Fumus Boni Iuris
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Fumus Boni Iuris

Relatos e análises sobre as decisões mais importantes da Justiça brasileira.

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Fumus Boni Iuris

Relatos, análises e opiniões sobre as decisões mais importantes da Justiça brasileira por um time de especialistas do Direito.

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No último dia 22 de maio, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7055 e 6792, ajuizadas respectivamente pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e Associação Brasileira de Imprensa (ABI). O tema central do julgamento foi o ataque concertado a jornalistas por meio de ações judiciais em série. Após analisar a questão, o STF concluiu que constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa.” [1]

O termo lawfare tem sido utilizado nos países de língua inglesa para designar a utilização maliciosa ou abusiva do direito como ferramenta de ataque a indivíduos ou instituições. [2] A expressão nasceu da sobreposição entre os vocábulos law (direito) e warfare (atividades de guerra). [3] Não obstante o seu caráter evidentemente ilícito, o lawfare tem sido cada vez mais utilizado no Brasil, especialmente por meio da conjugação de diferentes processos judiciais em diferentes comarcas — o que deu origem, entre nós, às expressões “assédio judicial” e “assédio processual”.

Jornalistas têm sido o alvo preferencial, embora não o único, desta espécie de ataque. Reportagens que desagradam instituições de abrangência nacional têm resultado, por vezes, na propositura de ações judiciais em série, em diferentes Estados da Federação, com base no artigo 4º, III, da Lei 9.099/1995, que permite a propositura de ação judicial no “domicílio do autor”. [4] Há jornalistas que relatam ter sido alvo de mais de 100 processos judiciais de igual teor em comarcas que vão de Roraima ao Rio Grande do Sul. [5] Mesmo que tais ações judiciais acabem, ao final, sendo julgadas improcedentes, desacreditando a iniciativa, o transtorno causado aos jornalistas e aos órgãos de imprensa é imenso.

Pior: o assédio judicial a jornalistas cria um ambiente hostil que desestimula a produção de reportagens investigativas e a veiculação de opiniões críticas pela imprensa. É justamente aí que reside o seu efeito mais nocivo: intimidar potencialmente os meios de comunicação, cujo trabalho é essencial para a investigação de condutas ilícitas, para o combate à corrupção e ao tráfego de influência, para a divulgação da verdade e, em última análise, para a própria preservação da democracia. A proteção constitucional à liberdade de imprensa (art. 220) e outros valores protegidos pela Constituição da República exigem uma reação severa e exemplar contra o avanço do lawfare no Brasil.

O STF enfrentou o tema em duas frentes. Em primeiro lugar, nossa Suprema Corte conferiu interpretação conforme à Constituição ao artigo 53 do Código de Processo Civil, que estabelece as regras de competência do Poder Judiciário, de modo a garantir que, “caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio.” [6] A centralização das ações judiciais pulverizadas em diferentes comarcas para julgamento conjunto no domicílio do jornalista ou do órgão de imprensa constitui medida fundamental para reduzir os ônus da defesa e esvaziar a prática nociva do assédio judicial. Prevaleceu, neste particular, o voto do ministro Luís Roberto Barroso, para quem “a proteção da liberdade de expressão legitima a fixação de competência no foro do domicílio do réu, uma vez caracterizado o assédio judicial. Essa é a regra geral do Direito brasileiro e diversas leis preveem expressamente a reunião de ações com os mesmos fundamentos em um único foro.” [7]

Em outra frente, o STF reservou interpretação conforme à Constituição aos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil, para estabelecer que “a responsabilidade civil de jornalistas ou órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos).” [8] Como se sabe, a apuração dos fatos é dever do jornalista, consagrado no artigo 7º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, segundo o qual “o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade dos fatos, e seu trabalho se pauta pela precisa apuração dos acontecimentos e sua correta divulgação.” [9] O que fez nossa Suprema Corte foi, em apertada síntese, elevar o standard para a responsabilização civil de jornalistas e órgãos de imprensa, exigindo a configuração de culpa “grave” (negligência “evidente”) ou dolo no cumprimento de seus deveres profissionais. [10]

Naturalmente, isso não significa uma imunidade contra ações judiciais, mesmo porque jornalistas e órgãos de imprensa que não sejam sérios podem se associar — e frequentemente se associam — ilicitamente ao mesmo propósito de ataque sistemático a indivíduos ou instituições. A decisão do STF exprime, contudo, uma nítida tomada de posição contra a manipulação massiva e coordenada do aparato judicial para intimidar e retaliar jornalistas e veículos de imprensa que atuam de modo sério e transparente, apurando e noticiando fatos de interesse público. O assédio judicial é uma estratégia covarde, que deve ser reprimida exemplarmente, não apenas com medidas que visem tolher seus efeitos — como a possibilidade de reunião de processos judiciais reconhecida pelo STF —, mas também com sanções que desestimulem sua difusão, como condenações em litigância de má-fé e concessão de indenizações elevadas aos jornalistas deslealmente atacados.

É preciso compreender, como já alertam os juristas americanos, que o lawfare é uma erva daninha, capaz de minar a legitimidade do Poder Judiciário e de outras instituições jurídicas, que perdem sua credibilidade ao se mostrar suscetíveis a manipulações e abusos de grupos influentes, especialmente contra jornalistas que os investigam. [11] A boa notícia é que o STF parece estar bastante atento ao tema.

*Anderson Schreiber é professor titular de Direito Civil da UERJ e professor da Fundação Getúlio Vargas

NOTAS
[1] Trata-se do item 1 da tese fixada naquele julgamento. Para mais informações, ver a reportagem STF reconhece que uso abusivo de ações judiciais compromete liberdade da imprensa, in www.portal.stf.jus.br, 22.5.2024. A íntegra do julgamento está disponível no canal do STF no YouTube: www.youtube.com/watch?v=MUPKwA4M06U.
[2] Charles J. Dunlap Jr., Lawfare, in John Norton Moore et al. (eds.), National Security Law, 2015, pp. 823-838.
[3] A expressão foi utilizada, pela primeira vez, em John Carlson and Neville Yeomans, Whither Goeth the Law - Humanity or Barbarity, in M. Smith and D. Crossley (eds.), The Way Out - Radical Alternatives in Australia, Melbourne: Lansdowne Press, 1975.
[4] “Art. 4º É competente, para as causas previstas nesta Lei, o Juizado do foro: (...) III - do domicílio do autor ou do local do ato ou fato, nas ações para reparação de dano de qualquer natureza.”
[5] Ver a matéria “‘Foi tão impactante que acabou precipitando minha aposentadoria’, diz Elvira Lobato, vítima de assédio judicial” (TV Cultura, 17.12.2020).
[6] Trata-se do item 2 da tese fixada no julgamento das ADIs 7055 e 6792.
[7] Restou vencida a Ministra Rosa Weber, que, votando antes de sua aposentadoria, entendia inviável a modificação das regras de competência.
[8] Trata-se do item 3 da tese fixada no julgamento das ADIs 7055 e 6792.
[9] Artigo 7º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, disponível em www.abi.org.br.
[10] Restaram vencidos os ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Flavio Dino, quase todos mencionando o receio de afastar a responsabilidade de jornalistas que produzissem fake news.
[11] Aaron Meyer e Brooke Goldstein, Lawfare: The War Against Free Speech, Center for Security Policy, 2011.

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