Blog do Acervo
PUBLICIDADE
Blog do Acervo

O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Por William Helal Filho


O corpo do estudante Edson Luís sendo velado na Alerj, em 28 de março de 1968 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
O corpo do estudante Edson Luís sendo velado na Alerj, em 28 de março de 1968 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Um grupo de estudantes preparava um ato contra as condições precárias do restaurante Calabouço, que distribuía refeições a preço popular para alunos da rede pública e servia como base de articulação do movimento estudantil, no Centro do Rio. Por volta das 18h daquela quinta-feira, 28 de março de 1968, policiais militares chegaram dispostos a reprimir qualquer sinal de protesto e começaram a efetuar prisões. Diante da resistência de alguns manifestantes, os agentes reagiram fazendo disparos, e uma bala atingiu o peito do estudante secundarista Edson Luís Lima Souto, de 18 anos.

Inconsciente, o rapaz foi levado às pressas por colegas para a Santa Casa de Misericórdia, onde foi constatada sua morte. O projétil atravessara-lhe o coração, batera na coluna vertebral e perfurara seu pulmão. Natural de Belém, no Pará, Edson era muito pobre e tinha chegado ao Rio dois meses antes, atrás de uma vida melhor. Ele estudava no Instituto Cooperativa de Ensino, ao lado do Calabouço, e fazia bicos de faxina, mas não tinha onde morar e dormia no restaurante. Para o menino, defender o Calabouço era como defender a própria casa. Sua morte afetaria o curso da história do país.

O Brasil era governado, desde 1964, por uma ditadura militar cujos líderes haviam deposto o presidente João Goulart e prometido convocar novas eleições. Os generais, porém, se negaram a deixar o poder. Até 1968, houve pouca agitação nas ruas, já que o regime coibia qualquer indício de manifestação. Mas a morte no Calabouço deu início a uma série de atos pelo retorno da democracia, como a famosa Passeata dos Cem Mil, e fortaleceu a oposição no Congresso. O ano de 1968, contudo, terminaria com a edição do Ato Institucional de nº 5 (AI-5), o "golpe dentro golpe", que endureceu ainda mais o regime.

Calabouço: O Restaurante Central dos Estudantes no prédio inaugurado em 1967 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Calabouço: O Restaurante Central dos Estudantes no prédio inaugurado em 1967 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Inaugurado em 1951, na sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), na Praia do Flamengo, o Restaurante Central dos Estudantes foi transferido no ano seguinte para perto do Aeroporto Santos Dumont. O apelido de Calabouço surgiu devido ao boato de que o local servira como uma prisão para negros escravizados no século XIX. O complexo, que contava também com uma policlínica e um teatro, era como um centro comunitário para alunos de escolas e universidades públicas, e muitos deles se encontravam ali para articular ações políticas, algo que os militares não toleravam.

A ditadura, que queria se livrar do Calabouço, anunciou a demolição do complexo, em 1967, para criar melhorias de trânsito no Aterro do Flamengo. Em protesto, os estudantes chegaram a depredar o maquinário das obras. Para acalmar os ânimos, o então governador da Guanabara, Negrão de Lima, prometeu outro "bandeijão" perto do antigo. Só que o Calabouço foi abaixo antes da entrega do prédio novo, o que proporcionou a deixa para a "operação pendura". Durante meses, estudantes comiam em restaurantes caros do Rio e saíam sem pagar, fazendo discursos com críticas aos militares.

Quando o novo galpão foi aberto, em agosto de 1967, a situação era precária. Do piso de terra batida subia uma nuvem de poeira sempre que a fila se formava, nas refeições. As condições, inaceitáveis, motivaram o protesto no qual Edson Luís foi morto por policiais, há 55 anos.

Revoltados com o assassinato do colega, e temendo que os militares acobertassem o crime, os estudantes não deixaram nem o corpo ser levado ao Instituto Médico Legal (IML). Eles carregaram o cadáver do menino até a Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj) e o colocaram sobre uma mesa do saguão. Àquela altura, a notícia se espalhara pelo país, e a comoção tinha tomado conta do Rio. Já era tarde da noite quando uma multidão de cerca de 50 mil pessoas se reunia no entorno do prédio para velar o corpo do paraense morto pela repressão durante uma manifestação pacífica.

Milhares de pessoas perto da Alerj, no dia seguinte à morte de Edson Luís — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Milhares de pessoas perto da Alerj, no dia seguinte à morte de Edson Luís — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Várias pessoas foram feridas pelos disparos dos policiais e na confusão. O estudante Benedito Frazão também foi baleado e levado ao hospital, mas morreu no dia seguinte. Com a comoção em torno de Edson Luís, seu óbito não recebeu a devida atenção da História. O comerciário Telmo de Matos recebeu um tiro na boca quando observava o tumulto da janela de seu escritório. Muita gente se feriu quando um carro passou e jogou bombas na direção da aglomeração de estudantes e curiosos em frente à Alerj. Alguns policiais, agredidos por manifestantes, também precisaram de atendimento.

Negrão de Lima demitiu o superintendente da polícia e mandou prender os agentes envolvidos. Mas eles nunca foram processados, nem muito menos condenados. Acusado de ser o autor do tiro que matou Edson Luís, o aspirante Aloísio Azevedo Raposo disse, em depoimento, que ele e 25 PMs sob seu comando se dirigiram ao Calabouço para impedir a organização de uma passeata e foram recebidos com agressões. Mas o policial garantiu que ninguém da equipe efetuou disparos.

Às 16h do dia seguinte ao crime, uma sexta-feira, teve início um cortejo fúnebre da Alerj ao cemitério. Os estudantes recusaram o carro de apoio e se revezaram em grupos de dez para carregar o caixão nos ombros. No trajeto, levantaram cartazes e gritaram palavras de ordem exigindo o fim da ditadura. Nas janelas dos prédios pelo caminho, moradores penduraram bandeiras do Brasil com fitas pretas, em sinal de luto. No Colégio Santa Teresinha, na Rua da Lapa, freiras choravam assistindo ao rito. Na Rua General Polidoro, as donas de casa serviam copos d'água aos participantes do cortejo.

Um engarrafamento de duas horas se formou entre o Centro e Botafogo. Nos arredores do Cemitério São João Batista, os moradores diziam que nem a morte de Carmem Miranda motivara um funeral com tanta gente emocionada. A noite já tinha caído quando os estudantes chegaram lá assobiando a "Marcha do Adeus", usando tochas improvisadas para iluminar o caminho até o túmulo, onde apenas um manifestante discursou, pedindo "justiça", antes de o caixão com Edson Luís ser depositado ali, com a bandeira do Brasil, sem a presença de parentes, já que o garoto vivia sozinho no Rio.

Estudantes com tochas improvisadas chegam a cemitério com corpo de Edson Luis — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Estudantes com tochas improvisadas chegam a cemitério com corpo de Edson Luis — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Atitudes movidas pela revolta haviam marcado aquele dia. Um oficial da Aeronautica e seu motorista foram agredidos por manifestantes, que depois incendiaram o carro de serviço deles, perto do cemitério. Muros foram pichados por jovens exortando a população para a luta armada contra a ditadura. Presidente da UNE, que estava na clandestinidade desde 1964, Vladimir Palmeira conclamou os estudantes a retomar o prédio onde funcionava a entidade, no Flamengo.

Negrão de Lima havia sido escolhido mandatário da Guanabara derrotando o candidato do regime militar, em 1965, nas últimas eleições estaduais permitidas pela ditadura. Como os generais não gostaram do resultado em algumas unidades da federação, eles decidiram editar o Ato Institucional 3 (AI-3), em 1966, banindo os pleitos para governador, que só voltariam a ocorrer em 1982. Mesmo não sendo querido pelo regime, Negrão de Lima acionou o Exército para ajudar a conter os protestos que se seguiriam à morte do secundarista. A atitude só serviu para adicionar violência à situação.

Já no domingo depois do crime, quando seria celebrado o quarto aniversário do golpe militar, em 31 de março, protestos estudantis contra a ditadura, impulsionados pelo episódio no Calabouço, foram duramente reprimidos. Duas pessoas morreram e cerca de cem ficaram feridas.

No dia 4 de abril, duas missas de sétimo dia foram celebradas na Candelária em homenagem a Edson Luís. Na primeira, pela manhã, cerca de mil pessoas lotaram a igreja e mais uma multidão ficou do lado de fora. Ao fim do culto, a cavalaria da PM chegou até a entrada do templo para atacar, com golpes de sabre, as pessoas que deixavam o local. Com ordens expressas para impedir a realização de uma eventual passeata, os agentes não pouparam nem mulheres e crianças das agressões.

Cavalaria da PM cerca Igreja da Candelária após missa para Edson Luís, em 4 de abril de 1968 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Cavalaria da PM cerca Igreja da Candelária após missa para Edson Luís, em 4 de abril de 1968 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Na segunda missa, a partir das 18h15, havia o dobro de pessoas, e os padres da cerimônia, para evitar outro massacre, decidiram escoltar os presentes ao fim da celebração. Ao sair da igreja, depararam-se com pelotões de policiais, militares e agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) que esperavam do lado de fora, com helicópteros sobrevoando a área.

"Pare, em nome de Deus", gritou o padre Luciano, atirando-se, com as mãos levantadas, sobre o oficial-comandante da cavalaria, que já erguia o sabre para golpear as pessoas que deixavam a igreja. O PM recuou, mas avisou: "Tenho ordens de não permitir qualquer passeata. Por favor, afaste-se que temos que dissolver a massa", disse o agente, arregalando os olhos ao ver uma fileira de párocos de braços dados, protegendo a multidão. Os padres escoltaram centenas de pessoas para a Avenida Rio Branco, evitando o pior, mas não houve jeito de impedir toda a violência.

No entorno da Candelária, os agentes recorriam a agressões e jogavam bombas de gás lacrimogêneo sobre qualquer pequena aglomeração que viam na rua. Foi uma noite de muita hostilidade, que deixou grande parte da sociedade carioca em choque. Nos meses seguintes, a agitação protagonizada pelo movimento estudantil, com apoio da classe artística, tomaria conta do Rio e de diversas capitais. A ditadura, que desde 1964 não havia encontrado uma resistência popular nas ruas do Brasil, viu esse quadro mudar radicalmente depois da morte do secundarista Edson Luís de Lima Souto.

Registro estudantil de Edson Luís Lima Souto — Foto: Reprodução/Arquivo Nacional
Registro estudantil de Edson Luís Lima Souto — Foto: Reprodução/Arquivo Nacional
Mais recente Próxima Xuxa e o puxão de orelha do general que 'reprovou' sua minissaia no vestibular