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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

O voo 820 da Varig partiu do Aeroporto Internacional do Galeão, no Rio, e realizou uma viagem tranquila até os seus instantes finais. Quando o Boeing 707 já estava em procedimento de descida, bem perto de Paris, na França, uma fumaça começou a tomar conta do avião. Segundo investigações posteriores, um incêndio havia se iniciado em um dos banheiros da parte traseira, supostamente porque alguém largou um cigarro aceso na lixeira. A tripulação tentou apagar o fogo, mas não conseguiu.

Com a aeronave em chamas, o piloto Gilberto Araújo se viu obrigado a fazer um pouso de emergência, aterrissando "de barriga" em uma plantação de repolhos, a apenas seis quilômetros do Aeroporto de Orly, na capital francesa. Assim, o comandante impediu a queda do avião sobre um vilarejo 200 metros adiante. Mas, naquela quarta-feira, 11 de julho de 1973, há 50 anos, morreram 123 pessoas, a maioria delas intoxicadas pela fumaça antes mesmo do pouso forçado. Apenas 11 a bordo sobreviveram.

Quase todas as vítimas fatais eram brasileiras. Entre elas, o cantor Agostinho dos Santos, que fizera sucesso com as canções "Manhã de Carnaval" e "Felicidade", do filme "Orfeu Negro", a socialite Regina Lecléry, o velejador Jörg Bruder e o então presidente do Congresso Nacional, senador Filinto Müller, que havia se tornado famoso no Brasil durante a ditadura do Estado Novo, como chefe de polícia de Getúlio Vargas, responsável por prender e torturar opositores do regime, nos anos 1930.

O senador Filinto Müller, ex-chefe de Polícia de Vargas, em 1959 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
O senador Filinto Müller, ex-chefe de Polícia de Vargas, em 1959 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Matogrossense de Cuiabá, Müller se mudara jovem para o Rio, onde iniciou uma carreira como militr. Nos anos 1920, integrou o movimento tenentista, participando da Revolta Paulista de 1924 e até da Coluna Prestes, que se opunha ao presidente Arthur Bernardes e à República Velha. Contudo, ao tentar começar uma deserção coletiva, foi descoberto e expulso a mando do próprio Luís Carlos Prestes, que o chamou de covarde e indigno, em 1925. A "vingança" de Muller se concretizaria anos depois.

Em 1933, Müller se tornou chefe de Polícia Rio, que na época era a capital do Brasil. Como capanga do presidente Getúlio, o matogrossense coordenava um aparato de repressão para perseguir opositores do governo. Em 1935, após a Intentona Comunista, ele se tornou um caçador dos líderes da revolta. Seus esforços levaram à prisão de Luís Carlos Prestes e da mulher dele, a militante judia Olga Benário, que depois seria deportada por Vargas à Alemanha nazista, onde ela foi executada no Holocausto.

Após o fim do Estado Novo, Muller entrou para a política e foi eleito senador quatro vezes, a partir de 1947. Com o golpe militar de 1964, o ex-chefe de polícia se filiou ao Arena, partido de sustentação da ditadura. Ele foi um apoiador de primeira hora do Ato Institucional 5 (AI-5), que inaugurou o período de mais violência do regime se tornou presidente da legenda em 1969. No voo 820 da Varig, ele morreu ao lado de sua mulher, Consuelo, e de um neto chamado Pedro, que viajava com o casal.

Dos 11 sobreviventes da tragédia, 10 eram membros da tripulação. Eles só não morreram porque se abrigaram na cabine do piloto e não inalaram muito da fumaça tóxica gerada pelo incêndio. Mas todos escaparam com fraturas ou queimaduras provocadas pelo desastre. Os socorristas chegaram menos de 10 minutos depois do acidente. A primeira coisa que o piloto Gilberto Araújo disse ao sair do avião em chamas foi: "Eu sou um homem morto". A profecia, porém, ainda levaria anos pra se concretizar.

Local da tragédia com o voo 820, na França, em 1973 — Foto: Reprodução/Museu dos Bombeiros de Paris
Local da tragédia com o voo 820, na França, em 1973 — Foto: Reprodução/Museu dos Bombeiros de Paris

O comandante sobreviveu e foi condecorado por realizar o pouso em uma plantação, evitando a queda sobre um vilarejo. Mais tarde, porém, Araújo se envolveria em um segundo desastre. Em 1979, ele conduzia um avião cargueiro que saiu de Narita, no Japão, com destino ao Rio, transportando quadros do pintor japonês naturalizado brasileiro Manabu Mabe que estavam expostos em uma mostra. Mas o Boeing 707 desapareceu cerca de 30 minutos após decolar. Os destroços jamais foram encontrados.

Único sobrevivente entre os passageiros do voo 820, Ricardo Trajano tinha 21 anos naquele dia 11 de julho. Estava sentado numa poltrona na janela da última fileira. Os assentos ao lado estavam vagos. Quando o incêndio começou, bem perto dele, Trajano se levantou, foi lá pra frente e se deitou no chão da galley (área onde são preparados os alimentos e bebidas), bem perto da cabine. Quando disseram para ele voltar a seu lugar, ele não obedeceu. Foi essa transgressão que salvou a vida do rapaz.

Colado na cabine, Trajano respirou menos a fumaça tóxica que matou os outros passageiros. Ele foi resgatado pelos socorristas poucos minutos após o acidente. O mineiro, que estava inconsciente e com muitas queimaduras no corpo (o teto do avião desabara devido ao fogo), passou mais de 80 dias internado num hospital. Sua família achava que estava morto, mas ele escreveu um bilhete no leito do hospital, identificando-se, e os pais suspenderam o velório que havia sido encomendado.

"Tenho 63 anos, mas na verdade tenho 42. A data do meu renascimento é 11 de julho de 1973", disse o sobrevivente ao GLOBO numa entrevista em 2015. "Escolher o último lugar foi vital, porque foi lá atrás que começou a fumaça. As pessoas que viram ficaram sentadas, mas eu falei: 'Não vou ficar'."

Em 1973, Trajano estava viajando de férias. Seu destino final era Londres, considerada a meca dos fãs de rock, na época. Cerca de um ano depois de se recuperar, o estudante mostrou que o acidente não deixara traumas psicológicos e entrou de novo em um avião, para concretizar o sonho de conhecer a capital britânica. Hoje, ele é pai de duas filhas e dá palestras motivacionais, levando a encontros de empresas uma mensagem de superação, destacando o que realmente importa na vida.

Ricardo Trajano e José Ribeiro, passageiro e comissário sobreviventes, em 2015 — Foto: Guito Moreto/Agência O GLOBO
Ricardo Trajano e José Ribeiro, passageiro e comissário sobreviventes, em 2015 — Foto: Guito Moreto/Agência O GLOBO
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