Uma série de reportagens realizadas por jornalistas do diário americano "The Boston Globe" sacudiu o mundo, em 2002, ao revelar que autoridades da Igreja Católica acobertaram, durante anos, casos de padres que abusavam sexualmente de crianças. As matérias produzidas pela equipe de repórteres do jornal chamada de "Spotlight" tiveram repercussão internacional, levaram à renúncia do então cardeal de Boston, Bernard Law, e abalaram as estruturas do Vaticano, que, a partir de então, passou a ser cobrado a tomar providências sobre escândalos de pedofilia envolvendo seus sacerdotes.
- Pedofilia na Igreja: Mais de cem padres acusados de abuso no Brasil, desde 2001
- Detalhes dos crimes: Padres condenados por pedofilia criaram "manuais" sobre abuso
Durante a produção das reportagens, uma das fontes mais valiosas foi o psicoterapeuta Richard Sipe. Americano que servira como padre ao longo de 18 anos, até deixar a Igreja, em 1970, Sipe passou a clinicar em instituições de saúde mental para onde sacerdotes eram enviados por seus bispos após serem acusados de abusar de menores. Com o tempo, o terapeuta se tornou pesquisador de temas como o celibato e a pedofilia entre clérigos. Em mais de 20 anos, o especialista realizou mais de 1500 entrevistas com religiosos e pessoas que haviam sido abusadas por homens de batina.
Assim como não ficou surpreso com as revelações do "Boston Globe", Sipe também não se assustaria com os dados levantados pelo livro “Pedofilia na Igreja — um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil”, dos jornalistas Fábio Gusmão e Giampaolo Braga
Apoiado em seus estudos, o pesquisador estimou que 6% de todos os padres católicos são pedófilos e que apenas 50% dos clérigos mantém-se realmente fiéis ao celibato. Mais do que isso, o especialista mostrou que há uma ligação entre ambas as questões. De acordo com ele, a maioria dos sacerdotes que violavam o voto de castidade faziam sexo com mulheres. Entretanto, no esforço para esconder essa "infração", esses religiosos acabaram criando um sistema de silenciamento que servia para ocultar, também, os crimes de pedofilia cometidos por uma minoria dos padres.
Sipe já vinha tentando divulgar seus achados muito antes da reportagem do "Boston Globe". Em 1986, por exemplo, ele apresentou os dados em uma conferência de bispos católicos americanos, mas nada foi feito a respeito. Então, ele se aproximou de organizações civis que combatiam o problema e passou a escrever sobre o assunto. O pesquisador também participou, na posição de "testemunha técnica", de algo em torno de 250 julgamentos envolvendo abuso sexual cometido por religiosos. Em todas essas ocasiões, Sipe sempre reafirmava os resultados de seu trabalho.
- Presidente da CNBB: "Crime é crime! Deve ser tratado como crime", diz autoridade
- Revelação em novo livro: Ao pedir perdão, padre disse que eram 'carinhos de pai para filho'
Em 1990, o especialista publicou o livro "A Secret World: Sexuality and the Search for Celibacy” (Um mundo secreto: sexualidade e a busca por celibato, em tradução livre). Trata-se de um grande estudo etnográfico que se tornou marco na compreensão do celibato e do abuso sexual entre padres, reunindo os principais achados em mais de 20 anos de pesquisa. Naquela época, Sipe acreditou que estava colaborando com a Igreja ao expor um problema tão grave e que sua pesquisa seria acolhida dessa forma. Mas, na realidade, ele se tornou alvo de críticas e foi até banido de algumas dioceses.
Com a reportagem do "Globe", em 2002, os dados reunidos pelo terapeuta ganharam destaque. Sua pesquisa, mostrando que o abuso sexual era sistêmico na Igreja, ajudou a nortear a apuração. De acordo com a investigação do jornal baseado na maior cidade católica dos EUA, a Arquidiocese de Boston acobertara acusações de abuso sexual infantil contra ao menos 70 padres locais. Sipe, aliás, é interpretado por Richard Jenkins no filme "Spotlight". Estrelado por astros de Hollywood e lançado em 2015, o longa mostra os bastidores da série de reportagens que ganhou o prêmio Pulitzer.
- Ouça o podcast: As histórias de abuso sexual na Igreja do Brasil
"O trabalho dele foi muito importante. Richard Sipe explicou os horrores que estávamos descobrindo enquanto entrevistávamos vítimas do abuso sexual de clérigos", contou Michael Rezendes, um dos jornalistas responsáveis pelas reportagens do "Globe", durante uma entrevista em 2018, dias depois da morte de Sipe, aos 85 anos. "A gente estava achando difícil de acreditar que havia tantas vítimas e padres abusadores. E o Richard nos assegurou que aquelas descobertas não o surpreendiam, não eram incomuns. Estavam, na verdade, em linha com a pesquisa dele".
Em 2017, uma investigação da Comissão Real da Austrália concluiu que 7% dos padres no país haviam sido acusados de abusar de crianças entre 1950 e 2010. Já um estudo de 2004 financiado pela própria Igreja informou que mais de 4 mil padres americanos tinham lidado com alegações de pedofilia desde a década de 1950. Os casos envolviam mais de 10 mil crianças, em sua maioria, meninos.
Desde a reportagem do "Globe", estouraram outros escândalos de abuso sexual na Igreja. O Vaticano vem sendo pressionado a tomar medidas para coibir esses crimes. Em diferentes ocasiões, o Papa Francisco pediu "tolerância zero" com padres envolvidos. Segundo ele disse em entrevista à CNN de Portugal, em 2002, "um padre pedófilo é doente ou criminoso e deve ser expulso". Em 2019, o Pontífice expulsou o cardeal americano Theodore McCarrick, condenado por agressões sexuais a menores, e determinou que todos os membros da Igreja são obrigados a relatar casos suspeitos.