Fumus Boni Iuris
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Relatos e análises sobre as decisões mais importantes da Justiça brasileira.

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Relatos, análises e opiniões sobre as decisões mais importantes da Justiça brasileira por um time de especialistas do Direito.

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GERADO EM: 28/06/2024 - 07:00

Financiamento de redes digitais: modelo europeu e inspiração para Anatel

A preocupação com o financiamento das redes digitais é tema global, com destaque para a União Europeia. Modelo de cooperação e investimento é discutido visando infraestruturas digitais seguras e competitivas. Anatel pode se inspirar nesses debates para definir um modelo brasileiro.

A preocupação da remodelagem do modelo de financiamento das redes tem sido um importante tema no Brasil e no mundo decorrentes de dados concretos sobre o uso dessas redes por grandes usuários [1]. No caso da União Europeia, as infraestruturas digitais seguras e sustentáveis foram incluídas como uma das quatro vertentes do Programa Década Digital para 2030 — documento que estabelece mecanismos e ciclos de cooperação entre Estados-Membros e a Comissão Europeia para se alcançar os objetivos e metas de digitalização. O primeiro relatório sobre o status do programa [2], publicado em setembro de 2023, trouxe dados que revelaram como o bloco ainda enfrenta desafios significativos para cumprir suas metas de conectividade, o que motivou a recente publicação do White Paper intitulado “Como suprir as necessidades da Europa em matéria de infraestruturas digitais?” [3]. O documento serve como base para uma consulta pública, aberta até o dia 20 de junho, cujo objetivo é reunir informações para futuras propostas da comissão voltadas à modernização de sua política de telecomunicações.

De forma geral, o White Paper propõe uma atuação baseada em três pilares principais. O primeiro seria a criação da chamada Rede 3C (Computação Colaborativa Conectada), um amplo ecossistema voltado à promoção da inovação para garantir capacidade tecnológica suficiente em partes centrais da cadeia de abastecimento digital: semicondutores, computação em nuvem, cabos submarinos, tecnológicas de rádio etc. O objetivo é criar um ambiente propício ao desenvolvimento industrial, utilizando os recursos de forma coordenada com projetos-piloto para que a Europa assuma um papel de liderança para além daquele já ocupado na definição de normas a nível mundial.

O segundo pilar tem como foco a garantia de segurança e resiliência das infraestruturas digitais. De um lado, defende-se a necessidade de que a UE se antecipe e já comece a desenvolver estratégias de transição para uma infraestrutura protegida contra ataques de computadores quânticos. Para que tal transição ocorra de forma eficaz, deve haver esforços sincronizados e abordagens coordenadas dentre os Estados-Membros, inclusive no que diz respeito à adoção de normas sobre a matéria, a fim de que os sistemas e serviços funcionem de forma harmonizada e interoperável. De outro lado, este segundo pilar se volta às infraestruturas de cabos submarinos, que dizem respeito especialmente à soberania da UE. Neste ponto, é defendida a adoção de medidas estruturais, principalmente no apoio a novas tecnologias de fibra ótica e cabo, com reforço das atividades de pesquisa e inovação. O documento indica a possibilidade de que a comissão, por exemplo, proponha um sistema de governança conjunto sobre a matéria ou que busque a harmonização de requisitos de segurança em instâncias internacionais.

Especialmente relevante para o contexto brasileiro são as contribuições trazidas no terceiro pilar, que explora a necessidade de mudanças no atual quadro regulatório, com o propósito não só de conduzir a maiores investimentos em redes de alta capacidade, mas também de estimular a concorrência, garantir a sustentabilidade, a competitividade industrial e a segurança econômica. O documento faz referência ao Código Europeu das Comunicações Eletrônicas, estabelecido pela Diretiva 2018/1972, mas que não teria sido muito bem-sucedido em diversos aspectos da regulação das comunicações eletrônicas no âmbito da UE. Considerou-se que o referido código deveria ser repensado, de modo a abordar também os desafios e oportunidades para a convergência de redes e serviços de comunicações eletrônicas, infraestruturas, serviços em nuvem e outros serviços digitais.

Um problema identificado foi o fato de que os dados hoje trafegam em diferentes redes ou segmentos de rede, os quais, contudo, estão sujeitos a diferentes regras. Assim, um novo modelo regulatório deveria superar tal fragmentação, buscando garantir condições equitativas a todos os participantes do mercado de redes digitais, rumo a um mercado único. Ou seja, o ponto central aqui é justamente repensar o âmbito de aplicação do quadro regulamentar atual. Nesse sentido, levanta-se a possibilidade de futuras intervenções nas relações entre fornecedores de serviços de internet e provedores de aplicações (CAPs), que têm sido profundamente transformadas nos últimos anos em direção a uma maior interação e cooperação. Ambos os atores precisam, constantemente, entrar em acordos em relação a condições técnicas e comerciais de troca de tráfego, o que pode, eventualmente, gerar dificuldades.

A discussão levou, em 2023, à abertura de uma consulta pública no âmbito da União Europeia sobre o futuro das telecomunicações. Agora, mais uma vez, a matéria é tratada no referido White Paper sobre infraestruturas digitais. Vale destacar, neste ponto, que o documento reconhece que a situação poderá ser alvo de intervenções no futuro — situação em que as negociações entre CAPs e operadoras de telecomunicações poderão ser submetidas a mecanismos de resolução de conflitos caso não cheguem a acordos dentro de um prazo razoável. Este modelo, baseado na chamada “regulamentação descentralizada” [4], não é novidade, tendo sido adotado no News Media and Digital Platforms Mandatory Bargaining Code australiano, aprovado em 2021, e que obriga as grandes plataformas de tecnologia que operam no país a negociarem, individual ou coletivamente, com organizações de mídia valores a serem pagos pelo conteúdo de notícias disponibilizado ou vinculado em suas plataformas. No caso em questão, a saída encontrada para balancear o desequilíbrio do poder de barganha entre as empresas foi justamente a definição de mecanismos vinculativos de arbitragem, caso acordos não sejam alcançados por vias negociais.

No Brasil, o tema também já foi objeto de duas Tomadas de Subsídios da Anatel: a nº 13/2023 e a nº 26/2023, que visam discutir os deveres dos grandes usuários de redes de telecomunicações. As consultas levantam pontos como: os riscos de impactos negativos causados nas redes devido ao uso inadequado; o desequilíbrio regulatório entre os atores do ecossistema digital; e a distribuição dos investimentos na infraestrutura de rede. Pode-se observar uma convergência dos problemas levantados pela agência reguladora e aqueles trazidos pela Europa, seja na consulta pública do ano passado, seja no recente White Paper, revelando um movimento global em busca de garantias para infraestruturas seguras e de qualidade a longo prazo.

Nesse sentido, a experiência internacional pode servir de inspiração para a Anatel na estruturação de um modelo de financiamento de redes que evite a judicialização de conflitos entre CAPs e operadoras de telecomunicações — na esteira do que já ocorreu, por exemplo, mais recentemente na Alemanha [5]. A ideia de duas fases — uma negocial e uma arbitral — apresenta os benefícios de, por um lado, encorajar a cooperação mútua e garantir a centralidade das partes na negociação dos termos dos acordos e, por outro, minimizar a assimetria de poder de barganha, aspecto especialmente relevante no contexto brasileiro, onde o competitivo mercado é composto por muitas empresas de pequeno e médio porte [6]. Nesse contexto, a Anatel teria um papel central.

*Ricardo Campos é docente na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha); doutor e mestre pela Goethe Universität; coordenador da área de direito digital da OAB Federal/ESA Nacional; diretor do Instituto Legal Grounds (São Paulo).

NOTAS
[1] Sobre o tráfego de dados global, ver SANDVINE, 2022 Global Phenomena Report, disponível em https://www.sandvine.com/global-internet-phenomena-report-2022. Para os dados referentes ao cenário brasileiro, ver ALVAREZ & MARSAL, Modelo de remuneração de prestadoras de serviços de telecomunicações por grandes usuários: uso responsável e sustentável do sistema, 29 de maio de 2024, disponível em: https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?8-74Kn1tDR89f1Q7RjX8EYU46IzCFD26Q9Xx5QNDbqZF0OoOfavbapky_JUOXaUDY2l__qRAvSLArKmQP3CKJAm83o9UXNl2CHIKVAepMSzyZyFFNfXZ9xg-qCaHEFGM
[2] 2023 Report on the state of the Digital Decade. Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/library/2023-report-state-digital-decade. Acesso em: 20 jun. 2024.
[3] Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/library/white-paper-how-master-europes-digital-infrastructure-needs. Acesso em: 20 jun. 2024.
[4] CRAWFORD, Gregory; CAFFARRA, Cristina. The ACCC’s ‘bargaining code’: A path towards ‘descentralised regulation’ of dominant digital platforms? Center for Economic Policy Research (CEPR), 2022.
[5] Sobre a recente decisão do Tribunal Regional de Colônia em desfavor da Meta, ver CAMPOS, Ricardo. Corte alemã pavimenta caminho para o "fair share". Telesíntese, [S.l.], 19 jun. 2024. Disponível em: https://telesintese.com.br/campos-corte-alema-pavimenta-caminho-para-o-fair-share/. Acesso em: 20 jun. 2024.
[6] MARANHÃO, Juliano; MATTOS, César. Neutralidade de rede vs. Neutralidade Regulatória, 2024. Disponível em: https://legalgroundsinstitute.com/blog/neutralidade-de-rede-vs-neutralidade-regulatoria/. Acesso em: 20 jun. 2024.

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