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De uma coisa, o fotógrafo Sebastião Salgado, de 80 anos, tem certeza: é preciso ser paciente. Quando um profissional sai a campo em busca de uma imagem, diz ele, a expectativa sempre se cumpre. Trata-se só de uma questão de tempo, de se ver preparado para materializar o quadro na fração de segundo em que ele acontecer. “Já desenhei todas as cenas na minha cabeça, o formato, a luz, e fiquei esperando, insistindo. É como na vida: em algum momento, a oportunidade se concretiza e você deve estar pronto”, afirma o mais célebre dos fotógrafos brasileiros, em uma analogia capaz de dialogar com sua história pessoal.

Com a calma habitual, Salgado desmente os recentes boatos em torno de sua aposentadoria. Em uma entrevista ao jornal britânico The Guardian, publicada em fevereiro, o profissional declarou que, ao completar 80 anos, seu corpo não é mais o mesmo e havia chegado a hora de deixar de lado as grandes reportagens em busca de uma rotina mais tranquila. “Não falei que pararia de trabalhar, só que, aos 80, você atinge uma liberdade inimaginável. O que vier pela frente é lucro. As pessoas vivem, quando muito, até os 90, e estou mais próximo da morte”, explica. “Não me engajaria em um projeto que se arrastasse por seis ou sete anos, porque possivelmente não teria como concluí-lo.”

O artista garante que a iminência da morte não o assombra; pelo contrário, o faz enxergar-se em uma posição privilegiada por ter escapado dela tantas vezes. “Eu estou vivo!”, celebra. “Trabalhei quatro anos na Gamma (agência fotográfica francesa fundada em 1966), no fim da década de 1970. Éramos doze fotógrafos e quatro deles foram assassinados; já vi tanta gente morrer”, observa.

Nesta fase mais sossegada, ele troca os campos de guerra e os cenários de exploração pelo estúdio que mantém em seu apartamento de Paris, perto da Praça da Bastilha, onde vive com a esposa, Lélia Wanick Salgado, e o filho Rodrigo, de 44 anos. É lá que estão arquivadas as 500 mil imagens de seu acervo, que passam por um processo de edição para virem à tona, quem sabe, em novos projetos. “É claro que continuo fotografando, mas acho importante me concentrar nesse material nunca visto.”

Sebastião Salgado — Foto: Marcus Steinmeyer
Sebastião Salgado — Foto: Marcus Steinmeyer

A exposição 50 Anos da Revolução dos Cravos em Portugal, em cartaz no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, até 30 de junho, representa a primeira concretização dessa nova etapa. A mostra, com curadoria de Lélia, exibe cinco dezenas de cliques registrados em meados da década de 1970 sobre o movimento que devolveu a democracia a Portugal depois de quarenta anos da ditadura salazarista. Uma criança descalça com o punho direito erguido pelas ruas de Porto, homens compartilhando a leitura de um exemplar da publicação comunista Luta Popular e pessoas vibrando em meio a uma chuva de jornais são cenas reveladas pelo olhar sensível do fotógrafo.

Salgado e Lélia se casaram em 1967 e, dois anos depois, diante do recrudescimento da ditadura militar no Brasil, buscaram exílio na França. Ele começou o doutorado em economia; ela, os estudos de arquitetura na Universidade de Paris. Em 1974, época da Revolução dos Cravos, Salgado dava os primeiros passos como fotógrafo após deixar o cargo de analista econômico na Organização Internacional do Café. A paixão pelo ofício acelerou-se em viagens profissionais por países da África, quando, nos intervalos dos fechamentos de planilhas, tirava o paletó e saía pelas ruas de Uganda, Ruanda, Congo e Burundi registrando as tristes expressões de uma sofrida população. “Percebi que podia transformar em imagem tudo o que eu questionava, o que me revoltava e que, de algum jeito, eu acreditava que conseguiria mudar”, lembra. “Quando recusei a proposta do Banco Mundial, em Washington, vi que esse caminho não tinha volta.”

O impacto financeiro abalou o casal, que trocou um confortável apartamento por um sótão de 16 metros quadrados em um prédio parisiense. Salgado montou um laboratório onde revelava filmes e copiava imagens sob encomenda para estudantes universitários como reforço ao orçamento. “A generosidade é um dos traços mais marcantes da personalidade do Sebastião. A impressão que tenho é que, no exílio, ele foi ajudado por tanta gente que, como fotógrafo, entendeu que poderia contribuir para auxiliar um maior número de pessoas e de uma maneira mais abrangente”, diz o jornalista Leão Serva, amigo de Salgado e parceiro na realização da reportagem Amazônia, que originou a exposição vista no Sesc Pompeia em 2022.

Os ecos de uma revolução em Portugal atiçaram o fotógrafo. Não havia encomenda de veículo nenhum, mas, mesmo assim, Salgado e Lélia trocaram Paris por Lisboa com o primogênito, Juliano, recém-nascido, para executar o trabalho. Hospedados em uma pensão baratíssima, deixavam o bebê na creche do outro lado da rua e subiam e desciam as ladeiras da capital portuguesa com suas máquinas. Na época, ela também fotografava e só não acompanhava o marido nas circulações em outras cidades por causa do garoto. “É importante reforçar a correlação existente de Portugal encerrando uma ditadura e o Brasil daquele tempo sufocado por uma repressão em seu auge”, afirma o profissional.

Em Portugal, entre outras coisas, Salgado aprendeu a usar o flash. Chegou às suas mãos uma encomenda de fotografia colorida de uma manifestação noturna para a revista norte-americana Newsweek. Honesto, ele confessou ao editor que nunca havia trabalhado com tal recurso. “Você tem um dia inteiro para aprender”, ouviu como resposta. Salgado comprou um flash e passou horas realizando testes, estudando as distâncias e como elas se adequavam ao diafragma mais aberto ou fechado. Missão cumprida, e a imagem acabou virando capa da edição da semana seguinte de Newsweek. “Essa cobertura em Portugal me ensinou que as reportagens fotográficas precisam contar uma história com começo, meio e fim. Vendo essa exposição, o público entende a Revolução dos Cravos”, analisa ele.

Sebastião Salgado — Foto: Marcus Steinmeyer
Sebastião Salgado — Foto: Marcus Steinmeyer

Quem imagina o mineiro Sebastião Ribeiro Salgado Júnior um obcecado pelas imagens desde cedo está enganado. Único homem em uma leva de oito filhos, ele conta que suas irmãs gostavam de clicar em uma caixinha quadrada da Kodak que jamais despertou seu interesse na adolescência. Ele só olhou pelo visor de uma máquina e fez a primeira foto em 1970, quando flagrou Lélia em um fim de tarde sentada perto da janela de uma casa em que passavam férias nas montanhas da Alta Saboia, na divisa da França com a Suíça. “Ali aconteceu um milagre, eu me apaixonei pela fotografia e vi que podia registrar o belo.”

Sobre a responsabilidade da parceira em sua obra, Salgado não fala apenas da inspiração, do estímulo permanente ou do companheirismo que a fez, entre outras coisas, garantir as estruturas da família. “Nada aconteceu na calçada da minha casa, e precisei me afastar de Lélia e das crianças muitas vezes”, assume. Foi por causa da esposa que o então economista começou a apurar seu olhar em exposições de arte e descobriu a importância de imaginar uma fotografia como um quadro de composição geométrica. “A Lélia é a grande responsável pelo fotógrafo que está aqui hoje.”

O nascimento do filho Rodrigo, portador da síndrome de Down, em 1979, levou a mulher a largar a arquitetura para concentrar a atenção no garoto e, com o tempo, assumir a curadoria e a edição dos livros e exposições do marido. “O Rodrigo é nosso, vive e viaja com a gente. Isso faz com que nossas vidas sejam cada vez mais ligadas”, declara. A consagração na década de 1990 rendeu a Salgado a maior das suas crises, aquela que o levou a abandonar a fotografia por dois anos. Logo após a cobertura do genocídio de Ruanda, em 1994, que massacrou 800 mil pessoas em 100 dias, o profissional viu sua energia minar e a depressão o distanciar das lentes. “Comecei a sofrer com infecções geradas pelo meu próprio corpo”, lembra.

Um médico, sem rodeios, avisou que era tanta convivência com a tragédia que, devido à sua cabeça, dali a pouco a morte o puxaria. Salgado tomou aversão pela espécie humana, pela violência que seus semelhantes eram capazes de causar — e, até então, seu objeto fotográfico era somente o próprio homem. “Voltamos para o Brasil, ficamos três meses à beira-mar na Bahia; meus pais, já ficando velhos, passaram para mim uma fazenda em Aimorés, no interior de Minas Gerais”, conta. “Recebemos aquela terra destruída e começamos do zero. Plantamos capim, as árvores nasceram, uma floresta cresceu e realizamos um enorme trabalho de recuperação ambiental, o que me fez renascer também.”

Com a vida pulsando à sua volta, Salgado idealizou o projeto “Gênesis”, com o qual percorreu 32 países em oito anos: lugares intocados e ecologicamente puros em busca de flagrantes de baleias na Antártida, rebanhos de renas no Círculo Polar Ártico, vulcões da Península de Kamchatka e desfiladeiros do Grand Canyon. O artista aprimorou seu olhar para retratar a natureza, o que lhe traz uma esperança diferente da do resto dos mortais em relação ao futuro do planeta. “Possivelmente, vai ficar ainda muito pior para a nossa espécie; em relação a isso, não tenho esperanças, mas o mundo é composto de uma infinidade de espécies minerais, vegetais e animais, e estas se manterão”, salienta.

O seu par de olhos azuis volta a brilhar quando fala dos dois netos, Flávio, de 27 anos, e Nara, 7. São os filhos de Juliano, que vive em São Paulo e dirigiu o documentário O Sal da Terra (2014), em parceria com o cineasta alemão Wim Wenders, sobre as viagens do pai pelo mundo. Nara ainda é uma menina, “linda”, segundo o avô, mas Flávio demonstra uma inquietação herdada possivelmente de Salgado.

“Ele estudou na Universidade da Califórnia, fala cinco idiomas. Trilhava uma carreira promissora em empresas de finanças e largou tudo para virar chef de cozinha em Barcelona. Não é maravilhoso?”, pergunta. Com uma voz baixa, Salgado responde que não costuma fotografar os netos, “só um pouquinho, de vez em quando”. Sente falta desse contato? Vem o silêncio. Talvez, agora, nesta fase mais quieta, depois dos 80 anos, sobre um pouco de tempo para materializar a imagem perfeita.

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