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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

Todo verão, a mesma história. A orla da Zona Sul fica lotada, turbas de jovens se espalham por ruas de bairros como Ipanema, Copacabana e Flamengo. Ondas de assaltos, vítimas de agressão e ônibus depredados ganham o noticiário. Então, surgem os "justiceiros" alegando que, na falta de policiamento, decidiram sair por aí em bandos armados de porrete e soco inglês. No dia 31 de janeiro de 2014, a artista plástica e ativista social Yvonne Bezerra de Melo encontrou um adolescente negro de 15 anos preso a um poste com uma trava de bicicleta no Aterro do Flamengo. O menino, que estava sem roupas, havia sido espancado sob a alegação de que ele praticava assaltos na área.

"Vizinhos avisaram e encontrei o jovem ainda preso pelo pescoço. Enquanto aguardava os bombeiros, ele disse que os agressores se referiam uns aos outros como 'justiceiros da moto'. Ele não falou mais nada porque estava mesmo muito machucado", descreveu Yvone em entrevista ao GLOBO, na época. "Mas moradores contaram que os agressores eram jovens de classe média de uma academia de artes marciais do bairro. Mas não há, por ora, como provar isso".

A artista plástica, fundadora do Projeto Uerê, fotografou o jovem preso ao poste e publicou a imagem nas redes sociais, para denunciar a agressão. O registro se espalhou pela internet e virou notícia em várias partes do Brasil. De um lado, muita gente ficou horrorizada e criticou a atitude dos "justiceiros". Mas uma parte da sociedade aplaudiu. Na Câmara dos Deputados, em Brasília, enquanto Benedita da Silva condenava agressão, o então parlamentar Jair Bolsonaro dizia que daria o endereço da petista a "esse vagabundo, para que ele vá praticar furtos onde ela mora". Para Bolsonaro, mesmo sem provas contra o adolescente, o espancamento foi um "ato de coragem" dos agressores.

O assunto foi ganhando cada vez mais espaço no noticiário nacional. Em pouco tempo, Yvone passou a receber mensagens com xingamentos e ameaças em suas redes sociais. Ela chegou a registrar um boletim de ocorrência na 9ª DP (Catete). "Fiz apenas um ato de solidariedade e estou sendo ameaçada, não aguento mais essa sociedade violenta". No dia 3 de fevereiro, policiais detiveram 14 rapazes de 15 a 29 anos de idade, todos residentes na Zona Sul, acusados de agredir dois moradores de favela no Parque do Flamengo. Em entrevista, dois deles admitiram que o grupo se conheceu em um grupo no Facebook e decidiu sair às ruas procurando suspeitos de assaltos para espancar.

O menor preso a um poste no Aterro, dias depois da agressão, num abrigo da prefeitura — Foto: Fabio Rossi
O menor preso a um poste no Aterro, dias depois da agressão, num abrigo da prefeitura — Foto: Fabio Rossi

Depois de ser socorrido, o menor que tinha sido preso a um poste no Aterro do Flamengo foi levado a um abrigo da Prefeitura do Rio. Ele não reconheceu nenhum dos 14 jovens detidos como um daqueles que o agrediram. Então com três passagens pela 2ª Vara da Infância e da Juventude por furto, o garoto disse que estava indo para a Praia de Copacabana com três amigos quando foi abordado por dezenas de "playboys" em motocicletas. Dois meninos fugiram, mas ele e um outro foram espancados. Durante uma entrevista, com vários pontos recebidos atrás da orelha, o menor contou que um dos agressores estava armado com uma pistola "daquelas narigudas". Ele apanhou muito e foi obrigado a se despir.

"Os playboys eram todos fortes, no estilo Braddock, diziam o tempo todo quem iam me matar, que iam me levar para o morro e me picar todo. Eu só penso que, se eles não forem punidos, pode acontecer de novo com outra pessoa, de repente até com meu irmão", contou o adolescente. "

O garoto relatou um pouco da sua história de vida. Seu pai morreu antes que ele o conhecesse, por ligação com o tráfico de drogas em uma favela de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio. O menino estava morando nas ruas havia dois anos, depois de ser expulso do local onde sua mãe morava por furtar uma furadeira da casa de um vizinho. O menor, que não tinha concluído nem mesmo o 1° ano do ensino fundamental, mal sabia ler e escrever. Estava sempre entrando e saindo de abrigos da prefeitura e usava drogas como maconha "para ficar suave", além de thinner e cheirinho da loló.

Depois de dez dias no abrigo da prefeitura em fevereiro de 2014, o garoto espancado no Flamengo fugiu e voltou para as ruas. No dia 19 do mesmo mês, ele foi apreendido sob a acusação de assaltar dois turistas em Copacabana. Já os quatro jovens que, posteriormente, foram identificados como seus agressores e indiciados pela polícia já vinham sendo investigados por tráfico de drogas. Em 2016, dois deles foram presos com meio quilo de maconha, em São Cristovão, na Zona Norte. No mesmo ano, outro suspeito de integrar o grupo de "justiceiros" foi baleado ao deixar uma boate em Copacabana.

Grupos de justiceiros para combater assaltos no Rio já haviam sido notícia em outros anos. Em 1992, por exemplo, frequentadores da Praia de Ipanema se reuniram com o objetivo de impedir os "arrastões" que vinham sendo registrados na orla, naquele verão. "Se a polícia não faz nada, então somos nós que temos que tomar a decisão", disse o lutador de jiu-jitsu Marcelo Saporito, então com 34 anos. "Se vierem na paz, tudo bem; mas se quiserem guerra, vão ter guerra", complementou o faixa preta Amauri Bitetti, na época aos 23 anos. "Não tem nada com racismo. A gente nunca expulsou farofeiro. A gente expulsa é ladrão", afirmou o campeão de luta livre Marcelo Portinari.

Lutadores da Praia do Leblon que formaram grupo para combater arrastões em 1992 — Foto: Márcia Foletto/Agência O GLOBO
Lutadores da Praia do Leblon que formaram grupo para combater arrastões em 1992 — Foto: Márcia Foletto/Agência O GLOBO
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