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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

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O governo militar estava iniciando a sua fase de maior repressão na ditadura quando, no dia 24 de janeiro de 1969, o capitão Carlos Lamarca deixou o 4º Regimento de Intantaria de Quitaúna, em Osasco, São Paulo, a bordo de uma kombi levando 63 fuzis FAL, dez submetralhadoras INA e muita munição. Tudo subtraído do Exército para alimentar a luta armada contra o regime. Na tarde daquela sexta-feira, o carioca de 31 anos estava desertando e, ao mesmo tempo, iniciando com ousadia a sua curta, mas intensa, trajetória na guerrilha. A partir de então, Lamarca assumiria o comando do grupo Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e se tornaria o principal inimigo dos generais.

O oficial deixou o regimento com o sargento Darcy Rodrigues, o cabo José Mariani e o soldado Carlos Roberto Zanirato. A deserção e o furto do armamento representaram um vexame para o Exército. Os líderes militares encararam aquilo como uma traição imperdoável. Na verdade, o plano do capitão era ainda mais ambicioso. Lamarca idealizara sair do quartel no dia 26 de janeiro, com 560 fuzis, além de uma carga de obuses. Só que, no dia 23, policiais descobriram, escondido num sítio em Itapecerica da Serra, a 30km de São Paulo, a caminhonete Chevrolet que estava sendo pintada de verde oliva para que fosse usada na fuga da base, com o material surrupiado. Integrantes da VPR foram presos, e o capitão se viu obrigado a antecipar a partida e redimensionar o furto das armas.

A caminhonete foi localizada por acaso. Um menino foi flagrado pelos guerrilheiros bisbilhotando o galpão onde o veículo estava escondido. Depois de levar uma bronca e até uns tabefes dos aliados de Lamarca, o garoto foi correndo contar para sua mãe, que, em seguida, bateu tudo na delegacia local. Os policiais não deram trela quando ela contou que o filho tinha sido agredido, mas, ao ouvir sobre a tal caminhonete verde oliva...Não podiam deixar de averiguar.

Carlos Lamarca ainda no Exército, dando aula de tiro para civis — Foto: Reprodução
Carlos Lamarca ainda no Exército, dando aula de tiro para civis — Foto: Reprodução

O capitão sabia que, ao cruzar o portão do quartel, seria uma pessoa procurada pela repressão, e, por isso, providenciara a partida da mulher e os dois filhos para Cuba antes de deixar o Exército. Após desertar, viveu escondido em "aparelhos" da capital paulistana e, para financiar a guerrilha, participou de ações como o assalto às agências do Banco Mercantil e do Itaú, na Rua Piratininga, no dia 9 de maio, quando matou o guarda civil Orlando Pinto Saraiva, que tentara impedir o roubo. Em julho, Lamarca atuou no roubo de um cofre com US$ 2,5 milhões em uma mansão em Santa Teresa, no Rio. O cofre havia pertencido ao ex-governador paulista Adhemar de Barros, aliado fiel da ditadura. Morto em março daquele ano, ele era conhecido pelo bordão informal "rouba, mas faz".

Àquela altura, o capitão já estava vivendo com a militante Iara Iavelberg, que conhecera na luta armada. A VPR, aliás, havia se juntado ao Comando de Libertação Nacional (Colina), formando a VAR-Palmares, grupo do qual também fazia parte a hoje ex-presidente Dilma Rousseff, que divergia de Lamarca sobre os rumos da organização. Aos 22 anos, a então guerrilheira defendia que o grupo buscasse uma linha de ação menos armamentista para derrubar o regime militar.

Segundo historiadores, Lamarca entrara em contato com teorias socialistas na própria Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, no Rio. O jornal "Voz Operária" era misteriosamente deixado sob os travesseiros de cadetes possivelmente abertos a esse pensamento. Em 1962, Lamarca integrara as forças de paz das Nações Unidas em Gaza, na Palestina, testemunhando a pobreza do povo local. Na volta, 18 meses depois, serviria na 6ª Companhia de Polícia do Exército, em Porto Alegre, onde fora acusado de facilitar a fuga de um capitão brizolista que estava sob sua guarda, em 1964, após o golpe militar. Mas as costuras para ingressar na guerrilha só começaram em 1968, à medida que o regime se tornava cada vez mais autoritário e intolerante.

Iara Iavelberg: namorada de Carlos Lamarca durante a luta armada — Foto: Reprodução
Iara Iavelberg: namorada de Carlos Lamarca durante a luta armada — Foto: Reprodução

O roubo do cofre em Santa Teresa fez de Lamarca um dos homens mais procurados do Brasil, ao lado de Carlos Marighella. Os generais queriam se vingar da deserção. Seu nome havia sido riscado das placas de formatura na Aman e no Colégio Militar de Porto Alegre, onde ele cursara o ensino médio. As ações que liderava ganhavam destaque na imprensa e alimentavam a fúria das altas patentes. Carioca do Morro de São Carlos, no Estácio, ele quase foi preso em abril de 1970, no Vale do Ribeira, para onde o Exército enviou cerca de 2900 homens com o objetivo de capturá-lo. Foi então que se cruzaram os caminhos de Lamarca e de Jair Bolsonaro, então um adolescente do município de Eldorado.

Após meses confinado em apartamentos paulistanos, Lamarca e Iara partiram para a região ao Sul do Estado de São Paulo, no km 250 da rodovia BR-116, no Vale do Ribeira. O objetivo era instalar ali um campo de treinamento para a luta armada. Entretanto, em abril, a posição foi revelada por militantes presos e torturados no Rio. Era a deixa para a Operação Registro. A partir do dia 18 daquele mês, milhares de soldados do Exército e da PM, de diferentes unidades, com apoio de veículos terrestres e helicópteros, começaram a esquadrinhar a área em busca de Lamarca, que, encurralado, tratou de desmontar as instalações rebeldes e se enfiar na mata com alguns de seus companheiros (Iara tinha voltado à cidade para tratar de um hipotireodismo), em fuga.

Na caça ao inimigo, o Exército realizou até bombardeios com napalm, poderoso desfolhante usado na Guerra do Vietnã. Contudo, as tropas eram, na maioria, recrutas sem tempo de serviço. Por duas semanas, o ex-capitão e sete guerrilheiros ficaram na floresta, eludindo os soldados. No dia 8 de maio, Lamarca e seus homens apareceram numa picape perto de Eldorado, onde Bolsonaro, aos 15 anos, morava com a família. O grupo chegou a ser parado por uma viatura da PM, mas, no relatório oficial da Operação Registro, consta que, "por falta de experiência", os agentes foram surpreendidos pelos "terroristas", que desceram do carro atirando. Quatorze PMs ficaram feridos ou rendidos, e o tenente Alberto Mendes Júnior, de 23 anos, foi feito refém pelo grupo, que voltou para dentro da mata.

A localização do Vale do Ribeira, em São Paulo — Foto: Reprodução
A localização do Vale do Ribeira, em São Paulo — Foto: Reprodução

Segundo Bolsonaro, o tiroteio ocorreu numa praça de Eldorado perto da escola onde ele estudava. O ex-presidente diz que foi preciso sair rastejando do colégio, mas o relatório da operação informa apenas que o confronto aconteceu perto da "ponte sobre o Rio Etá", na estrada entre Eldorado e Sete Barras, e, ao que tudo indica, na parte da noite. Bolsonaro também gosta de alegar que ajudou os soldados na busca por Lamarca, guiando-os pelas trilhas. Mas não há registro disso. O político afirma que o cerco e a fuga do combatente foi determinante para ele decidir integrar o Exército, motivo, também, por um sentimento de revolta com a morte do tenente Alberto Mendes, assassinado com coronhadas na cabeça por um guerrilheiro, após mentir sobre a localização das tropas.

O cerco terminou após 41 dias, quando os militares se deram conta de que o grupo escapara depois de roubar um veículo do próprio Exército e passar todas as barreiras de fiscalização. Dois integrantes haviam sido presos, entre eles o também desertor Darcy Rodrigues. Mas a fuga de Lamarca após toda a mobilização de tropas foi mais um vexame para as Forças Armadas imposto pelo ex-capitão.

Lamarca ainda comandaria o sequestro do embaixador suíço Giovani Bucher, no Rio, que resultou na libertação de 70 presos políticos, enviados para o exílio no Chile. Depois do episódio, o guerrilheiro e sua parceira se esconderam num apartamento no Largo do Machado, até que decidiram fugir para a Bahia. Lamarca se mantinha firme em sua luta, mas o fim estava próximo.

Do interior da Bahia, Lamarca se comunicava por cartas com a sua companheira, que fora para Salvador. Em agosto de 1971, parte dessa correspondência, que estava na posse de guerrilheiros, foi extraviada pela polícia. Cruzando informações de topografia e vegetação colhidos nos escritos, as forças do governo chegaram à localização do ex-capitão do Exército.

No dia 20 de agosto de 1971, Iara foi morta a tiros num imóvel em Salvador. No dia 28, foi realizada a Operação Pajuçara, liderada pelo major Nilton Cerqueira, do DOI-Codi baiano, para procurar Lamarca em Buriti Cristialino. O fugitivo estava acampado no sítio do ex-metalúrgico José Campos Barreto, o Zequinha. Os militares invadiram a propriedade, matando dois irmãos de Zequinha. Os procurados ouviram os tiros e fugiram pela mata. Eles vagaram na paisagem inóspita do sertão até o dia 17 de setembro, quando foram denunciados por moradores do povoado de Pintada, a 300km de distância.

Achados descansando à sombra de uma baraúna, Lamarca e Zequinha foram metralhados ali mesmo. O corpo do ex-capitão foi enterrado numa cova sem nome no cemitério de Campo Santo, em Salvador. A Censura Federal ordenou que nenhuma linha sobre ele fosse publicada a partir daquela data.

O corpo de Carlos Lamarca, que foi morto no interior da Bahia — Foto: Reprodução
O corpo de Carlos Lamarca, que foi morto no interior da Bahia — Foto: Reprodução

*Este texto se baseou no relatório oficial da Operação Registro, no livro "O capitão Lamarca e a VPR", de Wilma Antunes Maciel; no livro "As ilusões armadas: Ditadura escancarada", de Elio Gaspari; em informações do Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV); na tese de Mestrado "Carlos Lamarca: O militar guerrilheiro", de Jefferson Gomes, da Ufes e no podcast "Retrato Narrado", de Carol Pires, da Radio Novelo.

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