Para as filhas de Madonna

Diego Felix Miguel

Prezado leitor, escrevo essas linhas informando que sou fã da Madonna, mas que esse texto não é exatamente sobre isso, e sim, sobre reflexões que nos últimos dias me tiraram o sono, no sentido literal da palavra. Portanto, tento conter meu lado apaixonado pela artista, e me debruço sobre pensamentos a cerca do envelhecimento e velhice que me inquietam. Boa leitura!

Reprodução do X

No show de encerramento da turnê *Celebration*, em 4 de maio de 2024, em Copacabana, Madonna celebrou seus 40 anos de carreira. A diva do pop não pisava no Brasil há 12 anos, e o clima pré-show no Rio de Janeiro era de réveillon, com programas especiais, documentários e entrevistas aumentando a curiosidade sobre o que viria.

Mesmo acompanhando pela televisão, era possível sentir a energia e a emoção dos fãs. Entre discos de vinil e objetos raros, todos compartilhavam histórias com carinho e devoção. Mas uma pergunta ecoava: de onde vinha essa admiração?

Cada resposta era única, mas uma, em particular, me perturbou. Um rapaz de cerca de 35 anos disse: “Ela é uma mãe para mim.” Como poderia alguém atribuir a uma artista um título tão romantizado e nobre quanto “mãe”?

Seu semblante emocionado me prendeu à tela, atento à sua história. Ele contou que Madonna fez parte de sua adolescência e, por meio de sua poética, apresentou-lhe um mundo onde ele poderia ser ele mesmo, sem medo de ser feliz. Sua declaração me inquietou profundamente. Passei a noite ansioso para assistir ao show, mesmo que pela TV.

A fala sobre o sentimento materno daquele rapaz ainda estava latente em mim na manhã seguinte.

Vou reescrever o trecho “O show, a velhice e a minha história” com base nas observações feitas anteriormente, visando torná-lo mais conciso, mas mantendo a lógica e a estrutura do pensamento.

O show de Madonna, a velhice e a minha história

Na noite de sábado, o show começou, e ao me deparar com Madonna envelhecida e com movimentos corporais mais contidos do que em outras oportunidades, fui confrontado com meu próprio processo de envelhecimento. Por alguns minutos, meus pensamentos se desviaram do show para outra questão: quando conheci Madonna?

Minha memória é vaga, mas acredito que foi aos três ou quatro anos, quando vi a capa azul-marinho do disco de vinil com uma mulher loira de perfil, demonstrando no rosto uma sensação gostosa de brisa leve e fria numa noite de calor. A combinação de cores e sua postura esbanjavam elegância.

Lembro-me de adorar ouvir o refrão “true blue, baby I love you” e de sentir vontade de dançar celebrando a energia incrível de “where’s the party, I want to free my soul”. Perdi-me nessas lembranças, e após 35 anos, compreendi que na minha primeira infância, mesmo sem entender inglês, eu só queria ter uma alma livre, como se já sentisse as dificuldades que viriam por ser quem sou.

Naquela época, Madonna já parecia velha — pelo menos na perspectiva de uma criança de três ou quatro anos — mas continuou embalando hits e videoclipes que, na minha adolescência, mostraram a possibilidade de ser quem sou, sem medo. Posso dizer que compartilho o mesmo sentimento materno que aquele rapaz expressou na entrevista.

Madonna me encorajou a ser forte, resiliente e resistente diante das ameaças do mundo, mesmo com as incertezas que permeiam essa fase da vida tão importante, quando precisamos de apoio sincero e incondicional das pessoas que integram nossa família sanguínea. Contudo, nem sempre temos esse apoio na intensidade que precisamos para nos sentir protegidos e aceitos.

Somos filhas de Madonna

Madonna tem personificado uma alma materna, especialmente ao defender corajosamente as minorias sociais—pessoas frequentemente vulneráveis, marginalizadas e até mesmo ameaçadas de morte. Sua escolha de abraçar, acolher e apoiar se destaca em contraste com muitas famílias consanguíneas que falham em transcender barreiras socioculturais e acabam se voltando contra seus próprios membros.

A dedicação da cantora às suas lutas destaca o envelhecimento e a velhice de grupos frequentemente invisibilizados pelo machismo, racismo, LGBTfobia e conservadorismo social. Em seu show em Copacabana, que refletiu sua biografia no repertório, Madonna se apresentou como uma mulher que desafia os papéis impostos, lutando por igualdade de poder, justiça social, liberdade sexual, e contra a violência e o feminicídio.

Além disso, ela traz visibilidade para questões críticas, como a violência contra mulheres trans e travestis, cujo envelhecimento é frequentemente marcado por hostilidade ou é tragicamente cortado pela morte precoce. Vivemos em um país que lidera estatísticas de violência contra a comunidade LGBTQIA+, onde pessoas trans têm uma expectativa de vida reduzida. Madonna uniu sua voz à de milhares durante a crise da AIDS nos anos 80 e 90, desafiando a marginalização e promovendo acesso a tratamentos.

Importante também é seu posicionamento contra o idadismo, ao insistir em viver plenamente em uma sociedade que muitas vezes tenta suprimir os idosos. Seja por suas escolhas estéticas ou por suas habilidades físicas adaptadas à idade, ela quebra estereótipos sobre o que idosos podem e devem fazer—como uma mulher de 65 anos que não teme expressar sua sexualidade e desejos abertamente.

Madonna nos apresenta a uma Velhice Libertária, frequentemente oculta porque desafia convenções sociais confortáveis, mas restritivas. Esta perspectiva de velhice, rica em autonomia e diversidade, alimenta minha paixão pela Gerontologia, uma ciência que nos incentiva a reconhecer a diversidade para além de nossa compreensão habitual e a questionar as zonas de conforto que limitam a expressão plena da vida.

Diego Felix Miguel, doutorando em Saúde Pública pela USP, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção São Paulo e Gerente do Convita – serviço de referência para atendimento de pessoas idosas imigrantes e descendentes de italianos. Escreve a convite do Blog do Mílton Jung.

A Parada da Longevidade, em SP, convida você a olhar às diversas velhices

Diego Felix Miguel

Foto de Rene Asmussen

Por que falar de longevidade?

A pergunta deveria ser ao contrário: O por quê de não falar?

Penso que envelhecimento e velhice não sejam temas tão encorajadores para serem falados e refletidos socialmente em nosso cotidiano, sendo associados à ausência de beleza, doença, incapacidade e improdutividade. Talvez, por isso, negligenciamos esse aspecto que nos é tão caro: afinal, viver mais anos e usufruir da velhice é uma grande conquista social, apesar de ainda enfrentarmos tantos desafios que podem interferir diretamente nessa fase da vida.

O envelhecimento está em nós desde o nascimento e desejo fortemente que possamos vivê-lo por muitas décadas. Afinal, só deixaremos de envelhecer quando não mais vivermos.

Infelizmente, vivenciar o envelhecimento por muitos anos não é algo que depende apenas de nós. Vivenciamos ao longo da vida várias oportunidades que podem ou não favorecer esse processo, assim como, situações que podem afetá-lo diretamente, como é o caso da pobreza, violência e iniquidade.

A desigualdade social é um dos aspectos que mais preocupam a Organização Pan-Americana de Saúde – a OPAS, que estabeleceu a “Década do Envelhecimento Saudável nas Américas: 2021-2030” como forma de concentrar esforços do Estado e da sociedade, a fim de garantir que as pessoas vulnerabilizadas também tenham seus direitos garantidos para vivenciar uma velhice ativa, digna e saudável.

De acordo com o Mapa da Desigualdade da Rede Nossa São Paulo, em 2023, o município de São Paulo apresentou dados alarmantes sobre a média da expectativa de vida em bairros que são relativamente próximos, como é o caso de Jardim Paulista e Itaim Bibi, que estima 82 anos em contraponto à Anhanguera, que chega a 59 anos de idade.

Diante desses dados associados às regiões onde a violência e a pobreza são também desproporcionais, me pergunto: a quem cabe o direito de viver mais?

Sabemos que viver mais não é um triunfo meramente biológico, é também psicossocial, em que todos nós, direta ou indiretamente, somos responsáveis por esse contexto, enquanto cidadãos e cidadãs que vivem em sociedade.

É justamente para esse ponto que a OPAS chama atenção: precisamos ressignificar como vemos a velhice, romper com mitos e estereótipos que reforçam o preconceito e a discriminação em detrimento a idade e demais aspectos que podem nos colocar em condições de vulnerabilidades ainda maior.

Como será a velhice do outro?

A velhice é transversal — ou como dizemos nas Ciências Sociais, intersseccional — aos demais aspectos que compõem nossa identidade e nos colocam em lugares sociais específicos, permeados por oportunidades ou iniquidades.

Como será a velhice de pessoas negras numa sociedade racista? Elas, ao longo da vida, possuem as mesmas condições de acessos à saúde, educação e trabalho que pessoas brancas? Costumamos escutar e acolher suas percepções e vivências sobre esse assunto?

Qual lugar ocupam as mulheres idosas na sociedade? Elas tendem a se cuidar mais ao longo da vida, mas sabemos que também chegam na velhice com maiores complicações de saúde, principalmente com agravos crônicos. A sobrecarga do trabalho e a cobrança social que sofrem são extremamente perversas.

E as pessoas idosas LGBTQIA+? Como chegam na velhice? Quem são as pessoas que envelhecem com elas? Os serviços (e as pessoas que atuam nele) acolhem, respeitam e valorizam a diversidade sexual e de gênero? Quais são suas necessidades sociais e de saúde?

Pessoas idosas que vivem com demências ou com limitações funcionais ou cognitivas possuem acesso ao cuidado adequado? Suas famílias conseguem oferecer o melhor para essas pessoas nesse contexto?

Participe da Parada da Longevidade

Considerando a diversidade de envelhecimento e velhices, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção São Paulo, alinhada às diretrizes da OPAS, organizou a Parada da Longevidade, que acontecerá na Avenida Paulista, no dia 24 de março às 09h, em frente da FIESP.

É um evento para todas as pessoas de diferentes realidades etárias e socioculturais.

O objetivo é justamente esse: dar visibilidade aos diferentes contextos do envelhecimento que vivemos e das velhices possíveis, assim como, fortalecermos vínculos em uma rede gerontológica composta por diferentes sociedades e conselhos profissionais, serviços sem fins lucrativos voltados às pessoas idosas, gestores de políticas públicas voltadas ao envelhecimento e serviços especializados em atendimento à pessoa idosa.

A programação foi organizada a partir das palavras de ordem  do Relatório Mundial sobre o Idadismo: como pensar, sentir e agir a favor do envelhecimento ativo e saudável.

Informações e inscrições gratuitas aqui

Diego Felix Miguel, doutorando em Saúde Pública pela USP, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – Seção São Paulo e Gerente do Convita – serviço de referência para atendimento de pessoas idosas imigrantes e descendentes de italianos. Escreve a convite do Blog do Mílton Jung.

Quem acolhe as pessoas idosas que vivem com HIV?

Por Diego Felix Miguel

Foto de Anna Shvets

O Dia Internacional de Luta contra a AIDS, celebrado em 1º de dezembro e instituído em 1988 pela Organização das Nações Unidas, visa aumentar a visibilidade das demandas de pessoas que vivem com HIV, contribuir para a desmistificação e promover uma compreensão mais aprofundada da infecção na sociedade, tratando-a como uma questão de saúde pública.

A intersecção do idadismo, que é o preconceito e discriminação pela idade, com a sorofobia, que é a aversão contra pessoas vivendo com HIV, representa um dos grandes desafios enfrentados por profissionais que atuam com idosos e se empenham em reforçar as boas práticas em Geriatria e Gerontologia.

Quando levamos em conta aspectos diversos que formam nossa identidade, como gênero, raça, cor, orientação sexual e etnia, torna-se evidente a iniquidade no acesso a informações e orientações eficazes sobre prevenção e tratamento digno disponíveis para todos.

A desigualdade social agrava a vulnerabilidade e expõe as pessoas idosas a várias formas de violência. Entre elas, destaca-se a solidão e a falta de uma rede de apoio que permita compartilhar, com confidencialidade, desejos e práticas sexuais sem o medo de julgamento ou de exposição vexatória em redes sociais, o que perpetua a ideia ultrapassada de uma velhice assexuada, heteronormativa e conservadora.

Por isso, esclareço o título deste artigo: “Quem acolhe as pessoas idosas que vivem com HIV?”.

A palavra “acolher” aqui não deve ser entendida como um reforço do estereótipo de que pessoas com HIV sejam dependentes e necessitem de ajuda, mas sim que a ciência mostra diariamente o quanto é possível gerir a doença e manter uma vida saudável e ativa com o tratamento adequado.

Acolhimento, neste contexto, significa o quanto estamos dispostos a eliminar preconceitos. Sabemos que qualquer pessoa sexualmente ativa pode estar sujeita a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e isso não está associado à promiscuidade, mas à necessidade de repensar os ‘juízos de valores’ baseados em visões conservadoras.

No que diz respeito a autocuidado e prevenção, o importante não é o número de parceiros(as) sexuais, mas sim como cada um cuida de si, os métodos de prevenção escolhidos e, fundamentalmente, um processo de autoconhecimento.

Devemos também atualizar nossa abordagem. O preservativo é apenas uma das várias opções de prevenção disponíveis.

Refletir sobre o impacto traumático de imagens de pessoas com infecções avançadas é crucial; abordagens que geram medo apenas reforçam estigmas e culpabilizam, perpetuando preconceitos e discriminações enraizados em nossa percepção do que é aceitável na intimidade e prazer entre pessoas.

A sorofobia cria uma desigualdade de poder ao ignorarmos a confidencialidade e ao nos fecharmos para novas realidades e práticas sexuais. Enxergar as ISTs de maneira estigmatizante apenas fortalece a noção de culpa em indivíduos que são, na realidade, vítimas de um sistema injusto.

É essencial estarmos abertos para entender a sexualidade em toda a sua complexidade, incluindo estratégias de prevenção atualizadas como a Profilaxia Pré-exposição (PrEP), Profilaxia Pós-exposição (PEP) e a Prevenção Combinada, que engloba a redução de riscos, todas disponibilizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Além disso, é importante ressaltar que pessoas que vivem com HIV têm acesso a tratamentos eficazes que garantem sua qualidade de vida e, quando estão com carga viral indetectável, não transmitem o vírus através de práticas sexuais.

O debate sobre o HIV não deve ser limitado aos profissionais de saúde ou gestores de políticas públicas; é um tema pertinente a todos nós, cidadãos que formamos a sociedade, e devemos participar ativamente dessa luta, unindo-nos contra a sorofobia.

Mais informações no site da Unaids

Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e membro da Diretoria da SBGG-SP, gerente do Convita – Patronato Assistencial Imigrantes Italianos, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve a convite do blog

Envelhecer com dignidade e amor: as reflexões inspiradas pela jornada do Sr. Duílio

Por Diego Felix Miguel

Seu Duilío Rossi em foto de arquivo pessoal

Homens e mulheres envelhecem de maneiras distintas, não  apenas por razões biológicas, mas devido à intersecção entre diversos fatores determinantes pela sociedade e cultura.

É conhecido que a velhice é feminina e cisgênera[1]: as mulheres idosas vivem mais que os homens; muitas são solteiras ou viúvas e estão mais propensas a participar de atividades em grupos, como  centros de convivência, onde a presença masculina é disputada, principalmente em oficinas como Dança de Salão.

Sob uma ótica sociocultural, as mulheres são condicionadas ao cuidado. Se cuidam mais para prover a assistência aos seus familiares e pessoas mais próximas. Isso não quer dizer que envelheçam em melhores condições, visto que acumulam funções ao longo de sua vida, entre trabalho formal, atividades domésticas e atenção à família, e pouco conseguem se dedicar à sua saúde. 

Um outro dado importante é sobre o preconceito do homem em integrar centros de convivência para pessoas idosas. Sem dúvida, envelhecer numa cultura machista, que posiciona o homem como principal responsável por prover o sustento da família e o incentiva a não se cuidar ou ser cuidado, o submete à velhice numa condição de maior vulnerabilidade, mais exposto a doenças incapacitantes e ao isolamento social.

Experiências pessoais e aprendizados no Convita

Nos últimos anos tenho me dedicado à gestão de um centro de convivência e de referência para pessoas idosas imigrantes italianas, o Convita – Patronato Assistencial Imigrantes Italianos. Esse serviço foca duas frentes: o suporte assistencial para pessoas idosas em situação de vulnerabilidade social e a promoção de saúde, com uma programação de atividades que favorecem o bem-estar físico, mental e social.

Com o retorno das atividades presenciais, após a pandemia de Covid-19, o centro de convivência se desenvolveu. Com o crescimento do número de participantes e atividades, tive a oportunidade de conhecer novas histórias que tem contribuído bastante para meu processo de aprofundamento e aprendizagem na área do envelhecimento.

No primeiro semestre deste ano, numa manhã ensolarada de uma segunda-feira, escutei uma conversa entre a equipe sobre um senhor que há poucos dias havia realizado o cadastro e as inscrições para participar dos cursos que oferecemos. O que me chamou atenção foi o entusiasmo dos comentários, dizendo que, em tão poucos dias de participação, ele estava se destacando pela educação e gentileza com que tratava todas as outras pessoas, além de provocar uma atenção especial das mulheres idosas que também frequentam o serviço, a maioria solteira ou viúva.

Decidi conhecer esse senhor e, antes mesmo de sermos apresentados, já o reconheci. Poucos minutos após minha curiosidade ser despertada, ouvimos uma batida na porta de nossa sala e ele pediu permissão para entrar. Era um homem alto, de pele e cabelos brancos, e suas roupas denunciavam a sua vaidade e autocuidado. 

Conheci o Sr. Duílio Rossi, que imediatamente chamou a atenção por sua linguagem culta e gentileza: pedindo licença e desculpas por interromper nossa conversa, tratando-nos por “senhor” e “senhora” e desejando-nos “um bom dia de trabalho”. Naquele momento, notei outro aspecto marcante de sua presença: o brilho em seu olhar e um sorriso que transbordava afeto.    

Desde então passei a reparar com mais refinamento sua postura, principalmente durante as atividades, onde vivia rodeado de idosas. Não associo isso apenas a um aspecto romântico ou sexual, mas à atenção e ao cuidado ao conversar e escutar. Nas interações, ele fazia questão de enfatizar as qualidades da outra pessoa e demonstrava interesse no assunto que estava sendo compartilhado.

A reintegração social do Sr. Duílio

O Sr. Duílio tem 82 anos, é descendente de italiano e conheceu o Convita a partir da indicação de sua filha, a Miriam, uma idosa de sessenta e poucos anos que é sexóloga. Pelo que percebi, ela foi a principal motivadora para que seu pai superasse o luto de 13 anos após a viuvez.

Durante anos ele se dedicou a ficar em casa, onde mora sozinho, mantendo a relação com a família e vizinhos, sem muitas oportunidades de pensar sua vida com novas perspectivas e projetos.

Em algumas semanas de intensa participação no centro de convivência, ele começou um novo relacionamento romântico, dedicando-se a cuidar e permitindo-se ser cuidado. Isso gerou uma significativa mudança nas relações entre as pessoas idosas que também participam das atividades. 

O assunto rapidamente tomou conta das conversas das pessoas idosas e não demorou muito para que outros casais começassem a flertar e a vivenciarem uma nova história.

Esse movimento gerou uma transformação em nosso serviço, uma ressignificação cultural, favorecendo que outras pessoas idosas pudessem compartilhar com muito mais naturalidade e segurança seus sentimentos, receios e desejos, ao viver uma nova fase da vida. Assim, percebemos novas demandas que ainda são desafios a serem superados.

Família, autonomia e a vivência da sexualidade na velhice 

É inconcebível que idosos, com autonomia preservada, peçam autorização da família para viver uma nova paixão, amor ou apenas buscar seu prazer sexual. Esse assunto foi um dos mais comentados quando o novo casal que se formou, que teve apoio da família, tornou pública sua relação. 

Muitas pessoas idosas se tornam reféns de uma convenção social, impedidas de exercerem sua sexualidade de forma livre, por conta do idadismo (estereótipo, preconceito e discriminação por conta da idade), de ideias e posturas conservadoras, baseadas em preceitos moralistas e religiosos. Esses contextos expõem essas pessoas a vulnerabilidades, como violência, doenças e isolamento, além de comprometer a sua autonomia, um dos aspectos relevantes do envelhecimento ativo.

Por isso, é importante falarmos e investirmos em ações que favoreçam a reflexão acerca dos desejos e relações que vivenciamos ao longo da vida, seja em nosso meio familiar, social ou profissional. Não se trata apenas de palestras ou de limitar o assunto à saúde biológica, mas sim, de aproximarmos e valorizarmos oportunidades de novas vivências românticas e sexuais livres de todo e qualquer preconceito, num processo que favoreça o acesso à informação e um diálogo respeitoso e acolhedor. 

Não sabemos ao certo qual o desfecho dessa relação romântica vivenciada pelo Sr. Duílio, pois reconhecemos que é uma questão privada do casal. No entanto, independentemente de quanto tempo dure, essa relação já transbordou e influenciou positivamente muitas pessoas, idosas ou não, promovendo novas percepções e reflexões sobre um tema que ainda é negligenciado. Mostra que é possível vivenciar a sexualidade, seja por meio de uma relação romântica ou sexual, permitindo-se sentir prazer e tudo associado a ele, promovendo saúde. 

[1] Pessoas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento.

Diego Felix Migue é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e membro da Diretoria da SBGG-SP, gerente do Convita – Patronato Assistencial Imigrantes Italianos, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP.

Quem cuidará de nós?

Por Diego Felix Miguel

Foto de Georgy Druzhinin

Quantas vezes tivemos a oportunidade de refletir sobre como estamos envelhecendo? Ou ainda, sobre as condições que teremos na velhice? E aqui tomo a liberdade de problematizar um pouco mais, em não limitar essa reflexão a uma visão estritamente biológica.

Com quem chegaremos na velhice e será que essa ou essas pessoas estarão dispostas ou terão condições de cuidar de nós em caso de necessidade?

O aumento da expectativa de vida é uma conquista e talvez a maior evidência do quanto crescemos cientificamente e em estruturas socioculturais que foram fundamentais para a longevidade.

Relações e cuidados na velhice

Muitas mudanças aconteceram nos últimos anos e não necessariamente foram ruins, muito pelo contrário, comprovam que evoluímos e questionamos condicionamentos que reforçam a desigualdade nas relações de poder, o preconceito e a discriminação. 

As novas composições familiares que não atendem um padrão tradicional e heterossexual, o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a migração dos filhos motivados por novas oportunidades de trabalho e estudo, são apenas alguns exemplos desse novo contexto social, que torna diferente o olhar e a vivência sobre o cuidado na velhice. 

Desigualdade social na velhice

Infelizmente, no Brasil, não conseguimos resolver um problema que nos submete a um cenário de insegurança e vulnerabilidade: a desigualdade social; aspecto que nos últimos anos têm preocupado a Organização Pan-americana de Saúde, por considerar que na velhice podem surgir demandas complexas que necessitem de cuidados de longa duração, seja em âmbito domiciliar, em serviços de saúde ou de assistência social.

Os cuidados de longa duração, de modo geral, são os cuidados que demandam uma atenção especializada ou de auxílio de outras pessoas – em caráter de cuidadores, atuando no controle de doenças crônicas, reabilitação, residência e demais assistências que garantam a independência, a autonomia e uma maior qualidade de vida na velhice.

Políticas públicas e família

Por outro lado, políticas públicas com foco nos cuidados de longa duração caminham lentamente, e muitas vezes, com discursos que reforçam uma ideia pejorativa sobre os serviços, atribuindo à família a responsabilidade do cuidado, desconsiderando sua composição, a intensidade das relações e os vínculos afetivos constituídos ao longo da vida entre seus membros. Como mencionado na Constituição Cidadã de 1988:

“Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores,

e os filhos maiores têm o dever de ajudar

e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de

amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação

na comunidade, defendendo sua dignidade e

bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

§ 1o Os programas de amparo aos idosos

serão executados preferencialmente em seus lares.”

Cuidados de longa duração

Um exemplo disso são as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) – que antes eram conhecidas por “asilos”, e que trazem em sua história um estigma associado ao abandono, pobreza, solidão e incapacidade.

Além dos aspectos culturais que nos distanciam desses serviços, ainda nos deparamos com fatores econômicos, pois são serviços caros por demandarem um cuidado especializado.

No Mapa das ILPI do Ministério Público de São Paulo, consta que existem cerca de 2257 instituições no estado de São Paulo que acolhem aproximadamente 42 mil pessoas idosas, porém somente 498 dessas instituições são filantrópicas – a maioria de caráter religioso e 48 instituições são públicas.

Desafios do cuidado domiciliar

Ao pensarmos no cuidado da pessoa idosa em casa, também enfrentamos outros desafios, e neste sentido, darei ênfase a dois deles: como estamos vivendo mais, já é uma realidade conhecermos pessoas idosas que cuidam de outras pessoas idosas. Sejam cônjuge ou filhos que cuidam de pais – e vice e versa. Sabemos que há poucas estruturas de apoio para essas pessoas, que muitas vezes sofrem por sobrecarga de atividades e estresse.

Por outro lado, aumentaram significativamente empresas e profissionais que se dedicam ao cuidado de pessoas idosas, porém além de envolver um custo que muitas famílias não possuem condições de arcar, ainda não há a regulamentação dessa profissão, assim como, uma estrutura formal mínima pedagógica que padronizem a formação profissional.

Nos últimos anos, as questões relacionadas ao cuidado a pessoas dependentes, principalmente de pessoas idosas, estão tomando uma maior notoriedade pública, muitas dessas, que emergiram em decorrência da pandemia de covid-19 onde revelou o Brasil como um país idadista, que não valoriza as pessoas mais velhas, em especial, as que demandam de cuidados de longa duração e que vivem em ILPI, que, ainda estão invisíveis paras as políticas públicas brasileiras, conforme aponta a Carta-manifesto “Quem vai cuidar de nós quando envelhecermos?”, lançada em maio de 2023, em menção ao Decreto nº 11.460 de 30 de março de 2023, que instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar a Política Nacional de Cuidados e o Plano Nacional de Cuidados, onde, de acordo com governo, serão consideradas as desigualdades sociais, com recortes relacionados a raça e classe social.

Engajamento e futuro da velhice

Pensar sobre quem cuidará de nós, caso tenhamos essa necessidade em algum momento da vida, é fundamental, assim como, nos engajarmos politicamente, enquanto sociedade civil, para garantir que num futuro próximo, possamos vivenciar a velhice de uma forma digna, com acesso garantido aos cuidados especializados.

Diego Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e membro da Diretoria da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo

Minha conversa com Dora: a história inspiradora de uma mulher idosa lésbica que quebrou barreiras

Por Diego Felix Miguel

Reprodução do Instagram

No dia em que recebi o convite para escrever para este blog, a primeira pessoa que me veio à cabeça foi a Dora, uma das mulheres idosas que me inspirou a refletir sobre a velhice muito além das perspectivas convencionais.

Dora é lésbica, uma das primeiras idosas lésbicas assumidas que conheci. Faz questão de mencionar sua condição em toda oportunidade que tem, porque segundo ela, pouco pensamos ou falamos sobre a sexualidade e a orientação sexual de pessoas idosas, principalmente das LGBTQIA+. Isso prejudica a visibilidade para questões sociais e de saúde estão presentes nessa realidade.

O afeto sem medo de discriminação

Conheci Dora em 2017, no “Café e Memórias LGBT50+”, um encontro destinado à socialização e à convivência de pessoas idosas LGBTQIA+. É um evento organizado mensalmente pela Associação EternamenteSou, uma organização social sem fins lucrativos que atua em prol das velhices LGBT.

Desde então, sempre que a encontro, lembro da sensação que tive quando a conheci. Sempre disposta a abraçar e expressar palavras de afeto, Dora exala carinho e acolhimento, que muito se igualam a um amor maternal. É sempre muito gostoso estar com ela e experimentar esse sentimento, visto que, sendo LGBTQIA+, nem sempre vivenciamos esse bom afeto sem o medo de discriminação.

Passados quase seis anos do dia em que a conheci, cá estava eu, aguardando Dora numa lanchonete escolhida por ela no centro antigo de São Paulo. Queria saber mais sobre sua história de pioneirismo e coragem. A tarde estava chuvosa e fria.

Cheguei cedo, bem antes da hora marcada. A lanchonete estava praticamente vazia, apenas o vai e vem de pessoas que paravam rapidamente para comer alguma coisa. Enquanto esperava e observava a chuva, busquei na memória algumas histórias que já havia compartilhado com Dora para me preparar para o encontro.

O desafio do LGBTQIA+ ao serviço de saúde

Entre as lembranças mais marcantes estava a Dora ativista, que não perdia oportunidades para relatar, de forma incisiva, as dificuldades para ser bem atendida nos serviços de saúde, alertando para o preconceito e discriminação que mulheres lésbicas sofrem durante o atendimento. Foi dela que ouvi pela primeira vez que era quase impossível alguém como ela conseguir fazer exames ginecológicos: primeiro, porque alguns profissionais médicos consideram desnecessário o exame para pessoas que não praticam sexo penetrativo; e segundo, porque esses mesmos profissionais presumem que a pessoa idosa não é ativa sexualmente, com base simplesmente em sua idade. Não bastassem esses empecilhos, Dora contava também que, quando insistia em solicitar o exame, a título de prevenção e autocuidado, enfrentava o despreparo dos profissionais que não sabiam lidar com seu corpo, muitas vezes a machucando.

A denúncia de Dora confirma dados de pesquisas internacionais que apontam essa desigualdade de acesso aos serviços de saúde por parte das pessoas idosas LGBTQIA+. No Brasil, o geriatra e professor Milton Crenitte, coordenador do ambulatório de sexualidade do Hospital das Clínicas de São Paulo, foi pioneiro em apresentar dados que demonstram a iniquidade sofrida por mulheres idosas lésbicas em exames preventivos. Essa iniquidade é atribuída principalmente ao desconhecimento de profissionais em relação às questões inerentes a sexualidade e gênero, portanto colocando essas mulheres numa condição de maior vulnerabilidade e exposição a doenças como o câncer de colo do útero.

Um outro fator também endossa esse despreparo: o idadismo, que nos faz acreditar numa velhice assexuada e distante de temas relacionados a práticas sexuais. Mesmo quando se consegue transpassar essa visão, o resultado é a elaboração de uma estratégia de prevenção estereotipada, que dissemina o medo de doenças, e um reforço conservador sobre práticas sexuais, distantes da realidade de muitas pessoas LGBTQIA+.

Compenetrado em meus pensamentos, quase não percebi Dora me procurando na lanchonete. Fiz um sinal com as mãos, e enquanto ela se aproximava, observei uma certa alegria em seus olhos, que a deixava ainda mais linda. A senhora de pele escura, cabelos raspados à maquina e tingidos, tão vermelhos quanto seus lábios sorridentes, vestia uma blusa preta de veludo macio e com bordados brilhantes na gola. Em sua gargantilha dourada, um pingente em formato de coração trazia as cores do arco-íris, que estampava  seu orgulho por ser a mulher que se tornou.

Depois de um demorado abraço de reencontro, tentei iniciar a conversa a partir do que estava refletindo ali, mas fui delicadamente interrompido.

Dora queria contar a sua própria história.

Ajuda para ser quem se é

Aos trinta e poucos anos, Dora rompeu seu casamento heterossexual e se permitiu viver uma nova relação, dessa vez com uma mulher. Disse que esse processo, que aconteceu na década de 1990, só foi possível com o suporte social de uma instituição que frequentava e com a ajuda de uma terapeuta. O serviço comunitário tinha como missão o empoderamento feminino, com atividades fundamentadas em estudiosas do feminismo e que contribuíam para um olhar crítico em relação às desigualdades da relação de poder e violência contra a mulher.

Dora mencionou em vários momentos como o acesso a um serviço como esse, com um importante suporte emocional, a ajudou a ser quem realmente era e permitiu que conquistasse a sua autonomia. Sua vivência reforça o que diz a Organização Mundial da Saúde a respeito de oportunidades assim, por meio do conceito de Envelhecimento Ativo: os aspectos relacionados a autonomia (de escolha) e a independência (de ação) ao longo da vida são fundamentais para se experimentar uma velhice ativa e saudável.

Sabe-se que não é fácil romper a barreira sociocultural baseada na heterossexualidade, nem driblar os estigmas que cerceiam pessoas LGBTQIA+, como a promiscuidade, doenças, solidão e abandono.

Mas por meio de sua trajetória, Dora mostrou que estamos muito além dos estereótipos que nos desqualificam como pessoas. Mais que isso: ela provou que a vida de pessoas LGBTQIA+ não é  nem precisa ser baseada na heteronormatividade – convenções sociais baseadas numa perspectiva heterossexual.

Ela fala com carinho sobre o acolhimento de sua família quando passou a se relacionar com mulheres, da vida que construiu em conjunto com sua esposa e das amizades que conquistou ao longo de sua história, tão preciosas e importantes para seu suporte social.

Porém, nem tudo “foram flores” em sua história, mesmo depois de “se assumir” lésbica. Dora sentiu na pele, por exemplo, o que é viver um relacionamento abusivo, inclusive com episódios de violência – viu, então, que o machismo é violento e perverso e, infelizmente, também pode ser reforçado por mulheres. Mais uma vez encontrou apoio para entender e superar essa situação no serviço comunitário que frequentava.

Dora também falou sobre o papel da religião em sua jornada – um ponto comum com a minha própria história. Num processo de autoconhecimento, conseguiu transpassar o ideário conservador de um Deus punitivo para um que ama a diversidade, num contexto em que o amor é um dos mais sublimes sentimentos, em todas as suas possibilidades. Para ela, era a sensação de validação da própria existência, não para os outros, mas para si mesma, onde pode se permitir ser feliz, sem medo ou culpa.

Uma vida em três horas

Aprendi com Dora que nossas histórias precisam ser compartilhadas. Muitas pessoas vivem em condições parecidas e, a partir das nossas vivências, podem encontrar o conforto e a motivação para romper com as estruturas sociais que ferem sua autonomia e independência. Esse reconhecimento pode evitar sofrimentos e situações de vulnerabilidade.

Hoje, Dora é vice-presidente da Associação EternamenteSou e exerce um papel essencial no fortalecimento da representatividade de mulheres idosas lésbicas na sociedade. Ela ocupa um lugar importante de participação social e resiste a uma cultura que muitas vezes, por conta do machismo, idadismo e tantos outros preconceitos, coloca mulheres idosas lésbicas em condições de discriminação, onde são submetidas a invisibilidade e silenciamento, sem a oportunidade de fala para apontar suas necessidades.

Dora, apesar de todas as dificuldades, se manteve fiel à sua essência e dia após dia abre caminhos para que outros consigam fazer o mesmo.

Conversamos por três horas. Nem vimos o tempo passar. Quando nos despedimos, a chuva finalmente havia dado uma trégua.

Diego Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e membro da Diretoria da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.

“Não sou velha, sou usada” 

Por Diego Felix Miguel

Foto de Mihuel/Pexels

Confesso que a frase que dá título a esse texto me abalou bastante e, agora, ao escrever essas linhas tento elaborar qual profundidade esse desconforto alcança relacionando-a a um contexto muito específico. 

Ela foi proferida por uma mulher transgênera de 70 e poucos anos que mora no extremo leste da cidade de São Paulo enquanto contava que para chegar no auditório onde estávamos, às nove horas da manhã, teve de acordar de madrugada e enfrentar um transporte público pouco confortável, como esperado (e naturalizado) para quem vive por aqui. Sabemos que essa é uma realidade para milhares de pessoas, principalmente aquelas que trabalham diariamente para conseguir sustentar a si e sua família; mas, naquele contexto específico, a presença dessa nobre senhora era voluntária, movida por uma força de vontade que muito me inspirou quando a conheci naquele dia.

O evento onde nos conhecemos foi organizado pela Prefeitura de São Paulo em virtude do dia 28 de junho – data que celebramos mundialmente o Dia do Orgulho LGBTQIA+  e reuniu profissionais, especialistas, líderes de movimentos sociais e autoridades, para conversar sobre questões relacionadas ao acesso de pessoas idosas LGBTQIA+ a serviços de cuidados de longa duração como Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI) — pejorativamente conhecidas por “asilos –, Centros-dia — um centro com foco no cuidado de pessoas idosas que precisam de auxílio para executar suas atividades de autocuidado durante o dia — e Centros de Acolhida Especiais para Idosos — um serviço voltado às pessoas idosas que demandam de um acolhimento temporário por estarem em situação de alta vulnerabilidade social.

Sem dúvida, a organização desse seminário foi louvável, haja vista as demandas complexas que envolvem essa realidade, infelizmente quase imperceptível para a maioria das pessoas. O lugar que ocupei no evento foi o de palestrante, considerando a minha trajetória de estudo, vivência e pesquisa nessa área.

A senhora em questão, que foi a grande inspiradora dessas linhas que escrevo, estava ali ocupando um espaço seu, por direito, e que muito além que qualquer estudo ou pesquisa, pode falar com grande propriedade sobre “o que é ser uma mulher idosa transgênera que mora no extremo leste do município de São Paulo” e, em algum momento da sua vida, pode ter necessidade de acessar algum desses serviços — logo, essa foi a oportunidade de expressar seus receios e percepções sobre o atendimento. 

Pouco antes do início das atividades, ela estava sentada na primeira fila, próximo a mim, e percebi que comentava com as pessoas da organização do evento sobre tudo que enfrentou naquela manhã para chegar até ali.  De forma sabiamente majestosa, posicionou-se dizendo algo relacionado à importância da sua presença naquele lugar sem mesmo ter sido nomeadamente convidada e, diga-se de passagem, que era um espaço majoritariamente ocupado por pessoas brancas, heterossexuais, cisgêneras – em conformidade com o gênero que foi atribuído ao nascimento –, e com menos idade que ela.

Trocamos um olhar de acolhimento que me fez lembrar o real sentido de estarmos aliados, provocando inquietações para que as políticas públicas e serviços possam, de fato, ter como base a equidade, considerando as diferenças que compõem a nossa identidade e que nos condicionam a ocupar um lugar social bem específico. 

Logo nesse contato inicial, fui provocado a pensar: como tornar acessível as políticas e serviços, se não com a representatividade em suas diferentes realidades e contextos? “Nada para nós, sem nós”, um slogan conhecido na luta pela inclusão do movimento anticapacitista, contra o preconceito e discriminação de pessoas com deficiência.

Do mesmo modo, não há como falar de acesso de pessoas idosas LGBTQIA+ sem a presença delas e com a organicidade de suas falas construídas a partir de suas experiências. Não há como desconsiderar a interseccionalidade que envolve a construção identitária, a partir de ideários machistas, racistas, xenofóbicos entre tantos outros estereótipos, preconceitos e discriminações que se relacionam gerando um contexto ainda mais complexo e desafiador.  

Movido nessas reflexões, apresentei minha palestra e se formou uma mesa com os demais colegas para conversarmos sobre os aspectos que estávamos trabalhando no evento. 

A senhora foi convidada a estar com a gente no palco e, logo nos primeiros minutos de sua retórica, com uma voz embargada, num misto de emoção e empoderamento, fala repetidas vezes, com uma pausa dramática, essencial para dar ênfase à complexidade em questão: “Não sou velha, sou usada”.

À primeira vista associei essa frase a uma negação da velhice e a resistência que ainda temos em nos colocarmos na condição de velha ou velho, por conta dos mitos e estereótipos relacionados à incapacidade, improdutividade e apequenamento da pessoa idosa, fatos hoje referenciados e associados à forma de preconceito conhecida como Idadismo. 

Mesmo a comunidade LGBTQIA+ está distante da pauta do envelhecimento e velhice e, infelizmente, muitas pessoas idosas que em tempos remotos lutaram para que usufruíssemos de nossos direitos hoje, estão submetidas ao esquecimento e ao abandono, muitas dessas ainda sofrendo um apagamento de suas histórias por desconstruírem sua identidade, tentando manter minimamente sua segurança num ambiente hostil junto daqueles que não têm a menor compreensão sobre as questões relacionadas a gênero e sexualidade, principalmente as que divergem do padrão socialmente estabelecido.

Confesso que perdido em minhas ideias me senti um tanto quanto envergonhado. A questão ali não era exatamente sobre idadismo, apesar de dialogar com ele. 

Fui buscar no “google” interpretações sobre “o que é usado” e uma delas me chamou a atenção: adaptado ou condicionado (a algo); habituado, acostumado.

A partir dessa leitura, consegui identificar a profundidade do meu estranhamento com a frase: Nós, pessoas LGBTQIA+ estamos condicionados a ocupar um lugar social imposto/permitido socialmente? Ou podemos ocupar os lugares que realmente queremos?

Partindo de um lugar que experiencio, de conforto e certo privilégio, ainda, sim, sei que não é fácil transgredir um sistema que formam corpos e identidades socioculturais por um olhar heterocisnormativo – uma perspectiva que padroniza pessoas a partir de um modelo centrado na heterossexualidade e cisgeneridade.

Consigo lembrar de vários momentos que não me senti seguro com minha orientação sexual e tentei forjar uma condição que não era exatamente a minha, anulando parte da minha identidade, mesmo que de forma temporária, em troca de uma aceitação, apoio ou uma falsa sensação de segurança. Em vários momentos fui usado por essa ideia centrada numa normalidade.

Penso então que para uma mulher transgênera de uma geração bem anterior a minha, a vida não tenha sido nada fácil. Para resistir e poder seguir viva e existindo socialmente, foi usada por esse sistema, subordinada a ocupar espaços sociais que ampliaram sua vulnerabilidade e exposição à violência. Ainda assim, como num processo de resiliência e resistência absurda, com uma força muito maior do que possamos imaginar, buscou estratégias para transformar essa realidade superando uma expectativa de vida que lhe é atribuída – que não sabemos ao certo se é de 35 anos de idade, mas temos certeza que é muito menor que os 72 anos atribuídos a pessoas cisgêneras – caminhando entre as fissuras de sistemas conservadores, perversos e violentos. Marcou sua presença e deu a visibilidade necessária para sua existência e demandas. 

Estar naquele momento, ocupando um espaço de visibilidade enquanto uma mulher transgênera idosa a torna uma grande mestra, permitindo-se mais uma vez ser usada socialmente para ilustrar uma realidade que muitas pessoas ainda insistem em invisibilizar, silenciar ou relativizar. Essa senhora promoveu a geratividade, “passando o bastão” de seu legado para todos nós que estávamos ali, cúmplices de seu apelo.  

Será que nessa atenção e toda energia investida ao longo de uma vida, para ser usada e ao mesmo tempo ressignificada socialmente, ainda resta tempo para se atentar a um corpo envelhecido, uma rede de suporte social diminuída e uma invisibilidade acentuada por ser uma pessoa LGBTQIA+ e idosa? 

Para mim e para várias pessoas que ali estavam essa senhora foi a grande protagonista desse encontro, perpetuando essa inquietude de uma frase tão simples, mas ao tempo densa. E no meu caso, posso dizer sem sombras de dúvida que fui afetado, transformado por suas palavras, e que estas se tornarão eternas em minha trajetória.

Diego Felix Miguel é especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e membro da Diretoria da SBGG-SP, mestre em Filosofia e doutorando em Saúde Pública pela USP. Escreve este artigo a convite do Blog do Mílton Jung.