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Cultura

Orlando Morais sobre a Covid-19: 'Me segurei nos olhos da Glória'

Depois de passar nove dias na UTI por conta da Covid-19, músico diz que se manteve firme graças à mulher e revela detalhes de uma tentativa de suicídio
Orlando Morais revela detalhes de uma tentativa de suicídio aos 13 anos: 'Me achava inapto para a vida' Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Orlando Morais revela detalhes de uma tentativa de suicídio aos 13 anos: 'Me achava inapto para a vida' Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

Durante os nove dias em que Orlando Morais enfrentou a Covid-19 numa UTI, os olhos negros de Glória Pires o ancoraram aqui na Terra. No olhar da mulher, ele encontrava a confirmação de sua própria consciência. A atriz também foi a segurança em pessoa ao brotar de surpresa na casa do casal em Brasília, onde ele estava, dizendo: "Acabou a brincadeira, tô aqui e vou ficar". O marido não só havia resistido à presença dela por medo do contágio, como também à internação no hospital. Foram preciso duas noites ardendo em febre de 42 graus e sentindo o ar sumir do pulmão para que se convencesse.

A partir daí, travou uma luta pela vida ("quando os aparelhos começavam a apitar, os enfermeiros falavam coisas lindas no meu ouvido", conta). E venceu. Mas o cantor e compositor goiano de 59 anos ainda sofre as consequências da doença. Faz fisioterapia respiratória três vezes ao dia. Troca de roupa oito vezes por causa do suor que invade o corpo. Ainda assim, não abandona os projetos futuros.

O cantor e compositor Orlando Morais sobre a Covid-19: 'É como sentir a vida indo embora a cada segundo' Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
O cantor e compositor Orlando Morais sobre a Covid-19: 'É como sentir a vida indo embora a cada segundo' Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

Ele sempre se dividiu entre as fazendas herdadas da família no interior de Goiás - onde, com 10  anos, ajudava a mãe nos partos das mulheres da região, queimando umbigos com colher quente -, os negócios (pousadas, casa de show, empresa que constrói condomínios, laboratório de lentes e plataforma de lives) e a música.

Laerte: "E se eu morrer agora?"

Ela entrou em sua vida aos 4 anos, quando começou a tocar piano sozinho e surpreendeu a família ("diziam que recebia um espírito"). Virou atração da cidade, por onde era levado a perambular mostrando seus dotes dentro de uma roupinha de maestro. Chegou a tocar o Hino Nacional para o presidente Emílio Médici. Passou a achar toda aquela mise - en - scène meio chata. Tudo que queria era a vida normal dos seis irmãos. Decidiu ali que não seria artista. Veio para o Rio cursar Direito, mas a música falou mais alto.

E continua falando. Em dezembro de 2020, lançou o single "Le silence tue", com Sting, Brandford Marsalis e Peter Gabriel. O projeto todo, gravado em 2004, saíra esse semestre em dois álbuns: "Le pop" e "Le jazz". Também disponibilizou sua discografia (dez álbuns em 30 anos de carreira fonográfica) nas plataformas digitais, onde ainda lançará, em breve, o documentário "Orlamundo". O filme, que reflete sobre sua trajetória e retrata encontros musicais com artistas brasileiros e internacionais, ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Los Angeles Independent Film Festival Awards.

Orlando ainda planeja disco em que deve cantar com as filhas (a enteada Cleo, Antonia e Ana), e tem dois álbuns inéditos prontos: um com a Velha Guarda da Portela (previsto para 2022); outro, do projeto Rivière Noire, seu trio com os franceses Pascal Danae e Jean Lamoot, com o qual ganhou Melhor Álbum de Música do Mundo, no Victoire de La Musique, o Grammy francês.

Na conversa a seguir, ele diz que sofreu com a "implicância" de parte do público brasileiro por ter se casado com Glória ("diziam que ela mandava botar música minha nas novelas que fazia"), conta que o momento mais difícil do casamento foi o boato maldodo de que teria um caso com Cleo ("aquilo foi muita maldade, me senti impotente") e revela detalhes de uma tentativa de suicídio aos 13 anos ("me achava inapto para a vida).

Orlando Morais e Glória Pires: casamento de 33 anos Foto: arquivo pessoal
Orlando Morais e Glória Pires: casamento de 33 anos Foto: arquivo pessoal

Como se sente agora? E como foi a sua experiência com a Covid-19?

Me acostumando. Sou forte, mas foi grave. Meu pulmão não tem inflamação, mas ficou craquelado. Essa doença é muito nova, porque não é uma dor. Falta o ar o tempo inteiro, e você não sabe o que fazer. Aí, no hospital, são 24 horas de oxigênio ligado em você, um pressão grande que eu tinha medo de não dar conta. Sou claustrofóbico, aquelas coisas todas no meu rosto...

Montaram uma cadeira porque eu não queria ficar na cama, tinha medo de perder o fôlego. Ao mesmo tempo, pensava nas pessoas que não tinham condições de ter aquele tratamento e deitam no chão de hospitais sem oxigênio. Não me sentia culpado, não sou uma pessoa que tem culpa de ter as coisas. Pensava em como ajudar.

Me segurei nos olhos da Glória para não sair de mim. Ficava linkado nela o tempo todo. Mesmo quando ela estava dormindo ou eu tinha que ficar de bruços. O olhar dela era a minha referência. Sentia que minha vida estava ali, que, se desvinculasse, não conseguiria voltar.

Glória virou um bicho acuado, me olhava, tipo: "Cara, não vai embora". Tenho um pacto de vida eterna com a Cleo, que me ligou lembrando ( risos ). Eu pensando: "Se acontecer alguma coisa vai ser uma piração com eles". A gente vive muito junto. Na minha casa tudo pode, se fala sobre tudo, ninguém pune ninguém. Não somos exemplo para ninguém, mas a nossa coisa junto é muito foda.

Orlando internado no hospital com Covid-19 Foto: reprodução
Orlando internado no hospital com Covid-19 Foto: reprodução

O seu medo não era de morrer, mas de a família não aguentar...

Não podia me permitir morrer. Percebi que eles não tinham estrutura. Minha mãe tem 85 anos, é forte, mas estava desesperada. Me ligou tremendo inteira e disse: "Não brinque comigo, trate-se de se recuperar, porque não aceito".

Um dia, falei para Glória: "Estou sentindo que algo pode acontecer", tentando ao máximo falar porque fui perdendo a fala, "preciso que segure a onda, porque não é possível que tudo que a gente fez até aqui vá despencar ladeira abaixo". Chamei todo mundo e disse: "Vamos botar o pé no chão. Não somos melhores que ninguém, a gente tem que estar preparado para tudo".

E repetia para: "Não posso ir agora, tenho que segurar". Já tive várias doenças, sete pneumonias. Mas essa é como sentir sua vida indo embora a todo o segundo. Bento, Antonia, Ana e Cleo foram guerreiros. Eles piraram e agora estão tudo aqui, em volta de mim.

Glória e Orlando com a família reunida Foto: Arquivo pessoal
Glória e Orlando com a família reunida Foto: Arquivo pessoal

O vídeo com você cantando ao sair do hospital foi comovente. Seu fôlego surpreende...

Queria agradecer aos enfermeiros e pensei: "Vou tirar do fundo da alma". Eles falavam coisas no meu ouvido quando os aparelhos começavam a apitar, tipo: "Coloque os olhos dos seus filhos em volta de você". Queria que eles soubessem que estava me esforçando ao máximo para agradecer. A recepcionista dizia "eu te amo", que coisa linda!

Que mensagem enviaria a quem está contaminado? E o que acha da conduta do governo na pandemia?

Não lembro dessa gente, não penso nisso. Minha mensagem é: olhe para dentro de você e respire com a certeza de que é importante que a gente vença esse vírus. Cada vida representa uma coisa imensa no planeta agora. Cada um que vence é uma chuva de felicidade. Tenha confiança.

Teve alta a tempo de comemorar os 33 anos de casamento. Qual foi o momento mais difícil que passaram?

A fofoca da Cleo ( em 1998, quando ela tinha 15 anos, surgiu um boato de que teria um caso com o padrasto ). Aquilo doeu demais. Me senti impotente. Porque não era mais comigo nem com a Glória, era com a Cleo, uma adolescente. Pensava na dor que ela estava sentindo.Estou com ela desde os 5 anos, a vi trocar todos os dentes. Achar quem fez aquilo virou minha obsessão. No tribunal, chamava as pessoas por fora e falava “retiro as ações”. Mas ninguém dizia a fonte. Era algo tão malvado.

Cleo e Orlando Foto: arquivo pessoal
Cleo e Orlando Foto: arquivo pessoal

Como lidaram com isso dentro de casa?

Glória falou: “Que as pessoas sejam loucas, tudo bem, mas a gente entrar na loucura, não, essa bomba vai cair lá fora”. Cleo é minha filha como os outros. Fiz meu testamento com tudo igual. A mentira era bem pensada. Naquele ano, Glória estava fazendo novela, e eu pegava a Cleo no colégio, ia às reuniões. As pessoas olhavam... Eu poderia matar alguém por causa de um filho. Via a Cleo dormindo e morria por dentro.

Por quais ajustes a família precisou passar na convivência intensa da quarentena?

Quando veio a pandemia, cada um estava num lugar. Mandei o avião buscar todos. Pirei que iam fechar os aeroportos. A gente acabou indo para a casa de Brasília, na beira do lago, com mais espaço. De vez em quando, dava um probleminha. Eu e Glória conversamos demais. Quando dava uma reviravolta, ela falava "vamos por ali". E fomos administrando as crises dos filhos. Porque um tinha medo até de receber carta. A outra queria correr na rua. Cada dia era uma novidade.

Antonia canta com o pai no documentário 'Orlamundo' Foto: reprodução
Antonia canta com o pai no documentário 'Orlamundo' Foto: reprodução

Como manter o tesão após tanto tempo de casamento?

Nossa ligação independe de tudo. Tô pronto para aceitar a Glória do jeito que ela vier. Não programei uma pessoa, não desenhei alguém para ter. Ela pode ser ela todo dia, estou aqui para aceitá-la. Falo que não vou encontrar uma pessoa melhor que ela e que ela não vai encontrar alguém melhor que eu, então... ( risos ).

Mesmo se não estivermos juntos, ela é 100% minha, tenho que cuidar. Gosto do que ela é, da loucura dela. É de uma força... Um ser humano pequeninho com tantoe talento, generosidade, integridade. E toda aquela liberdade... A mulher nunca posa de nada. No fundo, está ali no chão mesmo. Na hora que você precisa, vira uma guerreira, uma leoa.

Você acabou desenvolvendo sua carreira artística mais na França do que aqui. Precisou sair do Brasil para as coisas acontecerem?

Estava morando na França, tocava em lugares bacanas, quando vim ao Brasil passar férias e acabei conhecendo a Glória. Em três meses, a gente estava casado. Nunca programei isso. Mas era um amor profundíssimo, estava disposto a qualquer coisa.

Sempre fui ligado a cinema, um pouco menos em televisão. Quando a gente se casou, não tinha noção que estava casando com uma pessoa importantíssima da TV, que aquilo queria dizer muita coisa para muita gente. Foi tudo rápido e não me amparei nesse aspecto. Minha vida sempre foi muito normal. Aí criou-se uma implicância gratuita...

Uma implicância com você?

Comigo e com aquele casamento. Minha primeira música a entrar em novela foi em "Pantanal", ( "Divinamente nua, a lua", parceria com Caetano Veloso ). Mas aí veio a história de que a Glória tinha que botar músicas minhas em novelas que fazia. A gente não tinha nem poder para exigir isso! E aquilo vinha numa velocidade... Era uma coisa meio satânica, má. Críticos especializados até falavam bem do que eu fazia, mas era tanta história junto...

Muita gente dizia que eu devia retrucar. Mas aquilo expunha a Glória, a entristecia. E eu achava bobo. Mas virou um problema sério, um assunto insuportável.  Fui suportando aquela implicância educadamente, pensando "vai passar". Mas chegou num nível tão profundo...

Glória era rainha daquele veículo. Quando eu aparecia em programas, linkavam o casamento. Entendo, era uma menina muito conhecida, o Brasil cresceu com ela. Mas chegou uma hora em que ficou difícil trabalhar aqui. Um dia, a Ivone Kassu ( assessora de imprensa, morta em 2012 ) me disse: "Nunca vi tanta implicância numa pessoa só". Decidi que não queria mais música em novela.

Orlando e Caetano Veloso , com quem compôs 'Divinamente nua, a lua' Foto: Reprodução
Orlando e Caetano Veloso , com quem compôs 'Divinamente nua, a lua' Foto: Reprodução

E foi trilhar sua carreira na França, que te tratou melhor do que o seu país... Se tornou um dos músicos brasileiros mais conhecidos, gravou com Patrick Bruel (a música "Où Es-tu?", que alcançou o primeiro lugar no iTunes francês), fez o programa de TV "Lá"....

É, eles foram muito gentis comigo. Quando fizemos o Rivière Noire foi uma loucura, fazia tempo que a imprensa não dava tanto valor a um trabalho. Quando ganhamos o prêmio, a gente chegava nos festivais e era um assédio... Talvez, eu seja o artista que mais tenha gravado com estrangeiros, foram uns 120. De Vietnã, Madagascar, China, Mali, Síria. Eles vinham ao programa e gravávamos sem ensaio.

Guarda mágoas do Brasil por causa dessa implicância?

Jamais, amo o Brasil, as pessoas. Agora, no hospital, o que mais me fez chorar foi a bondade dos enfermeiros. Não sou de guardar mágoa. Olho para aquilo e entendo. Também, se for pensar claramente, ninguém joga pedra numa árvore seca. Muita gente foi boba. Até meus filhos já falaram, mas eu não sei me vingar. Me acho tão grande. Nesse aspecto, sou pretensioso.

Deus me deu uma vida tão linda. Tenho todos os paraísos que pode imaginar, cachoeiras... Não posso prestar atenção em coisas pequenas. Sei que, às vezes, tenho que dar uma machadada, mas não consigo. Não é negócio de Jesus ou que sou bom. Sou espírita, mas acredito em tudo, até num copo d'água. Sou espiritualizado, acredito na força do bem, que o outro é a sua morada... As pessoas me perguntam: "Como toca um bando de empresa?". Porque gosto de gente.

Orlando com Monarco e a Valhe Guarda da Portela, com quem lançará disco Foto: Reprodução
Orlando com Monarco e a Valhe Guarda da Portela, com quem lançará disco Foto: Reprodução

Como integrante de uma família de fazendeiros que criou gado por muito tempo, o que acha da percepção, por parte da sociedade, de que agronegócio destrói o meio ambiente? Você se preocupa com alimentação, agrotóxicos? Come carne?

Não mexo mais com boi, mas tenho fazendas e tento reflorestar. Era uma outra época, né? Acho que quanto mais informação tiver, mais as pessoas poderão trabalhar isso. Sou a favor de que o mundo seja cuidado, transformado. Assim como muita gente polui, muita gente que trabalha a terra está tentando outros manejos.

Acho que tem que ter representatividade para ter acusação e também para a outra pessoa poder crescer seu negócio. Somos um país de dimensões continentais. O que segura a nossa economia hoje é o agronegócio. É um sonho meu? Não. Prefiro que a gente vá para o outro lado, científico. Porque a coisa do agro é pesada, depende da chuva, do sol, são máquinas, há colheitas inteiras que vão embora. Há um lado sofrido.

Sou a favor de que o mundo seja cada vez mais ecologicamente correto. Agora, não sou xiita em nenhum aspecto. A Glória é mais preocupada com alimentação, ela não come carne. Sou mais desorganizado, como carne, o que tiver no prato. Não sou muito regrado, vivo como o mundo é.

Orlando com os músicos Huong Than, Marcus Biancardini eJairo Reis no documentário 'Orlamundo' Foto: reprodução
Orlando com os músicos Huong Than, Marcus Biancardini eJairo Reis no documentário 'Orlamundo' Foto: reprodução

Em “Orlamundo”, você diz que a música te salvou e termina o filme dizendo: “aos 13, tentei me suicidar”, sem explicar mais nada. Como foi isso?

Me achava inapto para viver. Tinha medo de noite, da escuridão, de tudo. Desencantei da vida. Não tinha motivo, lembro de pensar: “Não nasci para estar vivo, não consigo”. Foi com remédio. Minha irmã tinha leucemia, e ouvi o médico dizendo à minha mãe: “Guarda esse remédio em outro lugar, se alguém toma 3 ou 4...”. Aquilo ficou na minha cabeça e, em vez de me jogar de um lugar, tomei uma caixa inteira. O olhar do meu pai no hospital nunca saiu da minha cabeça, era o mais triste do mundo. Naquele momento, agarrei a vida e prometi que nunca mais ia morrer. Ele nunca tocou no assunto. Nem eu. Às vezes, eu o abraçava e queria dizer que aquilo nunca mais ia acontecer. Mas não consegui.

Ele morreu (de acidente de carro, quando Orlando tinha 15 anos) sem que dissesse...

Sim. No filme, isso também foi para ele. A história vinha na minha cabeça toda hora e resolvi falar para me livrar. Depois, como o filme é meu, era só pedir para tirar. Quando chegou na montagem, falei: "Isso não vai entrar de jeito nenhum". Aí, a montadora segurou na minha mão e falou que era a chave do filme. Que, se tirássemos, ela estava fora. Eu tinha medo que meus filhos vissem e achassem que eu pudesse... Sei lá. Eu nunca tinha falado disso com ninguém. A Glória sabia por alto. Nunca tocamos no assunto. Acho que tem uma coisa de Deus nessa entrevista aqui com você. É a primeira vez que falo tanto. E não perdi a voz nem a respiração em nenhum momento. Me sinto um pouco curado.