O rádio de madeira no balcão de casa

Por Christian Jung

 Este texto foi escrito originalmente para o site Coletiva.Net

O rádio SEMP em que ouvia o pai. Foto: Arquivo Pessoal

Na casa onde nasci e ainda moro, no período que tinha família com mãe, pai e irmãos morando juntos, havia um rádio de madeira da marca SEMP. Ficava em lugar privilegiado sobre o balcão da sala de jantar. Era nesse aparelho que ouvíamos as notícias, ao longo dos dias. Além da programação musical e os jogos de futebol.

Não por acaso, o rádio sempre esteve muito presente em minha vida e dos meus irmãos: era dentro daquela caixinha de madeira que nós escutávamos a voz do pai. Ele era o locutor do principal noticiário do rádio gaúcho, o Correspondente Renner, e narrador esportivo. O forte apelo emocional que o futebol tinha sobre o público e o fato de o rádio ser o único veículo a levar ao ar as emoções da bola, naquela época, faziam dos narradores esportivos, personalidades.

O pai era famoso pela precisão e velocidade na locução; e o jargão mais conhecido dos torcedores era o grito de gol: “Gol, gol, gol!”. E assim, por muitas vezes, quando andava com ele pelas ruas de Porto Alegre, escutava as pessoas gritando do outro lado da calçada:  “Milton Jung, o Homem do Gol, Gol, Gol!”

Mas voltemos ao SEMP. 

A imagem do velho rádio, que revi dia desses, me remeteu à ingenuidade da minha infância. Escutava o pai mais de uma vez por dia lendo as notícias “chatas de adultos”, que nada resolviam os meus problemas de criança. E diante dos meus momentos de malcriação, a mãe me repreendia e lembrava que o pai, dentro daquela caixinha, estava me escutando. 

Mesmo não achando muito provável, ao menos em frente ao rádio, procurava manter o silêncio. Era uma época em que a figura paterna impunha muito respeito. E os pais costumavam cobrar de forma austera. A bem da verdade, o pai não era desses de dar grandes broncas.

Apesar de desconfiar que estava sendo ludibriado, um fato me deixava em dúvida: ao voltar para almoçar em casa, o pai já sabia de tudo que eu havia aprontado. E ainda me chamava com o seu vozeirão: “Christian, o que aconteceu hoje?”. A ideia de que o rádio teria me delatado persistia. Sem perceber que era a mãe quem me entregava assim que ele chegava em casa. Por um bom tempo respeitei a caixinha de madeira da sala de jantar.

Hoje, é meu irmão que ocupa o espaço – dentro da caixinha de madeira – aliás, dentro do rádio e em rede nacional, mas meus sobrinhos não sofrem do mesmo terror – bem mais espertos e comportados do que o tio, logicamente. 

Sem contar que o modelo “rádio de madeira” virou item de colecionador. Atualmente, são várias as plataformas que permitem a transmissão das notícias e levam a informação a locais muito mais distantes. Não se corre mais o botão do dial para sintonizar a emissora preferida. Basta apertar a tecla ou usar o comando de voz para se ouvir a rádio e o locutor desejados.

Se acessar as notícias ficou mais fácil, o mesmo não se pode dizer da tarefa de unir a família no almoço. Ainda mais quando, na maioria das vezes, as cabeças sequer olham as panelas sobre a mesa porque estão afundadas na tela do celular.

Para que não seja indevidamente difamado: lá em casa, não aprontei muito, e aprendi de mais sobre o poder da comunicação.

Este texto foi escrito, originalmente, para o site Coletiva.Net

Christian Jung é publicitário, locutor e mestre de cerimônias ([email protected])

Erros humanos: a pressão da perfeição e o caso de Ludmilla no GP de São Paulo

Por Christian Müller Jung

Reprodução de imagem da transmissão oficial do GP Brasil da F1

A psicanalista clínica Jassanan Amoroso Dias Pastore, em seu artigo “Quem é o Culpado,” escreveu:

“O ideal de perfeição, característica do contemporâneo, contribui para o desenvolvimento da culpa, na medida em que o aparecimento de qualquer erro, inerente a todo processo de aprendizagem, é sentido como um fracasso.”

Na nossa sociedade, o erro é visto como falha, incapacidade e até mesmo incompetência! Somos tão cobrados pela eficiência que cometemos julgamentos, jogamos a empatia para debaixo do tapete e prontamente apontamos o dedo!

Refiro-me ao “erro” neste artigo — e já falei sobre os meus como MC em solenidades em outra oportunidade — pelo ocorrido nos últimos dias com a cantora Ludmilla, no GP de São Paulo de Fórmula 1. Ela teria esquecido a letra do Hino Nacional. Negou o esquecimento e alegou que houve uma falha no som do microfone. Independentemente do que tenha acontecido, de imediato, o tribunal das redes sociais já lhe atribuiu o julgamento de gafe, desrespeito ao símbolo nacional, falta de preparo, enfim, uma série de adjetivos negativos que colocam em dúvida a capacidade do ser humano.

Não me canso de falar, ao vivo tudo é muito diferente. Tudo pode acontecer, até mesmo quando nos sentimos extremamente preparados e capacitados para tal. O que nos permite ser melhores que a inteligência artificial em matéria de sentimentos e humanidade, por outro lado, nos torna cruéis em não admitir que nem tudo que se faz é por querer e que os erros podem sim acontecer.

Pode ter sido excesso de confiança? Pode! Pode ela ter ensaiado várias vezes e não ter errado nenhuma? Pode! Poderia ela ter utilizado o recurso da leitura para acompanhar e não dar chance ao erro? Sim, tudo isso pode! Mas aconteceu! Ou, aparentemente, aconteceu! E, mais do que o nosso constrangimento, para Ludmilla, talentosa na arte de cantar, o julgamento interno deve estar cobrando a cada instante que se lembra do ocorrido, ainda que tenha se tornado uma estrela nesse caldeirão cultural que consome artistas de uma hora pra outra.

De origem humilde, filha de dançarina que teve o pai preso quando tinha apenas um mês e treze dias, não pode errar. Sim, ela deve se cobrar muito mais do que dizem as redes sociais, entre um copo e outro de cerveja na mesa do bar. Somos perfeitos e imbatíveis, mas, na maioria das vezes, não colocamos a cara para bater.

E amanhã, quem será o próximo? O nosso Hino Nacional não tem uma letra fácil, e certamente você já ficou só mexendo os lábios durante uma execução ou já trocou alguma estrofe. É natural. Mas a menina que um dia foi pobre não pode errar. 

Acompanho o trabalho da fonoaudióloga Thays Vaiano, que cuida de inúmeros talentos, entre eles a cantora Ludmilla. O que demonstra, por parte da artista, o respeito e responsabilidade que tem com o seu instrumento de trabalho, a voz e com a própria carreira! Aliás, é da Thays o termo que gosto de utilizar de “ATLETAS DA VOZ!” Sim, porque é isso que nós que usamos essa ferramenta de comunicação somos. Ainda sim, seremos eternamente dependentes da nossa memória. E são inúmeros os pensamentos na hora do “AO VIVO” e os atrativos visuais que podem nos tirar da linha de raciocínio e nos levar à falha.

E, certamente, ouviremos do Ipiranga às margens FLÁCIDAS (como dito pelo ex-presidente da República em vídeo que pode ser conferido na internet), se erguer a clava forte da justiça e aí entenderemos que errar o Hino não é descaso nem desrespeito, é humano, assim como aconteceu com a Cantora Fafá de Belém, Vanusa, Luan Santana e Carlinhos Brow. Diga-se de passagem, já vi um cantor de ópera errar e um secretário de cultura que também é cantor se atrapalhar com a letra!

Talvez, um dia (não creio), veremos que um filho teu não foge à luta, nem teme, quem te adora, a própria morte, terra adorada, entre outras mil, os filhos deste solo tentam, mas não conseguem assim como tu ser mãe gentil, Pátria amada, Brasil!

Christian Müller Jung é publicitário de formação, mestre de cerimônia por profissão. Colabora com o blog do Mílton Jung — o irmão dele, com muito orgulho.

Pais, onde estamos na vida de filhos com deficiência?

Christian Müller Jung

Foto de Dobromir Dobrev

Esses dias assistindo a um desses programas dominicais na televisão deparei com mais uma reportagem a respeito da criação de filhos com deficiência.

Sem surpresa na abordagem. Lá estavam, novamente, duas coisas que me incomodam quando o tema é tratado. Primeiro, a figura paterna não existe. Segundo, o amor pelos filhos com deficiência é colocado em uma escala acima daquele que se tem pelos filhos sem deficiência.

Vamos partir do princípio que todo filho é uma dadiva. O amor incondicional não passa a existir com a presença ou não de uma deficiência. Existe porque existe. Porque se ama. Se é que você me entende!

Evidentemente, o envolvimento com o filho deficiente tem maior intensidade em razão dos cuidados, físicos e psicológicos, que ele exige. Ter um filho deficiente mesmo que seja uma escolha, como no caso de adoção, não é tarefa fácil! Deixe-me, porém, voltar ao assunto dos pais.

Como sou pai de uma menina deficiente, eu sei e já vi muitas dessas histórias de pais que pulam fora quando o problema surge. Não suportam o tanto de dedicação e paciência que é preciso, porque a partir daquele momento, em muitos casos, não se terá um filho que será independente quando chegar na fase adulta. Teremos alguém que vai precisar da gente para o resto de nossas vidas. Tem-se ainda a real preocupação do que será deles e quem os cuidará, já que pela expectativa de vida nós iremos embora antes deles. Não é coisa pra gente fraca!

Porém, conheço muitos pais que são exemplo de dedicação. Pais que casam com mulheres que já tem um filho deficiente e foram deixadas de lado no primeiro casamento por este motivo.

Pais que assumem com o maior carinho esse filho como sendo seu de sangue. Superam qualquer problema futuro em nome de um amor e dedicação. Pais que dividem a tarefa pesada da criação de um filho deficiente com a mãe dando equilíbrio a um casamento que algumas vezes se abala com esse inesperado acontecimento e que ninguém saberá lhe dar apoio a não ser o próprio tempo.

Eu sei o que fiz pela minha filha e o que venho fazendo. Quando ficamos sabendo que teríamos uma menina, pintei todo o quarto, montamos tudo para recebê-la da melhor forma. Por quase dois meses, com ela em coma, tinha que passar pela porta e ver o berço vazio sem saber se algum dia ela iria deitar ali. Lembro de quantas noites, depois dela ter chegado em casa, dormi no chão ao lado da cama com medo que ela tivesse uma convulsão como tantas que já tivera no hospital. Medo que parasse de respirar ou qualquer coisa do tipo. 

Você se dedica, se envolve, compartilha funções com a mãe, o casal enfrenta todas as barras pesadas que surgem no seu caminho e quando chega ao médico – e fomos há muitos neste tempo todo – você é considerado apenas uma figuração. O pai participativo não existe para aquele especialista. É como se falássemos com as paredes.  Eles olham e prestam atenção na mãe. O pai não existe, mais ou menos assim como nas reportagens da TV.

Claro que nem todos os médicos agem desta maneira, mas é preciso que se saiba que nem todos os pais agem da mesma maneira, também. É necessário entender a realidade de cada família.

Agora, pense comigo, se até profissionais acostumados com o cotidiano das crianças com deficiência nos tratam assim, imagine na reportagem da televisão.

Como escrevi logo no início, o outro aspecto que me incomoda é maneira como os filhos com deficiência são descritos. Por favor, não me veja como alguém cruel. Mas essa áurea de algo especial é muito mais bonita nas reportagens do que no dia a dia de quem se dedica a buscar uma melhor qualidade de vida aos seus filhos. E de forma geral as abordagens referentes aos filhos com algum tipo de problema é que eles são muito especiais. Sim, é lógico que são! Como todos os filhos são especiais para nós! Todos exigem cuidado, atenção e dedicação. 

Sem dúvida, quem tem maiores limites exigirá mais do que os que caminham e pensam por conta própria. Aliás, um alerta: é preciso cuidar muito desses que caminham e pensam por conta própria, porque eles também correm o risco de serem esquecidos em detrimento dos filhos com deficiência. E sabemos como é importante e necessário a atenção dos pais nas diversas fases da vida, sabemos das carências que eles tem, das dúvidas, das contradições que a infância e a adolescência nos impõe.

Não quero com este texto que você pense que sou um pai revoltado ou desgostoso com o que a vida me preparou, mas quero sim que saiba que a vida que levamos com os filhos deficientes é muito diferente de uma propaganda de margarina. Muito diferente da maioria das reportagens que assistimos. É uma vida dura, sim. Por vezes, é triste. É de eterna adaptação, é de estado de alerta. Muitas vezes temos de nos levar a superação para tolerar até mesmo comportamentos intempestivos. Fazemos de cada limão uma limonada. Tentamos tornar os dias o mais próximo do que idealizamos para eles. E, claro, também, sorrimos, nos emocionamos e comemoramos. 

Porque somos pais presentes, existentes! 

Christian Müller Jung é publicitário de formação, mestre de cerimônia por profissão e pai da Vitória e do Fernando. Colabora com o blogo do Mílton Jung — o irmão dele, com muito orgulho.