avós. É duro, mas os velhinhos morrem”, diz Priscila.

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Apesar de sua formação em psicologia, Priscila se recusa a tratar Dostoiév­ski e seus personagens como pacientes – não importa quão perversos ou neuróticos eles sejam. Não é incomum que psicólogos e psicanalistas se debrucem sobre a obra de Dostoiévski e pratiquem um tipo de crítica literária mais preocupada em identificar as psicopatologias que afligem os personagens (e o autor) do que em analisar a estética do texto. Sigmund Freud (1856-1939) costumava buscar na literatura exemplos que confirmassem suas teorias. Ele recorreu às tragédias Édipo rei, do grego Sófocles, e Hamlet, de Shakespeare, para formular o Complexo de Édipo, que explica os sentimentos ambíguos do menino em relação ao pai: o desejo de matá-lo para tomar o lugar dele ao lado da mãe e o medo da castração. A obra de Dostoiévski – povoada de epilépticos, sádicos e parricidas que testam os limites da razão e são atormentados pela culpa – mereceu uma leitura atenta de Freud, que considerava Os irmãos Karamázov “o mais formidável romance jamais escrito”.

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No ensaio “Dostoiévski e o parricídio”, de 1928, Freud coloca o russo no divã e se propõe a investigar as origens de sua neurose – a epilepsia. Segundo Freud, há tantos homicidas nas narrativas de Dostoiévski porque o escritor identificava, em si mesmo, os ímpetos assassinos de Édipo. A epilepsia teria a função de puni-lo por seu desejo infantil de matar o pai. Embora ensaie um diagnóstico de Dostoiévski apoiado na leitura de suas obras e em dados biográficos questionáveis, Freud não propõe a psicanálise como uma ferramenta da crítica literária. O “dom artístico” de Dostoiévski é “insuscetível de análise”, diz Freud. Diante do talento, “a psicanálise tem de depor as armas”.

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No entanto, boa parte da crítica psicanalítica que se seguiu a Freud se recusou a depor as armas da teoria diante da arte. Proliferaram diagnósticos de perversões, neuroses e psicoses nos personagens dostoievskianos. Raskólnikov, o estudante que mata a velha usurária em Crime e castigo, foi chamado de esquizofrênico e paranoico, e muito se especulou sobre sua relação com o pai. O próprio Dostoiévski, porém, deu um diagnóstico para seu anti-herói: monomania, a obsessão por uma única ideia delirante.

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O filósofo Luiz Felipe Pondé, autor de Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski, afirma que leituras psicologizantes empobrecem e domesticam a literatura. Tanto a psicanálise quanto a psicologia social seriam incapazes de acessar fundamentos teológicos em que baseiam as discussões dostoievskianas. “Há, em Dostoiévski, uma psicologia moral que rechaça teorias que justificam o mal que há nos homens”, diz Pondé. O protagonista da novela Memórias do subsolo, por exemplo, rejeita que uma doença do fígado seja a fonte de sua amargura, como sugeria a teoria dos humores, uma tentativa pré-moderna de explicar a psicologia humana. Um temperamento melancólico seria consequência do acúmulo de bile amarela no fígado. “Para Dostoiév­ski, a afirmação da verdade na arte era impossível sem uma compreensão da alma humana, mas ele não considerava que a análise psicológica fosse a chave para revelar a essência de um personagem”, afirma Fátima Bianchi, organizadora dos Contos reunidos e professora do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (DLO-USP).
 

Priscila Marques,tradutora (Foto: Filipe Redondo/ÉPOCA)

Priscila Marques, a tradutora, começou a estudar Dostoiévski ainda na faculdade de psicologia – e nunca quis transformar o autor ou seus personagens em pacientes. Ela elegeu a psicologia social do soviético Liev Semiónovitch Vigótski (1896-1934), autor de Psicologia da arte, como suporte teórico para sua análise de Crime e castigo. Vigótski propõe que se abandonem as pretensões de compreender a psicologia do autor ou de seus personagens por meio de biografismos e de uma leitura mediada por cartilhas psicológicas. Não é tarefa da psicologia recorrer à literatura para demonstrar uma teoria – como fez Freud –, mas se esforçar para compreender o que o texto literário revela sobre as emoções humanas. Não é a psicologia que explica a literatura, mas a literatura que tem lições a dar aos psicólogos. “A tese de Vigótski é que a obra literária desperta emoções contraditórias no leitor, e esse embate de sensações discordantes gera uma catarse, uma explosão emocional”, diz Priscila. “O psicólogo deve analisar como a literatura elabora socialmente as emoções, independentemente das intenções ou da biografia do autor. O texto literário já contém tudo o que precisamos saber.”

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A formação em psicologia e a familiaridade com a literatura dostoievskiana tornaram Priscila mais sensível à construção de texto literário, um pré-requisito importante para quem se atreve a traduzir o russo. “Estar atenta e buscar compreender a construção poética da obra literária faz toda a diferença nas escolhas que faço como tradutora, pois as palavras não são aleatórias”, diz. “O exercício de aproximação entre as duas áreas, no entanto, pertence mais ao trabalho propriamente acadêmico. É algo de ordem mais analítica e de comentário.”

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A publicação dos Contos reunidos é uma excelente oportunidade para pensar como Dostoiévski trabalha as mais contraditórias emoções humanas em narrativas atravessadas por tensões. Muitos contos começam como relato jornalístico e ganham um acabamento ficcional, como “A mulher de cem anos”. As reações estéticas que provocam vão além do assombro e da perturbação psicológica. Dostoiévski também arranca lágrimas e gargalhadas dos leitores. Contos como “A mulher de outro e o marido debaixo da cama” descambam em sátira e comédia pastelão. Outros, como “Mujique Marei” e “Um menino na festa de Natal de Cristo”, emocionam com enredos comoventes em que aparecem crianças, camponeses afetuosos e lembranças capazes de socorrer um homem aflito. Melhor do que colocar Dostoiévski no divã e, com a ajuda de um manual, procurar diagnósticos é permitir que suas histórias nos conduzam a verdades sobre nossa condição humana.








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