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O passado com um pé no presente.

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William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Por William Helal Filho


Vacinação contra meningite no Instituto Butantan, em 1974: Epidemia começou anos antes — Foto: Pedro Martinelli/Agência O GLOBO
Vacinação contra meningite no Instituto Butantan, em 1974: Epidemia começou anos antes — Foto: Pedro Martinelli/Agência O GLOBO

Uma doença "misteriosa" começou a afetar bebês e crianças no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo, em meados de 1971. Em questão de horas, indivíduos saudáveis sucumbiam com febre, dor de cabeça e vômito, algumas vezes chegando à morte. Os médicos não sabiam, mas aquele era o início da pior epidemia de meningite da história do Brasil. Nos anos seguintes, o problema se espalharia até lotar hospitais em áreas centrais da capital paulistana, impulsionado pela falta de conhecimento da população, já que a ditadura militar censurava as informações sobre a crise sanitária.

Aquela epidemia poderia ter sido contida em sua fase inicial, na periferia de São Paulo. Entretanto, como o regime militar tentou esconder a doença e demorou a tomar as medidas para frear seu avanço, o surto virou uma tragédia, causando 2500 mortes apenas no município, em 1974. Só então, diante de uma calamidade que podia ter sido evitada, o governo começou a vacinar a população.

Nos primeiros anos, mesmo diante do aumento da incidência de casos, e com mortalidade oscilando de 12% a 14% dos doentes, a ditadura escondia os números da população e negava a existência de uma epidemia. Para calar jornais, rádios e TVs, os militares se valiam do Decreto-Lei 1077, de 26 de janeiro de 1970, que estabeleceu censura prévia aos veículos de comunicação. Médicos e sanitaristas não podiam dar entrevistas. Apenas a partir de 1974, quando os hospitais em São Paulo estavam lotados de doentes e não havia mais como negar, os generais começaram a reconhecer o problema.

Cópia de documento proibindo divulgação de dados sobre meningite, em 1972 — Foto: Reprodução
Cópia de documento proibindo divulgação de dados sobre meningite, em 1972 — Foto: Reprodução

De acordo com pesquisadores de saúde pública, o Brasil vivia a ilusão do “milagre económico”, com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e aumento da desigualdade social. Os generais temiam prejuízo à imagem do país no mercado global no caso de reconhecer a epidemia de uma doença para a qual já existia vacina. O assunto, então, foi considerado questão de segurança nacional.

A professora Ritas Barradas Barata, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, trabalhou na linha de frente do combate à epidemia de meningite na cidade e, anos mais tarde, escreveu o livro “Meningite: Uma doença sob censura?", lançado em 1988. De acordo com ela, apenas a mídia impressa podia noticiar, mas sem citar números e sem ligar o problema a causas sócio-econômicas. Além disso, o termo "epidemia" para se referir à situação estava vetado.

Segundo Barradas, enquanto a meningite matava moradores da periferia de São Paulo, os militares conseguiram abafar o assunto. Mas, quando a epidemia atingiu bairros nobres e centrais da cidade, as autoridades foram obrigadas a admitir que havia uma emergência sanitária em curso. A esta altura, porém, o problema tinha se tornado uma bola de neve. O Hospital Emílio Ribas, referência na capital, contava com cerca de 400 leitos, mas chegou a abrigar mais de mil pacientes internados.

Fila para vacinação no Hospital Emílio Ribas, em 1974 — Foto: Reprodução/Museu de Saúde Pública Emílio Ribas
Fila para vacinação no Hospital Emílio Ribas, em 1974 — Foto: Reprodução/Museu de Saúde Pública Emílio Ribas

- Sem conhecimento sobre o surto, a população não sabia o que fazer. As famílias demoravam para levar as crianças ao hospital, mesmo diante dos sintomas. Além disso, como nem os médicos estavam informados, muitos não consideravam a meningite num primeiro exame do paciente. A falta de comunicação retarda o tratamento, o que no caso da meningite pode ser mortal. A doença evolui muito rapidamente, não há casos leves. Vimos crianças morrendo duas horas após o primeiro sintoma - explica a médica da Santa Casa, que, na época, iniciava sua carreira no Hospital Emilio Ribas.

A epidemia começou com predominância da bactéria meningococo do sorogrupo C. A incidência em São Paulo subiu e 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 5,90 casos em 1971. Dois anos depois, já eram 29,38 casos por 100 mil indivíduos. A partir de 1974, houve uma explosão, motivada pela circulação do meningococo A, gerando uma sobreposição de surtos. Naquele ano, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes, segundo o estudo “A doença meningocócica em São Paulo, Brasil, no século XX”, de José Cássio de Moraes e Rita Barradas. Também houve surtos no Rio e em outros estados, mas a maior concentração de casos se deu na capital paulistana.

Com a curva de casos em ascensão sobre áreas centrais do Sudeste e em Brasília, não havia mais como impedir o fluxo da informação. Em março de 1974, o então presidente, general Emílio Garrastazu Médici, considerado "linha dura", deu lugar ao "moderado" Ernesto Geisel. Ainda houve resistência do governo, mas, sob pressão social gerada pela epidemia, autoridades reconheceram o problema publicamente. Foi criada a Comissão Nacional de Controle de Meningite, que importou milhões de doses da vacina. Aulas foram suspensas, e escolas de São Paulo abrigaram hospitais de campanha.

Em locais como o Instituto Butantan e o próprio Emílio Ribas, havia filas enormes de pessoas para se vacinar. A campanha chegou a diversas partes do Brasil. Muitas pessoas que estavam vivas na época carregam, até hoje, no braço, a marca das pistolas usadas na imunização. Foi essa crise que motivou o governo a custear a fábrica de fármacos, a Farmanguinhos, e a de vacinas, a Bio-Manguinhos, que reduziram a nossa dependência do mercado internacional. Nos meses seguintes, a epidemia chegou a outros estados com menor intensidade, até que foi superada.

Vacinação contra meningite em São Paulo, em 1974 — Foto: Reprodução/Instituto Butantan
Vacinação contra meningite em São Paulo, em 1974 — Foto: Reprodução/Instituto Butantan
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