Saúde

Por Lilian Cunha

Os desavisados podem se espantar ao ver um clique nas redes sociais de alguma celebridade tomando soro intravenoso. Em um primeiro momento, parece cena de atendimento hospitalar. Reparando-se melhor, entretanto, dá para ver que o ambiente costuma ser bem mais glamouroso que o de um pronto-socorro. Em certas clínicas, o paciente descansa em poltronas confortáveis, numa sala decorada com lustres de cristal e arranjos florais. A bolsa de soro é colorida, um amarelo dourado ou um vermelho como suco de romã. A comparação com frutas não é por acaso. Muitos endereços anunciam a prática da soroterapia com a imagem de uma bolsinha cheia de frutas, mais parecida com um coquetel que com um preparado para ser injetado na veia.

A promessa de resultados desse movimento é variada (em alguns espaços, existe até cardápio): há soro para beleza, emagrecimento, energia, imunidade, hipertrofia dos músculos, alto rendimento no esporte, contra fadiga, insônia e cabelos brancos, para mais fios na cabeça e por aí vai. A ideia se espalhou de tal forma que, no último réveillon, uma festa na Praia dos Carneiros, em Pernambuco, trouxe como atração um quiosque de soroterapia, sob a supervisão de um médico.

“As pessoas estão tão cansadas que, quando surge alguém com uma solução que parece milagrosa, como a soroterapia, todo mundo quer”, afirma a gaúcha Mari Krüger, bióloga e influenciadora digital que se dedica na internet a falar de ciência com bom humor para 1 milhão de seguidores. “Se o médico diz que você precisa se alimentar e dormir melhor, isso dá trabalho e ninguém quer. O soro cai como uma luva.”

O médico curitibano Guilherme Packer, de 34 anos, não só virou adepto (ele mesmo injeta o líquido em si uma vez por mês) como também administra a terapia endovenosa nas duas clínicas onde trabalha, a Round Glúteo, na Vila Olímpia, em São Paulo, e na capital paranaense. Sua mãe e a esposa igualmente tomam os nutrientes. “Às vezes, trabalho mais de doze horas por dia, viajo muito e não me alimento bem. Então, realizo a aplicação”, afirma. Os preferidos são aqueles que contêm antioxidantes, a exemplo da coenzima Q10 ou da vitamina PQQ (pirroloquinolina quinona). “Já aconteceu de eu administrar o PQQ rapidamente e me dar um calorão na hora, mas no geral não sinto nada. No dia seguinte, em vez de acordar querendo voltar para a cama, acordo com vontade de malhar.”

O preço, segundo ele, varia de R$ 190 a R$ 600, dependendo do que houver na mistura. Porém, em algumas clínicas - e até em salões de beleza -, uma sessão alcança R$ 1 mil. “Para cada paciente, recomenda-se um preparado diferente”, afirma. O processo dura de trinta minutos a uma hora.

Funciona?

Essa é a questão de 1 milhão de dólares. As clínicas garantem que sim. “Soro não é milagre. Não existe soro para fazer cabelo crescer, por exemplo. Porém, a reposição de nutrientes se mostra, sim, benéfica e tem suas indicações”, explica Raquel Marques, médica do esporte e especialista em medicina integrativa da Awake, nos Jardins, em São Paulo. Lá, uma sessão custa a partir de R$ 250. Ela observa que, no exterior, é comum a aplicação em pessoas sadias. “Na maratona de Londres (em abril de 2023), havia uma barraca para quem quisesse tomar soro após a corrida. Eu, por exemplo, atendo como médica em vários eventos em São Paulo. Na apresentação do RBD, em novembro, depois do show, os membros da banda queriam a aplicação. Eles fazem isso sempre”, afirma.

O segredo da funcionalidade da prática, segundo ela, é a absorção. “Por via endovenosa, a pessoa absorve 100% da substância. Se o nutriente vier em forma de comprimido, por exemplo, o organismo fica com algo entre 20% e 30% do ingerido”, diz Raquel.

As pessoas estão tão cansadas que, quando surge alguém com uma solução que parece milagrosa, como a soroterapia, todo mundo quer.”
— Mari Krüger, bióloga e influenciadora digital de ciência

Marketing

Para muitos especialistas, entretanto, o que ocorre é mais uma ação de marketing do que a popularização de uma modalidade efetiva. “Os laboratórios de manipulação de injetáveis querem vender e, para isso, apresentam uma receita de bolo para os médicos: soro tal para a questão tal. Como os ganhos são muitos, eles saem aplicando soro em todo mundo”, acredita Marcella Garcez, médica nutróloga, professora e diretora do Departamento de Fitoterápicos e Nutracêuticos da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran).

Mari Krüger concorda. “Os profissionais recebem muito dinheiro com isso”, afirma. Um de seus vídeos sobre o assunto viralizou e acabou assistido 1,3 milhão de vezes. Com a popularidade do material, o Conselho Regional de Medicina do Paraná usou a publicação como base para entrar na Justiça e proibir cursos de soroterapia para profissionais sem formação em medicina. “O problema não é só que a coisa toda está sendo realizada por não médicos, mas também o fato de os médicos ganharem com algo que não possui indicação para todo mundo”, analisa a influenciadora.

Como começou

A administração de nutrientes dessa forma existe desde a década de 1970, quando o médico americano John Myers desenvolveu e realizou os primeiros tratamentos intravenosos de vitaminas. O coquetel de Myers, usado até hoje em hospitais, consiste em altas doses de vitaminas do complexo B, vitamina C e minerais, como magnésio e cálcio.

A aplicação de soro saiu dos hospitais e ganhou as clínicas junto com a popularização da cirurgia bariátrica. Alguns pacientes que passam pela operação, que reduz o tamanho do estômago e muitas vezes também do intestino para combater a obesidade, precisam de suplementação endovenosa. “Muitos deles, não todos, não absorvem mais esses nutrientes pelo sistema digestivo”, explica Marcella. Como se dirigir ao hospital com frequência para a terapia não se mostrava algo fácil ou recomendável, clínicas e consultórios de endocrinologia passaram a oferecer o serviço.

A cantora e influenciadora Jojo Todynho, por exemplo, virou adepta. Ela se submeteu à bariátrica em agosto de 2023. “Conheci a soroterapia na clínica dos meus médicos, João Marcello e Renata Branco. Meu objetivo é dar um ‘up’ na energia e fortalecer meu sistema imunológico. Faço, no mínimo, quinzenalmente. Na hora, parece que estou recebendo um ‘boost’ de energia, sabe?”, conta Jojo.

Banalizar a soroterapia para qualquer pessoa, entretanto, pode ser uma gastança de dinheiro à toa ou, nos piores casos, um perigo. “O que se vê é um rebranding, uma glamourização de uma coisa que já existia”, afirma Jade Cury, dermatologista do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Nessa estratégia, os marqueteiros mudam o nome de algo para dar mais brilho ao produto e vender mais.

Aconteceu, por exemplo, com a singela tilápia, peixe popular e baratinho há alguns anos. Recentemente, ela se tornou “saint peter” e o patamar de preço subiu.

“Com a soroterapia foi a mesma coisa. Antes se chamava terapia endovenosa e agora, com um nome novo, abre-se espaço para o charlatanismo”, diz Jade. “Se a pessoa não tiver indicação, comprovada por um exame de sangue que mostre as deficiências, não será só algo simples, que sairá no xixi, mas correrá risco de sérias complicações.” Uma dose exagerada de vitamina D, por exemplo, empregada nas misturas para fortalecer a imunidade, pode alterar o metabolismo do cálcio no organismo e trazer problemas renais. A administração desnecessária de ferro endovenoso pode provocar arritmia cardíaca, náuseas e reações alérgicas.

“"O que se vê é um rebranding, uma glamourização de uma coisa que já existia”, afirma dermatologista — Foto: Victor Amirabile
“"O que se vê é um rebranding, uma glamourização de uma coisa que já existia”, afirma dermatologista — Foto: Victor Amirabile
Não existe soro para fazer o cabelo crescer, por exemplo. Porém, a reposição de nutrientes se mostra, sim, benéfica e tem indicações.”
— Raquel Marques, médica do esporte

A própria aplicação por alguém sem conhecimento de medicina esbarra no risco de contaminação por bactérias ou vírus, como o da hepatite. E tem mais: se a pessoa que está injetando as substâncias não for um profissional de medicina, é caso de polícia, declara Marcella, da Abran. Por regulamentação da maioria dos conselhos regionais, somente médicos podem prescrever qualquer substância para ser administrada por meio das veias. E só profissionais de saúde (enfermeiros e, em alguns casos, farmacêuticos) podem espetar a agulha no braço dos pacientes.

Para Jade, se o interessado não possui deficiência de vitaminas e de sais minerais ou problemas para absorver nutrientes pelo sistema digestivo, ele não precisa de soroterapia. “Mesmo sabendo disso, muita gente ainda deseja tomar o soro, para ficar por dentro da modinha”, lamenta.

A Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD) também condena a prática. “Os medicamentos e nutrientes injetáveis endovenosos podem ser muito úteis em casos específicos de prescrição, mas não com a finalidade estética”, atesta o médico Sérgio Palmas, da direção da SBD. Para ele, a aplicação assim banalizada deveria ser totalmente vetada.

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