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O passado com um pé no presente.

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William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Por William Helal Filho


Maria Bethânia com Caetano Veloso na garupa de sua moto, em 1972 — Foto: Rodolpho Machado/Agência O GLOBO
Maria Bethânia com Caetano Veloso na garupa de sua moto, em 1972 — Foto: Rodolpho Machado/Agência O GLOBO

"Trago uma canção para Bethânia, mas ainda não tem nome. Trago também um disco novo, feito em Londres, que não é o mais importante, é apenas o de que mais gosto. Para os shows não tenho nada determinado, só a vontade de cantar muito. O que vai acontecer depende do público, do momento".

Caetano Veloso tinha 29 anos e acabara de retornar de seu exílio forçado em Londres. Naquela terça-feira, 11 de janeiro de 1972, o quinto dos sete filhos de Dona Canô e Seu Zezinho tirou o dia para matar as saudades do Rio e da irmã mais nova, Maria Bethânia, que o levou para um passeio a bordo de sua motocicleta Yamaha, apelidada por ela de Honey Baby (era uma alusão à música "Vapor Barato", de Jards Macalé e Wally Salomão). Pela expressão nos rostos dos dois nas imagens, eles pareciam reviver o tempo em que eram crianças brincando nas ruas de Santo Amaro da Purificação, na Bahia.

Mas, àquela altura, a infância havia ficado pra trás. Caetano e Bethânia eram estrelas da MPB que tiveram, em 1972, um momento definidor para suas vidas. Durante aquele ano, o cantor se restabeleceu no Brasil, lançou o icônico disco "Transa", gravado no exílio, e teve seu primeiro filho. Já a irmã fez sua primeira turnê na Europa, onde foi aclamada, estreou no cinema (sob direção de Cacá Diegues) e também lançou um de seus álbuns mais importantes: "Drama - Anjo Exterminado".

Era um ano que havia se iniciado, na verdade, em dezembro de 1968, semanas depois da edição do Ato Institucional 5 (AI-5), quando Caetano e Gilberto Gil, considerados artistas subversivos pela ditadura militar, foram capturados por agentes da repressão em São Paulo e levados para cadeias no Rio, sem nenhuma justificativa legal. Libertados em fevereiro de 1969, eles buscaram abrigo na Europa.

Maria Bethânia e Caetano a bordo da moto Honey Baby, em 1972 — Foto: Rodolpho Machado/Agência O GLOBO
Maria Bethânia e Caetano a bordo da moto Honey Baby, em 1972 — Foto: Rodolpho Machado/Agência O GLOBO

Em 1972, com "garantias" de que não seriam mais presos, os dois voltaram. Caetano chegou no Rio no dia 11 de janeiro e foi direto pra casa de Bethânia. Em entrevista ao GLOBO, contou que estava ansioso para o carnaval na Bahia, que ele julgava mais autêntico do que o desfile das escolas de samba no Rio. "Estou falando do espírito das ruas. No Rio, é tudo marcado, coisa para turista, muito falso", disse o músico. "A solução para o carnaval carioca parece estar surgindo agora, com as bandas dos bairros. Se todos os bairros tivessem seus blocos, a coisa poderia sair do formalismo", adivinhava o músico.

Três dias depois, o cidadão ilustre de Santo Amaro fez um show no Teatro João Caetano, no Centro do Rio, para marcar seu retorno ao país. A casa estava lotada, e ainda havia uma multidão do lado de fora. Então, o cantor abriu a janela do camarim que dava para a Rua do Teatro e passou uns bons dez minutos cantando para o público que não tinha conseguido ingressos. Em seguida, Gilberto Gil, que chegara de seu exílio em Londres naquele mesmo dia, também apareceu na janela. Muita gente bateu palmas, gritou e jogou flores em sua direção. Emocionado, Gil cantou um pouco também.

"Aqui dentro está um calor horrível. Vocês tiveram sorte. Viram de graça e estão aí no fresquinho", gritou Gil, brincando com a plateia, após sua "performance".

Caetano Veloso desembarcando no Rio após exílio em Londres, em janeiro de 1972 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Caetano Veloso desembarcando no Rio após exílio em Londres, em janeiro de 1972 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Bethânia não viu o show. No próprio dia 14, ela partira para sua primeira turnê europeia, começando no Festival Midem, em Cannes, na França. Realizado pelo mercado de discos desde 1967, o Midem é um encontro de representantes da indústria fonográfica. Uma seleção de artistas era convidada para fazer pequenos shows, com apenas duas músicas. Tratada como estrela, a cantora baiana pôde mostrar cinco canções ("Carcará", "Viramundo", "Se todos fossem no mundo iguais a você", "Camisa listrada" e "Eh baiana"). Saiu aclamada pela força da sua voz e pela forma como interpretou cada verso.

A turnê continuou em Roma, na Itália, e outras cidades do Velho Mundo até terminar em Londres. Na capital britânica, Bethânia gravaria dois "long plays" com músicas de Caetano e de Jards Macalé. A cantora e seus músicos voltariam ao Rio em 6 de fevereiro.

Em maio de 1972, Caetano lançou um dos seus discos mais cultuados até hoje. "Transa" foi gravado no exílio londrino, ao longo de 1971, com Áureo de Souza (bateria), Moacyr Albuquerque (baixo), Jards Macalé (violão, guitarra e direção musical) e Tutty Moreno (percussão), além da então desconhecida Ângela Rô Rô tocando gaita na faixa "Nostalgia". O álbum mistura o rock e outros gêneros do pop global, como o reggae, a elementos da MPB, principalmente os sons da Bahia, em um setlist de canções em inglês e português, como "You don't know me", "Mora na Filosofia" e "Nine out of ten".

Cinquenta anos depois de seu lançamento, "Transa" é considerado um dos melhores álbuns da MPB. Nos últimos meses, o trabalho foi reeditado pela gravadora Universal em LP (formato original) e homenageado por artistas da nova geração como Letrux e Tim Bernardes, em shows e regravações.

Maria Bethânia gravando cena do filme 'Quando o carnaval chegar', em 1972 — Foto: José Araújo/Agência O GLOBO
Maria Bethânia gravando cena do filme 'Quando o carnaval chegar', em 1972 — Foto: José Araújo/Agência O GLOBO

Bethân ia estreou no cinema em "Quando o carnaval chegar". Musical de Cacá Diegues lançado em julho de 1972, o filme tem Chico Buarque, Nara Leão e a cantora baiana nos papéis principais (Paulo, Mimi e Rosa, respectivamente). No roteiro, eles são integrantes de um grupo de músicos mambembe que viaja pelo país num ônibus antigo. Os três artistas também gravaram a trilha sonora, quase toda composta por Chico. O andamento soturno do samba homônimo do filme deixa evidente que o "carnaval" era, na realidade, uma metáfora para a democracia suprimida no golpe de 1964.

Meses depois, Caetano estava de novo em cartaz no Teatro João Caetano. Ele se apresentou no dia 21 de novembro, uma quarta-feira, e deveria subir ao palco nas duas noites seguintes. Porém, algo bem mais importante do que qualquer show ou disco interrompeu a programação.

Na manhã de 22 de novembro, Dona Canô ainda preparava o café quando foi chamada por sua nora, Dedé Veloso, que estava no quarto e começava a sentir as dores do parto. Primeiro filho do casal, Moreno Veloso nasceu horas depois, às 11h30, com 3,7 kg e 51 centímetros, no Hospital Português, em Salvador. O pai famoso, que, confiando nas previsões médicas, esperava a chegada do afilhado de Gal Costa somente no dia 24, suspendeu as apresentações no Rio e tratou de tomar um voo para conhecer o bebê nascido, por coincidência (ou não), no dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos.

Caetano Veloso e Gilberto Gil em show no Teatro Municipal, em março de 1972 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Caetano Veloso e Gilberto Gil em show no Teatro Municipal, em março de 1972 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

O ano movimentado dos filhos de Seu Zezinho se encerrou quando Bethânia lançou "Drama - Anjo exterminado", em dezembro. Quinto álbum de estúdio da "abelha rainha" da MPB, o disco é o que melhor representava a carga teatral no canto da artista. Dividido em atos e produzido por Caetano, o trabalho tinha canções assinadas por ele, Gil e Jards Macalé, entre outros feras. A gravação da inédita "Estácio Holly Estácio" ajudou a catapultar o nome do então novato Luiz Melodia, e a faixa "Trampolim" foi a primeira com letra de Bethânia, escrita sobre a música do irmão.

Em sua edição de 16 de dezembro de 1972, O GLOBO noticiava o lançamento do álbum enfatizando a maturidade alcançada por Bethânia, aos 26 anos, como pessoa e artista. Mas, em vez de descrever o disco e suas faixas, o jornal deu espaço para um depoimento no qual a cantora faz uma ligação entre a forma como ela foi criada pelos pais, em família, e a sua maneira de ser e de trabalhar. A artista começa o relato dizendo que seus pais se amavam "loucamente" e que ela e os irmãos cresceram participando desse sentimento e foram educados para se tornarem pessoas livres, sem brigas nem castigos.

"Foi tudo tão bacana que quando tiver um filho (e quero muito isso, não agora, mas daqui a uns dois anos, quando a cuca estiver mais no lugar) vou transmitir a ele o mesmo que recebi dos meus pais", argumentou a cantora, que na mesma página do depoimento aparece em uma foto segurando o sobrinho Moreno Veloso, nascido menos de um mês antes. "Educarei meus filhos da mesma maneira que fui educada. Sem grilos, com total liberdade de escolha e só fazendo o que ele gostar. MInha maneira de ser, tão livre, é consequência da educação que recebi".

Maria Bethânia com o sobrinho Moreno Veloso, em dezembro de 1972 — Foto: Antônio Carlos/Agência O GLOBO
Maria Bethânia com o sobrinho Moreno Veloso, em dezembro de 1972 — Foto: Antônio Carlos/Agência O GLOBO
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