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O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.

O eletricista Gary Smith entrou na casa de Kurt Cobain, em Seattle, nos Estados Unidos, para instalar um sistema de segurança, mas antes de começar o serviço, ele viu um corpo estirado no chão de uma sala, em cima da garagem. Smith pensou que o vocalista do Nirvana estivesse apenas dormindo, mas logo notou uma espingarda apoiada no peito do músico e percebeu que tinha sangue saindo da orelha de Cobain. O eletricista também achou, dentro de um vaso de flor, um bilhete de despedida escrito pelo astro americano que terminava dizendo: "É melhor queimar de vez do que desaparecer aos poucos".

Um dos artistas mais influentes da década de 1990, ídolo de uma geração e líder do estilo grunge de Seattle, Cobain tirou a própria vida no dia 5 de abril de 1994, há 30 anos. O cantor de megahits como "Smell like teen spirit" e "Come as you are" sofria de depressão, tinha transtorno bipolar e abusava da heroína, em parte para lidar com as dores crônicas no estômago nunca diagnosticadas. Em 1991, ele havia se casado com a roqueira Courtney Love, com quem teve uma filha, Frances Bean Cobain. Mas os dois tinham uma relação difícil, temperada por uso de drogas e brigas frequentes.

Na passagem do Nirvana pelo Brasil, em 1993, o casal teve uma briga feia nos bastidores. Courtney atirou as roupas do marido pela janela do hotel no Rio, e Kurt, para fugir da mulher, pulou da varanda de um quarto para outro, no vigésimo andar. Depois, ameaçou se jogar lá do alto. Foi nesta viagem, aliás, em um momento de calmaria, que a fotógrafa Márcia Foletto registrou a imagem icônica de Cobain com pijamas e meiões sentado no sofá da antessala, com um game boy repousando na mesinha ao lado. Na ocasião, o artista estava recebendo uma equipe do GLOBO para uma entrevista.

Em março de 1994, Cobain foi internado em Roma, na Itália, depois de ingerir dezenas de pílulas para dormir. O episódio motivou Courtney a promover uma intervenção, reunindo amigos na residência do casal para convencer o líder do Nirvana a procurar uma clínica de reabilitação. O músico ficou furioso, mas aceitou se tratar. No dia 30 daquele mês, Cobain se internou no Centro de Recuperação Exodus, perto de Los Angeles. Mas fugiu dois dias depois e voltou para Seattle. O artista de matou em 5 de abril de 1994 com um tiro de espingarda. Seu corpo foi encontrado por Gary Smith três dias mais tarde.

Exames posteriores mostraram que Kurt tinha alta concentração de morfina em seu sangue, indicando que o astro do rock estava sob efeito de heroína quando encostou o cano da espingarda Remington debaixo de seu queixo e acionou o gatilho. Teorias da conspiração surgiram depois dando conta de que o artista teria sido assassinado, mas nada disso foi comprovado. Cobain morreu aos 27 anos, assim como Jimi Hendrix, Jim Morrison, Amy Winehouse e outros ídolos da cultura pop que, apesar da genialidade, não conseguiram lidar com o peso de suas próprias existências.

Kurt Cobain e Courtney Love no Rio em 1993 — Foto: Marcia Foletto/Agência O GLOBO
Kurt Cobain e Courtney Love no Rio em 1993 — Foto: Marcia Foletto/Agência O GLOBO

Leia, na íntegra, a carta de despedida de Kurt Cobain, que começa endereçada a Boddah, o amigo imaginário que o cantor tinha em sua infância.

"Para Boddah,

Falando como um simplório experiente que obviamente preferiria ser uma criança emasculada e reclamona. Este bilhete deve ser bem fácil de entender.

Todas as advertências das aulas básicas de punk rock ao longo dos anos, desde minha introdução à, digamos, ética envolvida na independência e o acolhimento de sua comunidade, provaram-se bastante verdadeiras. Eu não tenho sentido a excitação de ouvir, bem como criar música, juntamente com a leitura e a escrita, faz muitos anos. Eu me sinto culpado além do que posso expressar em palavras por essas coisas.

Por exemplo, quando estamos atrás do palco e as luzes se apagam, e o ruído ensandecido da multidão começa, isso não me afeta do jeito que afetava Freddie Mercury, que parecia amar, se deliciar com o amor e adoração da multidão, que é algo que eu admiro e invejo muito. O fato é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês. Simplesmente não é justo nem com vocês nem comigo. O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo como se estivesse me divertindo 100%. Às vezes sinto como se eu tivesse que bater o cartão de ponto antes de subir ao palco. Tentei tudo ao meu alcance para apreciar isso (e eu tento, por Deus, acreditem em mim, eu tento, mas não é o suficiente). Eu aprecio o fato de que eu e nós atingimos e divertimos um monte de gente. Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor às coisas quando elas se vão. Sou muito sensível. Preciso estar um pouco dormente para resgatar o entusiasmo que eu tinha quando criança.

Nas nossas últimas três turnês, eu tive um apreço muito maior por todas as pessoas que conheci pessoalmente e pelos fãs de nossa música, mas ainda não consigo superar a frustração, a culpa e a empatia que tenho por todos. Existem coisas boas em todos nós e acho que eu simplesmente amo demais as pessoas e isso me deixa muito triste. O pequeno, sensível, insatisfeito, pisciano, Jesus triste. Por que você não simplesmente aproveita? Eu não sei.

Tenho uma deusa como esposa que transpira ambição e empatia e uma filha que me lembra demais como eu costumava ser, cheia de amor e alegria, beijando cada pessoa que ela encontra porque todos são bons e ninguém fará mal a ela. E isso me apavora ao ponto de eu mal conseguir funcionar. Não suporto a ideia de Frances se tornar um triste, autodestrutivo, roqueiro da morte, como eu me tornei.

Eu tenho muito, muito mesmo, e eu sou grato por isso, mas desde os sete anos, passei a sentir ódio de todos os humanos em geral. Apenas porque parece tão fácil para as pessoas que tem empatia se darem bem. Apenas porque eu amo e lamento demais pelas pessoas, eu acho.

Obrigado a todos do fundo do meu ardente e nauseado estômago por suas cartas e preocupação nestes últimos anos. Eu sou um bebê errático e triste! Eu não tenho mais a paixão, e por isso lembre-se, é melhor se queimar de vez do que desaparecer aos poucos.

Paz, amor, empatia.

Kurt Cobain"

Kurt Cobain na sacada do seu quarto em um hotel no Rio, em 1993 — Foto: Márcia Foletto/Agência O GLOBO
Kurt Cobain na sacada do seu quarto em um hotel no Rio, em 1993 — Foto: Márcia Foletto/Agência O GLOBO
Kurt Cobain durante show no Hollywood Rock, no Rio, em 1993 — Foto: Márcia Foletto/Agência O GLOBO
Kurt Cobain durante show no Hollywood Rock, no Rio, em 1993 — Foto: Márcia Foletto/Agência O GLOBO
Courtney Love e Kurt Cobain chegando em São Paulo, em 1993 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Courtney Love e Kurt Cobain chegando em São Paulo, em 1993 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Kurt Cobain em 1993 — Foto: Márcia Foletto/Agência O GLOBO
Kurt Cobain em 1993 — Foto: Márcia Foletto/Agência O GLOBO
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