Capital
PUBLICIDADE
Capital

Informações exclusivas, análises e bastidores do mundo dos negócios.

Informações da coluna

Mariana Barbosa

No GLOBO desde 2020, foi repórter no Brazil Journal, Folha, Estadão e Isto é Dinheiro e correspondente em Londres.

Rennan Setti

No GLOBO desde 2009, foi repórter de tecnologia e atua desde 2014 na cobertura de mercado de capitais. É formado em jornalismo pela Uerj.

Por e

RESUMO

Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você

GERADO EM: 01/07/2024 - 04:40

Crise na Hurb: CEO tóxico e práticas questionáveis

Na Hurb, CEO impõe cultura tóxica e práticas questionáveis, resultando em crise na agência de turismo. Rotina de assédio moral, excentricidades e uso de 'drogas da inteligência'. Insatisfação dos funcionários leva a medidas extremas para contornar a interferência do CEO.

Há pouco mais de um ano, a Hurb protagoniza um escândalo que frustrou os sonhos de viagem de milhares de consumidores. A crise, no entanto, é apenas a face pública de uma cadeia de problemas na cultura interna da startup, marcada por uma rotina de assédio moral e práticas corporativas no mínimo inusuais, personificadas na figura do dono, João Ricardo Mendes. A coluna entrevistou mais de uma dezena de ex-executivos que trabalharam diretamente com ele na Hurb, e o perfil que emerge dessas conversas — cujas fontes preferem se manter anônimas por medo de represálias — é de um CEO megalomaníaco, cuja postura é indissociável do escândalo.

Segundo os relatos, foi Mendes que armou e alimentou a bomba financeira cuja explosão resultou na crise. No início da pandemia, quando o faturamento do setor caiu a zero, a Hurb foi na direção oposta e fez caixa com a venda de centenas de milhares de pacotes com datas flexíveis a preços incrivelmente baratos. O faturamento triplicou em 2020, a R$ 3 bilhões, sem que a companhia precisasse embarcar qualquer passageiro por causa da quarentena.

O plano teve respaldo do time interno da Hurb, que queria usar o enorme volume para barganhar junto às companhias aéreas e hotéis e vender serviços associados aos clientes. O problema é que Mendes decidiu que a política seria permanente — mesmo alertado para o fato de que, no longo prazo, os pacotes não se pagavam.

— Ele só pensou em vender, nunca em como honrar os pacotes. Quando os problemas começaram, simplesmente não dava ouvidos. Todas as estratégias sugeridas para honrar pacotes, como alterações e oferta de opções aos clientes, ele rejeitava. Questionava os números de “breakeage” (consumidores que desistem de viajar), dizia que as pessoas iam morrer ou esquecer os pacotes — diz uma fonte.

‘Alerta João’

Já em 2021, a situação soou o alarme no conselho da Hurb, hoje dissolvido, com acionistas como Andre Laport pressionando para que os preços fossem ajustados gradativamente em uma tentativa de recuperar as margens e reequilibrar o balanço.

— Começamos a implementar o plano, mas o João começou a baixar os preços por conta própria no sistema. Certa vez, fizemos uma negociação com hotéis em Orlando, mas ele simplesmente mudou o número de diárias acordadas — lembra outra ex-executiva.

Os times chegaram a criar no sistema um “Alerta João”, com procedimentos para reverter suas intromissões em preços. Também era comum que as equipes trocassem senhas de acesso a programas para retardar seus acessos.

Certa vez, Mendes atropelou o planejamento do time de marketing e, no meio da madrugada e com alguns poucos cliques, expandiu uma campanha de anúncios patrocinados no Google, gastando, em segundos, R$ 300 mil, valor que seria usado ao longo de mais de um mês.

— Vocês são burros. Eu estava ajudando vocês — respondeu ele, quando confrontado.

Xingamentos e humilhações como esses eram frequentes, segundo as fontes.

Mendes também tem o hábito de enviar mensagens e até ligar para subordinados de madrugada. Descontente com o esvaziamento do escritório às sextas-feiras — o Hurb tem regime híbrido —, o CEO já ameaçou demitir todos que estivessem em casa. Também às sextas, costuma promover reuniões que se arrastam até as 23h, nas quais frequentemente humilha gestores na frente de seus subordinados com frases como “o trabalho está uma merda”.

‘Zona cinza’

Nem sempre é assim, claro. Em tempos de bonança, Mendes é um chefe generoso, convidando subordinados para churrascos em fazendas de banqueiros na serra ou passeios de lancha em Angra dos Reis. Mas os amigos se transformam em “burros e idiotas” caso questionem suas práticas. Histórias de humilhação e perseguição a ex-queridinhos abundam e estão registradas nas câmeras prediais, áudios e até em denúncias à polícia.

De acordo com as fontes, Mendes costuma repetir frases como “a ética é uma zona cinza”. Um e-mail interno visto pela coluna ilustra essa postura na prática. Na mensagem, de 3 de janeiro de 2020, ele admite que mandou que uma estátua de Ayrton Senna fosse instalada na praia de Copacabana na madrugada, sem qualquer autorização da prefeitura. No e-mail, escreve que “a estátua do Senna não foi chumbada porque não me informaram como seria, pois minha solicitação era que fosse chumbada para que nem (Marcelo) Crivella, (Sérgio) Cabral ou qualquer vagabundo conseguisse tirar.”

Em outro exemplo, no começo do ano, quando a Universal anunciou um novo parque de diversões em Orlando (EUA), o Epic Universe, João Ricardo quis aproveitar o hype nas redes sociais e, por conta própria, colocou à venda um pacote já com ingressos para o parque. Só que o empreendimento só será inaugurado em 2025 e seus ingressos não estão sendo vendidos nem mesmo pela Universal. Poucos dias depois, a assessoria da Universal mandou e-mail para a Hurb pedindo que o anúncio fosse retirado do ar. Ele está no ar até hoje.

Quero ser Elon Musk

Posturas questionáveis como essas seriam agravadas por outras excentricidades. Usuário das chamadas “drogas da inteligência” — medicamentos estimulantes como Venvanse e Ritalina, em alta entre executivos —, Mendes se gaba de varar noites sem dormir dentro do escritório resolvendo “desafios urgentes”. Passa dias se alimentando de “shakes”, sem banho e com a barba por fazer, espalhando roupas pelos corredores.

Oito fontes confirmaram esse uso excessivo de remédios. A exemplo do que ocorre com a cobertura sobre o uso de substâncias por Elon Musk, a coluna aborda o assunto por considerá-lo relevante para os desequilíbrios na cultura da Hurb que resultaram na crise.

— Ele se acha o próprio Elon Musk, um gênio da tecnologia que vai mudar o Brasil investindo em startups e projetos sociais — conta um ex-colaborador que foi de grande amigo a desafeto.

Não à toa, um dos “gadgets” preferidos de Mendes é o lança-chamas da The Boring Company, negócio menos conhecido de Musk. Volta e meia, o CEO aparece “brincando” de incendiar em vídeos postados nas redes sociais — e, certa vez, o fez contra uma faixa erguida por clientes lesados pela Hurb.

As excentricidades teriam se agravado após uma sequência de tragédias pessoais. Uma delas foi a morte da mãe de Mendes, ocorrida em 2021 e citada por ele na carta que escreveu para justificar o fato de ter xingado um cliente da Hurb. Outro episódio é a morte da cadela de estimação Arya, esquecida por Mendes dentro do carro em dia de sol forte. Contribuiu para o desequilíbrio do CEO seu rompimento com o irmão, José Eduardo Mendes, co-fundador da Hurb, mas que se afastou da startup.

Retorno

A Hurb foi fundada pelos dois em 2010 como Hotel Urbano. Antes, os irmãos tinham sido sócios da Apetrexo, site de venda de eletrônicos que faliu deixando fornecedores e clientes na mão. Promessa de “unicórnio” (startup que vale mais de US$ 1 bilhão), a Hurb chegou a captar US$ 50 milhões com grandes fundos americanos como Tiger Global. Pouco depois, os irmãos se desentenderam com os sócios investidores e foram afastados. Após se debruçarem sobre os números da operação, porém, os fundos deram o investimento por perdido, revendendo a empresa aos irmãos a preço simbólico.

— João dizia que ia voltar à empresa para se provar — conta um ex-colaborador.

Originalmente um marketplace para reserva de hotéis concorrente do Booking, a Hurb agregou passagens aéreas e inventou um modelo de negócios único no mercado de turismo: pacotes flexíveis, sem lastro com a emissão de bilhetes, como é praxe no setor, para embarques dentro de um ou dois anos. (Proibida de vender esse tipo de pacote pela Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor após o estouro da crise, a Hurb criou a modalidade com mês fixo.)

O que diz a Hurb

Questionada em detalhes pela coluna sobre as histórias desta matéria, a Hurb não negou nem confirmou nenhuma delas, dizendo que “não compartilha informações internas por questões legais.” A empresa também disse que “já foi reconhecida sete vezes no ranking Great Place to Work” e elencou medidas que teria tomado para “valorizar” as equipes, como um salário bruto extra por ano para fins educacionais e de saúde; férias ilimitadas “para prevenção de casos de cansaço extremo”; e licenças maternidade e paternidade estendidas.

A empresa também sustenta que, entre 2022 e 2023, “fez parte da viagem de mais de 1,6 milhão de pessoas, levando em consideração todos os produtos que fazem parte do seu portfólio.”

Mais recente Próxima ‘Unicórnio’ Merama compra 100% da Growth Supplements, marca de ‘whey’

Inscreva-se na Newsletter: Capital