Por Carlos Henrique Dias e Kleber Tomaz, g1 SP


30 anos após Massacre do Carandiru: PMs não foram presos e sobreviventes relembram caso

30 anos após Massacre do Carandiru: PMs não foram presos e sobreviventes relembram caso

Três sobreviventes do massacre do Carandiru relembraram, em entrevista ao g1, momentos da matança carcerária de 1992, no complexo penitenciário na Zona Norte de São Paulo.

O caso ficou conhecido internacionalmente pela invasão da Polícia Militar (PM) no Pavilhão 9 da Casa de Detenção, para tentar conter uma rebelião de presos. Policiais armados mataram detentos para por fim a confusão. Eles alegaram ter atirado para se defender. Mas quem sobreviveu ao banho de sangue conta o que viu e dá outra versão para a história.

Os ex-detentos voltaram ao Espaço Memória Carandiru, que guarda imagens, objetos e reproduz celas no prédio do antigo Pavilhão 4. A maior parte do complexo foi implodida em 2002. Desde então há um parque no local.

O pequeno museu fica no térreo da Escola Técnica Estadual (ETEC) Parque da Juventude e foi construído em 2007. O local está sob os cuidados do Centro Paula Souza (veja como agendar uma visita).

PMs cantam música de exaltação ao Massacre do Carandiru em SP

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'Tenente salvou minha vida'

Com uma medalha de São Jorge no peito e vestindo uma camiseta com a estampa dos presos reunidos no pátio do Carandiru após a invasão da PM, Maurício Monteiro caminhou pelo chão do antigo prédio e relembrou o dia 2 de outubro de 1992, no Pavilhão 9.

Maurício Monteiro, sobrevivente do massacre do Carandiru — Foto: Celso Tavares/g1

“No dia do massacre, foi um dia normal. Não estava acontecendo nada. Simplesmente foi falado que nós não iríamos entrar para a tranca [cela], porque nós não sabemos nem o que estava acontecendo, porque os rapazes que tiveram a confusão, nem no pavilhão eles estavam mais”, lembra.

Momentos antes, houve uma briga entre os presos. Os motivos não estão claros nos autos do processo, segundo o Ministério Público (MP). A confusão entre os dois ganhou dimensões maiores.

“Na hora que eu vi os policiais da Rota [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, tropa de elite da PM] entrando eu já falei: 'vou morrer'. Por conta de ser um preto, grande. Eles [policiais] vieram matando. Nem todos os policiais estavam para matar, porque eu e muitos dentro da minha cela fomos salvos por um policial", diz Maurício. "Não tinha onde se esconder, e eu fiquei atrás de um lençol. O policial veio, puxou o lençol com a arma, pôs o revólver na minha cara, engatilhou e entrou um tenente. Falou assim: ‘aqui não’. Esse tenente salvou minha vida”.

Pelada interrompida

Sentado no memorial, em meio ao cenário da porta originalmente personalizada com o primeiro versículo do terceiro capítulo do Livro de Eclesiastes, Luiz Carlos Paulino, de 55 anos, falou sobre a tragédia e o complexo, ao qual ingressou em 29 de março de 1986.

Paulino estava jogando uma pelada quando soube de uma briga no segundo andar, e todos os funcionários passaram a recolher os detentos, segundo ele.

“Começou aproximadamente 6 horas da tarde e terminou às 6 horas da manhã. Naquele momento, eu me encontrava morando no quinto andar”, recorda.

“Na minha cela, ninguém veio a perder a vida, mas passamos por momentos traumáticos que, até hoje, sobrevém ao nosso psicológico. Essa lembrança, que deixou uma cicatriz na alma. Ouvimos disparos de metralhadoras, ações dos próprios policiais pegando os estiletes dos egressos e matando à estiletada os presos que estavam sob a tutela do Estado”, detalha Luiz.

Luiz Paulino, sobrevivente do massacre em 1992 — Foto: Celso Tavares/g1

Segundo ele, a multidão de policiais chegou a combinar as mortes: “eles falaram: ‘vamos ver quem mata mais entre nós?’. Escutei isso. Aí eles matavam, davam um tiro para tudo quanto é lado”.

As investigações apontaram que 330 policiais militares participaram da incursão com 25 cavalos e 13 cachorros. A perícia identificou que os presos foram atingidos por 126 tiros nas cabeças.

Pegavam mais negros e pessoas que tinham tatuagem de caveira e matavam, encostava na parede e matavam. Tinham pessoas que, com medo, estavam debaixo da cama, outras no banheiro, dentro da coberta. E os policiais, eles colocavam as metralhadoras e rajavam”, complementa Luiz.

‘Mil cairão ao teu lado e dez mil à tua direita’

Sidney atualmente é pastor no interior de São Paulo — Foto: Arquivo pessoal

Atualmente pastor e fundador de um centro terapêutico educacional no interior de São Paulo, Sidney Sales, de 53 anos, identifica o episódio como “carnificina”.

À época, ele havia sido preso por assalto e estava no Pavilhão 9. Sales afirma que, no dia, estava sendo realizada uma partida de fim de campeonato. Lembra de ter feito um gol e, já dentro do prédio, comemorando o título, deparou-se com o início da confusão, seguida de colchões queimados, gritaria e explosão de gás de cozinha.

“De repente, sobe um indivíduo dizendo que os policiais estavam invadindo e matando as pessoas. Quando liguei o canal de televisão, eu já vi logo a cavalaria. Subo na janela e, quando eu olho para baixo, vejo realmente os policiais assassinando as pessoas no pátio e no campo”, lamenta.

Em meio ao caos da tropa que se aproximava, o ex-detento lembra que pegou uma carta escrita pela mãe com o Salmo 91. Naquele momento, segundo ele, ao menos 15 pessoas estavam ajoelhadas.

Comecei a recitar aquela carta no Salmo 91. Neste momento, o policial chutou a porta, entrou com uma metralhadora engatilhada. Outro policial, com uma calibre 12 de repetição, pedindo que nós todos tirássemos as roupas, saíssemos todos nus para fora. Do lado de um companheiro, uma bala havia ricocheteado e pegado a sua nuca. Ele havia morrido do meu lado e sem dar um gemido.”

Sidney fala sobre o Carandiru e quando esteve preso — Foto: Arquivo pessoal

Corredor polonês

Depois de quase meia hora de tumulto, conforme os sobreviventes, os policiais fizeram um corredor para que todos fossem para fora, de cueca ou sem roupa. Os detentos foram agredidos enquanto passavam pelo local. Essa prática é conhecida como "corredor polonês".

“Nessa descida vi muitos caras sendo mortos, cachorro arrancando o órgão sexual”, comentou Maurício Monteiro.

'Corredor polonês' retratado no filme 'Carandiru', de 2003, com direção de Hector Babenco — Foto: Globoplay/Reprodução

Sidney afirma que os presos retornaram para o pavilhão depois de várias horas. No retorno, um policial bateu a mão no ombro dele e pediu ajuda para carregar os corpos nos andares. Foram mobilizados carros do Instituto Médico Legal (IML), ambulância e viatura.

“Nós jogamos esses cadáveres para dentro dessas viaturas, dessas ambulâncias. Você tinha que jogar pessoas que estavam agonizando”, detalha Sidney.

No quarto andar havia grande quantidade de sangue com água. O chão, segundo os relatos, havia sido tomado pela cor vermelha.

“Poderiam ter cortado a água, energia elétrica, poderiam ter cortado a nossa alimentação. Nos renderíamos no máximo em dois, três dias”, diz o pastor.

Maurício, Luiz e Sidney atualmente

Imagem de um pavilhão do complexo à época — Foto: João Wainer/Memorial Carandiru

Maurício Monteiro, depois que saiu do Carandiru, ficou preso por mais 14 anos. Ele teve passagem pela acusação de homicídio. Atualmente é empresário, formado em gestão ambiental e sanitária. Faz parte de um projeto social que trabalha com crianças em comunidade.

“Quando eu pus o pé na rua, muitos anos depois, eu já estava decidido em parar [com o crime], porque a família estava me apoiando.”

Luiz Paulino, que foi preso acusado de homicídio, é formado em bacharel em teologia, bacharel em pedagogia e, por último, bacharel em direito. 

“Depois que eu saí [da prisão], definitivamente eu olhei para mim e falei: ‘eu não posso ser o mais um que o estado quer. Eu vou em busca daquilo que é meu objetivo’. Estudei, me formei, tô devendo R$ 100 mil para o estado, mas me formei e, com essa formação, estou tentando sobreviver, ainda com dificuldade.”

Complexo Carandiru — Foto: João Wainer/Espaço Memória Carandiru

Depois do massacre, Sidney Sales, que ficou preso por roubo de carga, foi transferido para outras penitenciárias. A última foi a de Mirandópolis, quando ganhou a liberdade.

“Quando fui para o mercado de trabalho, eu também não tive sucesso, pelo fato de ser semianalfabeto. Eu retorno para o crime e, no confronto, eu tomo seis tiros e fico como portador de necessidade especial, em cima de uma cadeira de roda. Começo, então, a usar demasiadamente droga. Fui praticar um delito mesmo em cima da cadeira de roda, no roubo de carga, e eu fui para o presídio. Aquela pessoa desacreditada que não tinha esperança, o meu sonho começou a reviver. Meu passado me condena, mas o meu presente tem que me absolver.”

Processo se arrasta

Policiais Militares entram armados no Carandiru em 1992 — Foto: Reprodução/Arquivo/GloboNews

Três décadas após o Massacre do Carandiru, o caso ainda se arrasta na Justiça. Os PMs condenados pelos assassinatos dos detentos nunca foram presos. Atualmente, o Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo irá julgar um recurso da defesa dos agentes, que pede para reduzir as penas deles. A determinação foi do Superior Tribunal Federal (STF), que manteve as condenações dos agentes.

Ao todo, 74 PMs foram condenados a penas que variam de 48 anos a 634 anos de prisão pelas mortes de 77 presidiários.

“Fica nítido nos autos, depoimentos de presos e esclarecimentos do perito que fez a cena do crime, indicando que o propósito foi abater”, falou o promotor Marcio Friggi ao g1.

De todos os policiais condenados, cinco já morreram, 47 estão aposentados, 11 foram exonerados, dois expulsos por outros casos, um exonerado por cargo público e oito não recebem aposentadoria.

Procurado pela reportagem para comentar o assunto, o advogado Eliezer Pereira Martins, que defende os PMs condenados, disse que prefere se referir ao caso como "Contenção do Carandiru", em vez de "massacre". Para ele os PMs atiraram em legítima defesa.

“Os soldados pegaram em armas para cumprirem as ordens superiores. Eu atribuo a condenação deles nos cinco júris a uma estratégia do MP de responsabilizar quem estava na ação, sem nenhuma individualização de condutas, poupando quem ordenou a ação”, falou o advogado.

Pavilhões do presídio do Carandiru foram demolidos em 2002 e Parque da Juventude foi montado no lugar — Foto: Arquivo/Estadão Conteúdo

"Trinta anos após o massacre, e eu vejo o mesmo que aconteceu um ano depois. Um estado que está jogando tudo debaixo do tapete. Vemos aí os caras falando de anistiar os policiais: ‘tipo, não aconteceu nada’”, repudia Maurício Monteiro.

“Deixaram essas cicatrizes, tanto nos sobreviventes, mas as cicatrizes ficaram com os seus familiares. Não há valores que pagam essas cicatrizes na alma”, finaliza Luiz Paulino.

Indulto de Natal

Em dezembro de 2022, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) assinou um decreto que concedeu indulto a policiais condenados, ainda que provisoriamente, por crime praticado há mais de 30 anos e que não era considerado hediondo à época.

Membros do Ministério Público de São Paulo que atuaram no julgamento do massacre do Carandiru entendem que o indulto beneficia os PMs condenados pelas 111 mortes ocorridas em outubro de 1992 (há mais de 30 anos, portanto). Como o indulto não é automático, cabe à defesa dos policiais acionar a Justiça.

Agora, o Supremo Tribunal Federal deve julgar a constitucionalidade do indulto concedido em 2022. Os efeitos do decreto estão suspensos desde janeiro de 2023, quando a então presidente do STF, Rosa Weber, acolheu uma ADI (ação direta de inconstitucionalidade) ajuizada pelo ex-procurador-geral da República Augusto Aras.

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