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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.


Salman Rushdie durante debate na Flip, em Paraty, em 2010 — Foto: André Teixeira/Agência O GLOBO
Salman Rushdie durante debate na Flip, em Paraty, em 2010 — Foto: André Teixeira/Agência O GLOBO

O romance "Os versos satânicos", do autor anglo-indiano Salman Rushdie, começou a gerar ódio entre muçulmanos assim que foi lançado no Reino Unido, em 26 de setembro de 1988. Dias depois de chegar às prateleiras na Europa, o livro foi banido pelo governo indiano. Logo, África do Sul, Paquistão, Egito, Indonésia e vários outros países tomaram a mesma medida. Ainda em outubro daquele ano, a editora Viking Press recebeu milhares de cartas com ameaças. Em dezembro, cerca de 7 mil pessoas reunidas em Bolton, na Inglaterra, queimaram cópias da obra exigindo seu banimento na terra da rainha.

O pior ainda estava por vir. No início de 1989, protestos em vários países geraram sérios distúrbios. Seis pessoas morreram e mais de 80 ficaram feridas quando milhares de manifestantes, exigindo a morte de Rushdie e o banimento global do livro, atacaram um centro de cultura americana em Islamabad, no Paquistão. No dia 14 de fevereiro de 1989, o aiatolá Rurollah Khomeini, então o líder supremo do Irã, editou um pronunciamento legal (fatwa) exortando todos os muçulmanos a assassinar o escritor. Logo depois, diferentes organizações ofereceram prêmios milionários pela morte dele.

Rushdie se viu em grave risco. Tinha que andar com escolta policial e era obrigado a se mudar com frequência (às vezes, não passava três dias no mesmo endereço). Nem os filhos sabiam onde ele estava. O autor se desculpou publicamente, e grandes livrarias do Ocidente pararam de vender o livro. Mas nada adiantou, e o escritor começou a sofrer atentados. Em agosto de 1989, um terrorista morreu quando uma bomba que ele pretendia usar para matar Rushdie explodiu um hotel em Londres. A pressão era tanta que sua então mulher, a também autora Marianne Wiggins, pediu o divórcio.

Salman Rushdie: Muçulmanos queimam caricatura do autor, em 1989 — Foto: Arquivo/Nabil Ismail/AFP
Salman Rushdie: Muçulmanos queimam caricatura do autor, em 1989 — Foto: Arquivo/Nabil Ismail/AFP

Mas que elementos do livro motivaram tanto ódio?

Inserido no universo do realismo mágico, assim como a obra de Gabriel García Márquez, "Os versos satânicos" incitou ira ao sugerir, na visão dos muçulmanos, uma "revisão" da própria narrativa que deu início à crença islâmica, questionando e, por vezes, até satirizando alguns de seus alicerces.

Muçulmanos creem que o profeta Maomé recebeu do anjo Gabriel a "palavra de Deus" em uma série visões, no século VII. Maomé, então, recitou os ensinamentos a seus seguidores e, eventualmente, aquelas palavras foram escritas nos versos do Alcorão, o livro sagrado do Islã. Na obra de Rushdie, o personagem Gibreel tem uma série de delírios nos quais ele se vê como o anjo Gabriel e se encontra com Mahound, um empresário transformado em profeta. Mahound é um nome usado por cristãos na Idade Média para se referir a Maomé (Mohammad, em inglês) como uma criatura satânica.

Mahound ouve as lições de Gabriel, mas recita os ensinamentos com alterações convenientemente feitas por ele a um escriba chamado Salman, o Persa. Este, por sua vez, questiona a veracidade daquelas palavras, mas registra as mesmas como desejos de Deus. Para os muçulmanos, essa é uma clara artimanha criada pelo autor de "Os versos satânicos" para lançar dúvidas sobre o Islã. Rushdie estaria expressando a opinião de que os ensinamentos recitados por Maomé, que se tornaram a base para a crença muçulmana, são, pelo menos em parte, frutos de sua própria consciência.

Os muçulmanos também se enfureceram ao enxergar a caracterização das mulheres de Mahound como prostitutas (na obra, Gibreel sonha que meretrizes em um bordel assumiram os nomes da mulher do profeta). E o próprio título do livro, "Os versos satânicos", refere-se a uma narrativa desqualificada por especialistas do Alcorão. Neste suposto episódio, o profeta Maomé, interessado em converter cidadãos de Meca ao Islã, recitou palavras que ele acreditava serem de Deus, mas depois as retirou afirmando que tinham origem no demônio. Este "incidente" foi narrado por antigos historiadores árabes, mas, posteriormente, foi considerado falso por pesquisadores do livro sagrados dos muçulmanos.

Acadêmicos defendem Rushdie dizendo que a irreverência de sua obra tem o objetivo de explorar uma possibilidade de separação entre fatos e ficção. Desde a publicação do livro e sua intensa controvérsia, o próprio autor argumentou que textos religiosos deveriam estar abertos a questionamentos. Porém, toda vez que o escritor afirma, em artigos, palestras ou entrevistas, que o Islã deveria aceitar diferentes visões sobre suas crenças, mais críticas furiosas são lançadas em sua direção por muçulmanos.

Salman Rushdie levado de helicóptero após ser esfaqueado — Foto: Reprodução/Horatio Gates/AFP
Salman Rushdie levado de helicóptero após ser esfaqueado — Foto: Reprodução/Horatio Gates/AFP
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