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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.


Sobreviventes perto do resto do avião que caiu na Cordilheira dos Andes, em 1972 — Foto: Reprodução
Sobreviventes perto do resto do avião que caiu na Cordilheira dos Andes, em 1972 — Foto: Reprodução

A aeronave Fairchild FH-227D cruzava a Cordilheira dos Andes com 45 almas a bordo quando, devido a uma combinação de condições atmosféricas difíceis e erros de pilotagem, caiu em uma montanha coberta de neve, numa área remota da Argentina. Onze pessoas morreram na colisão, que destruiu as duas asas e a parte traseira. Entre as dezenas de sobreviventes, o alívio de escapar da morte foi logo substituído pelo terror da situação em que se encontraram. Tinha início, naquele dia 13 de outubro de 1972, há 50 anos, um dos maiores dramas da história da aviação.

O avião fretado partira de Montevideo, no Uruguai, rumo a Santiago, no Chile, levando 19 integrantes do time de rugby Old Christians Club, juntamente com amigos, parentes e cinco membros da tripulação. Depois da queda, a aeronave ficou encravada na neve numa montanha a 3.500 metros de altitude, na província argentina de Mendoza, perto da fronteira com o Chile. Era um ambiente hostil e sem nenhum sinal de civilização por perto. Além dos 11 mortos na colisão, outras pessoas faleceram nas horas seguintes, devido às baixas temperaturas ou à gravidade de seus ferimentos.

Ao longo de 72 dias, dezenas de sobreviventes, abrigados no que restou da aeronave, passariam por uma série de provações, como fome, frio intenso e angústia. Eventualmente, para não morrer de inanição, recorreram ao canibalismo, alimentando-se da carne dos amigos mortos.

Nas últimas décadas, o episódio foi recontado em diferentes produções audiovisuais e literárias. Em 1993, o filme "Vivos", com o astro Ethan Hawke no elenco, alcançou milhões de espectadores no mundo todo. Agora, o cineasta espanhol J.A. Bayona, mesmo diretor de "O impossível" e "Jurassic World", está filmando um novo roteiro, para a Netflix, ainda sem previsão de estreia.

Sobreviventes dentro da fuselagem do avião na Cordilheira dos Andes — Foto: Reprodução
Sobreviventes dentro da fuselagem do avião na Cordilheira dos Andes — Foto: Reprodução

Entre as vítimas que morreram logo na colisão, estavam o médico do time, um estudante de Medicina e o piloto. O co-piloto foi encontrado muito ferido e preso na cabine. Ainda consciente, implorou a um passageiro que pegasse a sua pistola e o matasse, mas seu pedido foi negado. Entre os sobreviventes, havia pessoas com membros quebrados e outros ferimentos sérios. O uruguaio Nando Parrado, de 23 anos, por exemplo, estava com uma fratura craniana e ficou em coma durante três dias.

Os sobreviventes usaram poltronas, malas de viagem e roupas para tapar a fuselagem aberta e tentar manter o frio do lado de fora. Eles se aglomeraram num espaço pequeno dentro do avião, mas, ainda assim, as temperaturas eram extremas. À noite, o frio na região onde estavam chegava a 30 graus negativos. Cinco pessoas morreram em menos de 24 horas após a queda, entre elas, o co-piloto.

Aeronaves militares argentinas e chilenas foram empregadas nas buscas. Os sobreviventes avistaram algumas delas passando e tentaram sinalizar para elas. Mas, do céu, os socorristas não perceberam as pessoas ou os restos do Fairchild encravados na neve. As vítimas acharam um rádio transmissor e improvisaram uma antena, o que permitiu ouvir as notícias. Todos entraram em desespero quando, no 11º dia, souberam que os trabalhos de resgate estavam encerrados.

O maior problema era a falta de alimento. Quando o avião caiu, eles tinham só oito barras de chocolate, três potes de geleia, balas e várias garras de vinho. Mesmo comendo pouco, os sobreviventes viram seu pequeno estoque se acabar. Não havia vegetação nem animais por perto. Alguns tentaram comer até mesmo o algodão das poltronas, mas ficaram doentes. Desesperados, os passageiros perdidos na neve resolveram, então, comer a carne dos amigos mortos. Em seu livro "Eu tinha que sobreviver", de 2016, o então estudante de Medicina Roberto Canessa descreveu como a decisão foi tomada:

"Estávamos sentindo a sensação de que nossos próprios corpos estavam se consumindo para se manterem vivos. Logo, estaríamos fracos demais para nos recuperar da inanição", contou ele. "Nós sabíamos a resposta, mas era terrível demais para contemplar".

Ethan Hawke e Josh Hamilton nos papéis de Parrado e Canessa no filme "Vivos", de 1993 — Foto: Divulgação
Ethan Hawke e Josh Hamilton nos papéis de Parrado e Canessa no filme "Vivos", de 1993 — Foto: Divulgação

Os corpos dos amigos mortos, preservados sobre a neve e o gelo, continham a proteína necessária para manter os outros vivos. "Por muito tempo, a gente agonizou. Eu fui lá fora na neve e rezei para Deus pedindo orientação. Sem o consentimento Dele, eu sentia que estava violando a memória dos meus amigos ou que estaria roubando as almas deles", contou Canessa. "A gente pensou se não estávamos enlouquecendo apenas por contemplar algo assim. Havíamos nos tornado selvagens? Ou aquela era a única coisa a se fazer? Estávamos realmente empurrando os limites do nosso medo".

No livro "Milagre nos Andes: 72 dias na montanha e minha longa caminhada para casa", de 2006, Nando Parrado relata que, durante dias, ele e alguns companheiros esquadrinharam os restos do avião, em busca de migalhas de algo que fosse comestível, até que compreenderam que não havia nada ali além de alumínio, couro e plástico. Entenderam que não existia outra saída a não ser a mais temida: comer os corpos dos colegas mortos. Ele conta, entretanto, que protegeu os cadáveres de sua mãe e sua irmã, que não foram tocados pelos demais.

Todos os sobreviventes eram católicos, e alguns temiam a danação eterna, mas sucumbiram devido ao desespero da fome. Eles usavam cacos de vidro ou de pedaços de metal para arrancar a carne e, então, deixavam secando ao sol, para torná-la mais palatável. Em seu livro, Parrado conta que, quando a carne humana acabou, os passageiros vivos comeram corações, pulmões e até cérebros.

No 16º dia após o acidente, uma avalanche surpreendeu os sobreviventes enquanto eles dormiam nos restos do avião. Oito pessoas morreram, entre elas, o capitão do time de rugbi, Marcelo Perez, que vinha desempenhando papel de liderança no grupo, e a única mulher ainda viva entre eles, Liliana Methol, considerada uma espécie de "mãe" pela forma como cuidava de todos.

No dia 12 de dezembro, dois meses após o acidente, com as temperaturas menos intensas e parte da neve derretida pela proximidade do verão, Canessa, Parrado e Antonio Vizintin começaram uma longa escalada em direção a Oeste, atrás de ajuda. Usando até três camadas de roupas e levando reserva de carne, subiram uma montanha de mais de 4,6 mil metros e, após três dias, perceberam que a aventura levaria bem mais tempo do que imaginavam. Como não havia muita comida, Vizintin decidiu voltar ao local do acidente. Usando uma poltrona do avião como trenó, ele chegou em cerca de uma hora.

Canessa e Parrado continuaram sua viagem até que chegaram a um vale coberto de vegetação no Chile e, eventualmente, encontraram três homens que ofereceram ajuda a eles. A dupla havia andado por quase dez dias e percorrido mais de 38 quilômetros, sem equipamentos ou experiência prévia de escalada naquelas condições. Em seguida, as forças armadas chilenas foram acionadas, e dois helicópteros chegaram, finalmente, até o local onde estavam os sobreviventes. Eles foram resgatados todos no dia 22 de dezembro de 1972, mais de dois meses após o acidente.

Registro dos sobreviventes feito por equipe de resgate na Cordilheira dos Andes — Foto: Reprodução
Registro dos sobreviventes feito por equipe de resgate na Cordilheira dos Andes — Foto: Reprodução
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