Daniel Becker
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Conversas sobre infância, no plural: pelo bem-estar de crianças, famílias e sociedade

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Daniel Becker

Pediatra, sanitarista, palestrante e escritor. Ativista pela infância, saúde coletiva e meio ambiente.

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O maior artista brasileiro vivo completou 80 anos nesta semana. Chico é uma das fundações da nossa cultura, da nossa nação. É tão grande que nenhuma definição, nenhum elogio será suficiente.

Compartilhar o mesmo tempo e o mesmo idioma com ele é um privilégio. A potência e a beleza que suas palavras podem produzir é espantosa. Sua obra é marcada pela enorme sensibilidade, delicada, sutileza e um profundo conhecimento da alma brasileira, da alma humana. Seu engajamento político é constante, aguerrido, mas elegante e discreto: vai do grito de “Apesar de Você” ao humor de “O Meu Guri”.

Conhecer e usufruir de sua arte é fonte de maravilhamento e transcendência. A sua poesia nos permite conhecermos melhor nosso mundo, nosso país e a nós mesmos. Chico deveria ser matéria obrigatória em todas as escolas: ele nos faz mais vivos, inteligentes, lúcidos.

Ele é um dos autores da trilha sonora da minha vida. Iluminou meu caminho, me ajudou a chegar até onde estou. Sou infinitamente grato pelo que me proporcionou em insights e aprendizado, em emoções, em momentos compartilhados com amigos, amores, filhos.

A infância é uma presença constante em suas canções. Em algumas delas, a nostalgia é o tom, como em “Até Pensei”, “Maninha”, “João e Maria”. O lirismo é construído a partir dos elementos do mundo infantil: “Não, não fuja não / Finja que agora eu era o seu brinquedo / Eu era o seu pião / O seu bicho preferido / Vem, me dê a mão / A gente agora já não tinha medo / No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido”. Para Luciano Dias Cavalcanti, um estudioso da sua obra, o universo infantil em Chico é retratado como fantasia e sonho, mas também pode representar uma crítica social, um refúgio da opressão do tempo presente: “Agora era fatal / Que o faz-de-conta terminasse assim / Pra lá deste quintal / Era uma noite que não tem mais fim”.

Voltar à infância é uma forma de resistência, e nela se encontra a esperança, que dá o tom em “Maninha”: “Eu era criança e ainda sou / Querendo acreditar / Que o dia vai raiar / Só porque uma cantiga anunciou”...“Que um dia ele vai embora, maninha / Pra nunca mais voltar”.

Por outro lado, a infância pobre e oprimida também marca presença: “Meu Guri”, “Pivete” e “Brejo da Cruz” são bons exemplos. A narrativa de uma mãe da favela é ao mesmo tempo contundente e sutil: “Chega no morro com o carregamento / Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador”... “Chega estampado, manchete, retrato / Com venda nos olhos, legenda e as iniciais... “Desde o começo, não disse, seu moço / Ele disse que chegava lá / Olha aí, ai o meu guri...”

Chico deixa algumas lições valiosas para os que cuidam da infância, em consonância com as mensagens que venho trazendo há anos para os pais. Em “Massarandupió”, descreve a infância do neto que cresce feliz, em contato com a natureza: “Lembrar a meninice é como ir / Cavucando de sol a sol /Atrás do anel de pedra cor de areia / Em Massarandupió”.

A brincadeira, essência da infância, aparece também em “Meus Doze Anos”: “Jogando muito botão, rodopiando pião / Fazendo troca-troca / Ai, que saudades que eu tenho duma travessura / O futebol de rua”… “Comendo fruta no pé”... “E disputando troféu / guerra de pipa no céu...”

Essa descrição é exatamente o que falta às crianças e adolescentes do nosso tempo, confinadas, presas em suas telas e adoecendo por isso. Precisamos voltar a brincar, como Chico faz com as palavras.

Finalmente, lembro de uma frase da canção “Meu Namorado”, do maravilhoso álbum “O Grande Circo Místico”, em parceria com Edu Lobo: “sei que ele vai me guiando, guiando de mansinho para o caminho que eu quiser”.

Talvez esse seja o melhor recado para os pais de hoje: guiem seu filho de mansinho, com um pouco de distância para estimular a autonomia, mas com carinho e presença para ajudá-lo a ser quem ele é e chegar aonde quiser.

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