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O passado com um pé no presente.

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William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

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A turnê de Amy Winehouse no Brasil estava cercada de expectativa. Não apenas a imprensa daqui, mas jornais e sites europeus badalaram a viagem da cantora ao país, em janeiro de 2011. Celebrada pela potência de sua voz, a soulwoman que completaria 40 anos nesta quinta-feira vinha de dois anos com parcas e problemáticas apresentações, arrastando a compulsão por drogas e bebidas, pulando de uma crise até outra. Após muitas tentativas de reabilitação, boa parte da mídia acreditava que a caravana brasileira poderia revelar uma artista recuperada de seus males. Mas, longe disso.

A aventura tropical da moradora de Camden Town, reduto da contracultura em Londres, deixou claro o quanto a popstar britânica estava presa a um vício debilitante e inaugurou um semestre que terminaria com a trágica morte da maior estrela alva da música negra no século XXI.

No começo, tudo parecia até melhor do que o esperado. Em seu primeiro show no Brasil, em 8 de janeiro de 2011, a cantora foi impecável. Diante das 12 mil pessoas que lotaram o Stage Music Park, na Praia de Jurerê, em Florianópolis, Amy subiu ao palco após ótimas performances dos americanos Mayer Hawthorne e Janelle Monáe. De tubinho cor-de-rosa sob o famoso penteado de colmeia, em meio aos nove integrantes de sua banda, a artista abriu a noite com "Just friends" e enfileirou hits até encerrar com a então bombada versão de "Valerie", gravada ao lado do produtor Mark Ronson.

Amy Winehouse durante show na Arena Barra, no Rio, em janeiro de 2011 — Foto: Mônica Imbuzeiro/Agência O GLOBO
Amy Winehouse durante show na Arena Barra, no Rio, em janeiro de 2011 — Foto: Mônica Imbuzeiro/Agência O GLOBO

Sóbria e centrada, a britânica exibiu sua técnica jazzística de improvisos com a voz, deslizando com brilhantismo sobre o assoalho sonoro criado pela excelente banda que a auxiliava. Aquela era a Amy que motivara todo o hype em torno de seu nome desde que estourara, em 2007. A premiada Amy que vendera milhões de cópias de seus discos e inspirara até fantasias do carnaval de rua carioca.

Mas as coisas começaram a azedar. A cantora estava hospedada na suíte 51 do Hotel Santa Teresa, no Rio, que fizera de base para seus quatro shows no Brasil. O frigobar do quarto, por exigência dos empresários, estava tomado por garrafas de água. Mas ela deu um jeito de invadir a suíte vizinha e levar de lá tudo o que tinha álcool. Amy passava os dias na piscina, entornando champagne Veuve Clicquot e comendo de tudo um pouco. Deliciou-se com o hamburguer de lagosta do chef francês Damien Montecer, mas não abriu mão de "temperar" o sanduíche com mostarda e ketchup.

Enquanto no Brasil, a britânica não consumiu drogas como heroína ou cocaína. Mas abusou do álcool. Os promotores da turnê tinham que estar sempre vigilantes. Todos sabiam como a bebida deixava a cantora estragada e, portanto, o consumo era controlado. Em dias de show, ela só podia beber até um certo horário. Quando estava de folga, não havia limites. Num desses pileques, foi fotografada com os seios à mostra, de olhos virados, na varanda de sua suíte, à luz do dia. Em outro momento, quebrou garrafas e danificou obras de arte do hotel. Mas a artista tinha um lado doce e espontâneo.

Amy Winehouse deixando hotel no Rio para show em Florianópolis — Foto: Marcelo Piu/Agência O GLOBO
Amy Winehouse deixando hotel no Rio para show em Florianópolis — Foto: Marcelo Piu/Agência O GLOBO

Durante uma entrevista em 2021, Damien Montecer lembrou de quando, na cozinha do hotel, atendeu a um telefonema de Amy. "Falei que servíamos salada, peixe, carne, frutos do mar e ela disse: 'Você gosta de pizza? Então traz uma para mim e outra para você'. E desligou na minha cara", relembrou ele. "Liguei para uma pizzaria no Jardim Botânico e pedi duas de pepperoni. Amy pediu para eu pegar minha pizza e me sentar à mesa. Ela disse que ia me ensinar a comer. Enrolou a pizza inteira como se fosse um cigarro e comeu como se fosse um tubo. Quebrou os paradigmas de se comer pizza!"

Em sua segunda performance brasileira, na Arena Barra, no Rio, a cantora mostrou como a lucidez de sua exibição em Florianópolis era algo raro. Ela parecia o tempo todo a quilômetros de distânia (talvez como se cantarolasse na piscina do hotel em Santa Teresa). Em alguns momentos, errava a letra de suas músicas, em outros, errava a hora de entrar nas canções. Quase não interagiu com o público e chegou a sair do palco sem falar nada, deixando para sua banda a tarefa de entreter uma plateia incrédula. Na volta, trocou o copo no qual bebericava por uma garrafa de cerveja long neck.

No dia 13 de janeiro, em Recife, a situação dela tinha se agravado. Amy vinha emagrecendo a olhos vistos, o que deixava a "pequena notável" de Londres com uma aparência mais frágil que o normal. Ela até buscou engajamento com a plateia, mas se movimentava de forma errática, o olhar perdido. Mais uma vez, errou ao cantar algumas de suas letras. Quando tentou um rodopio para divertir os fãs, levou um tombo e precisou da ajuda de um músico para se levantar. O público, entretanto, delirava a cada tropeço, deixando claro que o quadro conturbado da artista havia se tornado um fetiche.

Amy Winehouse conversa na piscina do Hotel Santa Teresa, no Rio, em 2011 — Foto: Gabriel de Paiva/Agência O GLOBO
Amy Winehouse conversa na piscina do Hotel Santa Teresa, no Rio, em 2011 — Foto: Gabriel de Paiva/Agência O GLOBO

Quem esteve no show em São Paulo, que marcou a despedida de Amy do país, descreveu um clima ainda mais estranho. Uma parte da plateia de 30 mil pessoas na Arena Anhembi parecia estar lá para ver uma estrela em decadência. Como na música "A queda", de Glória Groove, essa parcela do público havia garantido seu ingresso para ver a diva branca do soul fazendo merda. A artista não lhes deu esse prazer com equívocos extravagantes, mas a performance foi bem aquém de sua potência. Ela cantava sem terminar os versos, meio cambaleante, altertando distanciamento com euforia repentina.

As testemunhas de Amy Winehouse no auge sabem porque ela era incensada mesmo em declínio. Estive no festival Coachella em abril de 2007, quando ela subiu ao palco usando micro-short jeans e top branco. Espremida entre o arranjo de cabelo e os saltos, parecia maior do que o 1,59m de altura. Visivelmente nervosa, até inadequada, conversava com as pessoas na primeira fila, entre as canções, talvez para não encarar o grande público sob a tenda. Mas, quando cantava, era uma força da natureza. Brincava com a própria voz. Entrava e saía da música como se estivesse na sua cozinha.

Os brasileiros não sabiam, mas a turnê no país foi a última da artista. Em maio daquele ano, ela ainda fez um show desastroso em Belgrado, antes de se recolher na sua casa em Candem. Por um período de sua vida, a dona do megahit "Rehab" havia conseguido transformar seus demônios em arte, como quando escreveu todas as faixas de seu melhor álbum, "Back to black" (2007), enquanto sofria com o fim de um romance. Depois, porém, não pôde frear a própria rota de colisão. O corpo da artista foi encontrado por um segurança na casa dela, às 15h54m do dia 23 de julho de 2011.

Segundo o laudo com a causa do falecimento, Amy sofreu um colapso por excesso de bebida depois de um período de abstinência. Ela vinha tenando parar, mas a quantidade de álcool ingerida num momento de fraqueza caiu sobre seu corpo debilitado como uma bigorna, levando a uma parada cardíaca quando ela estava sozinha em sua cama. A cantora morreu aos 27 anos, mesma idade que tinham, ao partir, Kurt Cobain, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jean-Michel Basquiat e tantos outros artistas geniais e de alma grande, para quem existir neste plano talvez fosse dolorido demais.

Amy Winehouse acena da janela do hotel no Rio — Foto: Marcelo Piu/Agência O GLOBO
Amy Winehouse acena da janela do hotel no Rio — Foto: Marcelo Piu/Agência O GLOBO
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