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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

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Um dos primeiros ases do automobilismo brasileiro, o piloto Irineu Corrêa tinha quatro adversários a sua frente e decidiu executar uma manobra arriscada para tomar a dianteira, "costurando" com o seu Ford V8 entre os adversários em alta velocidade. Quando foi de um lado a outro da pista, entretanto, ele perdeu o controle do veículo, que subiu chacoalhando na calçada e se chocou contra uma árvore. O impacto fez seu carro capotar, arremessando o condutor pelos ares. Ao cair no canal da Rua Visconde de Albuquerque, no Leblon, Corrêa já estava morto. Tinha 35 anos de idade.

O acidente que tirou a vida do piloto foi um entre os vários ocorridos no circuito da Gávea. Uma das primeiras provas de automobilismo do Brasil, que colocou o país no mapa internacional das corridas, o circuito foi realizado pela primeira vez há 90 anos, em 8 de outubro de 1933. Com 11 quilômetros, o traçado começava na Rua Marquês de São Vicente, na Gávea, de onde os pilotos iam para a Visconde de Albuquerque e davam a volta no Morro Dois Irmãos pela Avenida Niemeyer, retornando ao ponto de partida pela Estrada da Gávea, subindo e descendo a montanha que hoje abriga a favela da Rocinha.

Com mais de cem curvas e passando por pisos irregulares, incluindo trechos nos quais os pilotos eram obrigados a desviar de trilhos de bonde com as suas "baratinhas", o circuito da Gávea era tão perigoso que a largada foi apelidada de "trampolim do diabo". Em 1934, o paulista Nino Crespi morreu ao descer a ladeira sinuosa de paralelepípedos da Marquês de São Vicente a 100km/h. Depois de tocar a traseira da Chrysler de José Santiago, perdeu o controle de seu Bugatti e colidiu com uma árvore. A prova foi vencida por Irineu Corrêa, que viria a falecer no ano seguinte, na terceira edição da corrida, em 1935.

Circuito da Gávea: A subida da Avenida Niemeyer, com o Hotel Leblon ao fundo, em 1947 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Circuito da Gávea: A subida da Avenida Niemeyer, com o Hotel Leblon ao fundo, em 1947 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Mas o evento não era arriscado apenas para os competidores. Os moradores do Rio adoravam assistir aos ases do automobilismo nos mais diversos trechos do circuito. E, como, não havia nenhum tipo de proteção isolando o trajeto do público, muita gente caminhava na pista durante a prova e apenas se deslocava às pressas para a margem da pista quando alguma "baratinha" se aproximava. Um caos!

Mesmo com os acidentes, o circuito da Gávea atraiu a atenção de pilotos importantes da época, entre eles os brasileiros Manuel de Teffé e Chico Landi e os italianos Carlo Pintacuda e Attilio Marinoni, nas décadas de 1930 e 1940, além do argentino Juan Manuel Fangio. Idealizada pelo Automóvel Clube, com o aval do então presidente do país, Getúlio Vargas, a prova era um dos eventos mais incensados do Rio, na época em que a cidade ainda era a capital federal. A corrida aconteceu 16 vezes, entre 1933 e 1952, com um hiato de quatro anos durante a Segunda Guerra Mundial.

Circuito da Gávea: O trajeto da prova, em mapa de 1941 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Circuito da Gávea: O trajeto da prova, em mapa de 1941 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Entrou para a história a participação da francesa Hellé Nice, dançarina e modelo erótica que amava pilotar. Em 1929, depois de ter os ligamentos de um joelho rompidos num acidente de esqui, ela ficou impossibilitada de dançar nos cabarés de Paris e mergulhou no automobilismo. Em 1936, quando veio ao Rio para competir no circuito da Gávea, ela causou furor ao posar para fotos usando biquíni de duas peças, fumando, na Praia de Copacabana. Na prova, diante de 500 mil pessoas, Nice chegou a ficar em terceiro lugar, mas, devido a um problema mecânico, abandonou a prova na 11ª das 25 voltas.

No mês seguinte, durante o primeiro Grande Prêmio da Cidade de São Paulo, nas ruas da metrópole, Nice estava em quarto lugar, disputando palmo a palmo o terceiro posto com o brasileiro Manuel de Teffé, quando, a 30 metros da chegada, envolveu-se em um acidente que capotou o seu Alfa Romeo, atirando-a para fora do veículo. O carro atingiu em cheio a multidão que assistia à prova, matando seis pessoas e ferindo outras várias. A imprensa da época descreveu o acidente como uma cena de terror, com corpos mutilados. Nice foi levada ao hospital, mas sem fraturas. Ela se recuperou bem.

Ao longo dos anos, o circuito da Gávea gerou alguns heróis. O italiano Carlo Pintacuda venceu a prova em 1937 e 1938. Sua postura nas corridas fez com que seu nome se tornasse sinônimo de audácia na gíria carioca. Nos anos 1950, Armando Cavalcanti e Klécius Caldas criaram a "Marcha do gago" ("Sou mo-mole pra fa-falar/Mas sou um Pintacuda pra beijar"). Mas o maior campeão do Rio foi o paulista Chico Landi, vencedor em 1941, 1947 e 1948. Mais tarde, ele se tornaria o primeiro brasileiro a disputar provas da Fórmula 1. Seu melhor resultado foi um 4º lugar no GP da Argentina, em 1956.

Circuito da Gávea: Público se arrisca ao lado da pista de corrida — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Circuito da Gávea: Público se arrisca ao lado da pista de corrida — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
A francesa Hellé Nice: dançarina de cabaré e pioneira do automobilismo — Foto: Reprodução
A francesa Hellé Nice: dançarina de cabaré e pioneira do automobilismo — Foto: Reprodução
Circuito da Gávea: O brasileiro Chico Landi erguido após vencer em 1947 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Circuito da Gávea: O brasileiro Chico Landi erguido após vencer em 1947 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Circuito da Gávea: O piloto bicampeão Carlo Pintacuda — Foto: Arquivo/Divulgação
Circuito da Gávea: O piloto bicampeão Carlo Pintacuda — Foto: Arquivo/Divulgação
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