Fumus Boni Iuris
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Relatos e análises sobre as decisões mais importantes da Justiça brasileira.

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Relatos, análises e opiniões sobre as decisões mais importantes da Justiça brasileira por um time de especialistas do Direito.

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GERADO EM: 12/07/2024 - 15:26

Impacto da Reforma Tributária no Saneamento

A Reforma Tributária propõe aumento da carga fiscal no setor de saneamento, impactando negativamente os serviços essenciais e a população de baixa renda. A inclusão do saneamento como serviço de saúde pode ser a solução para reduzir essa carga tributária e garantir investimentos no setor, em conformidade com a Constituição e visando à promoção da saúde da população.

Não há dúvidas de que o Brasil precisa de mudanças estruturais no sistema tributário, e o primeiro passo está se dando com a reforma da tributação sobre o consumo introduzida pela Emenda Constitucional nº 132/2023, ora em fase de deliberação no Parlamento quanto à sua regulamentação. Aprovado na última quinta-feira, o PL 68/2024 na Câmara dos Deputados, por 336 votos a favor e 142 contra, o projeto foi remetido para apreciação no Senado Federal.

Pautada nos princípios da simplicidade, transparência, não cumulatividade e neutralidade, esta reforma tributária busca descomplicar o emaranhado normativo que envolvia o ICMS, ISS e IPI, além das contribuições ao PIS/PASEP e COFINS, e unificar a arrecadação não cumulativa em dois novos tributos — o IBS (municipal/estadual) e a CBS (federal) —, adotando-se o modelo de imposto sobre valor adicionado (IVA), há muito utilizado pela maior parte dos países desenvolvidos.

Além disso, são estabelecidas alíquotas reduzidas (60%) para bens, serviços e atividades consideradas relevantes, assim como alimentos que integrarão a cesta básica com alíquota zero. As alterações não serão implementadas de imediato, havendo um período de transição gradual e em etapas, iniciando-se em 2026 e concluindo-se em 2033.

Dentre as novidades introduzidas com a recente aprovação na Câmara dos Deputados, houve a inclusão de carnes na cesta básica, o aumento do percentual de devolução dos novos tributos pagos na modalidade de cashback para famílias de baixa renda — incidentes sobre itens como luz, água e esgoto, e gás natural — e a criação de uma “alíquota-padrão” máxima de 26,5% para os novos tributos IBS/CBS.

Inequivocamente, as mudanças propostas têm o potencial de trazer muitos benefícios econômicos e melhorias sociais. Entretanto, alguns pontos merecem nossa atenção. Dentre eles, destacamos a questão do saneamento básico, entendido como conjunto de serviços públicos, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais urbanas (art. 3º, I, Lei nº 14.026/2020 — Novo Marco Legal do Saneamento Básico). O tema inclusive foi objeto de debates no XII Fórum Jurídico de Lisboa, que reuniu juristas, autoridades e representantes da sociedade civil na capital portuguesa com o intuito de tratar de questões que desafiam o Estado contemporâneo.

Os serviços de saneamento básico, que originariamente na tramitação contavam com exonerações fiscais e regimes especiais — dentre eles, a redução da alíquota em 60% para o setor —, acabaram por perder a redução de carga fiscal na última etapa da aprovação da Emenda Constitucional nº 132/20023, sem que tenha sido previsto um mecanismo de compensação e neutralização desses efeitos.

Dessa forma, o setor enfrentará um aumento de carga fiscal que passará dos atuais 9,25% sobre a receita (contribuições ao PIS e COFINS) no regime não cumulativo e 3,65% no regime cumulativo, para a estimativa de 26,5% sobre o valor adicionado em cada etapa, gerando um aumento de cerca de 17% na carga tributária. Do modo como está prevista a redação da EC nº 132/2023, o Brasil teria a maior alíquota de IVA aplicada ao saneamento quando comparada aos países da União Europeia.

Considerando o compromisso de universalização do saneamento previsto pelo Novo Marco Legal do Saneamento e a carência de investimentos nessa atividade, essencial para a promoção do direito à saúde e proteção ao meio ambiente, parece recomendável que a regulamentação por lei complementar preveja tratamento diferenciado para as empresas prestadoras de serviços de coleta e tratamento de água e esgoto, visto que o modelo proposto de tributação irá encarecer os serviços e os investimentos no setor, prejudicando a parcela mais vulnerável da população.

O cashback proposto na regulamentação da Reforma Tributária, além de não resultar na devolução total dos tributos aos consumidores de baixa renda desses serviços — serão devolvidos 100% para a CBS e apenas 20% para o IBS —, não neutraliza o impacto do aumento drástico de carga fiscal para as empresas de água e esgoto. Por esta razão, diversos estudos econômicos têm simulado um repasse desse custo para as tarifas cobradas dos consumidores (fala-se em aumento de até 18% no preço ao consumidor final) e uma redução sensível no volume de investimentos na expansão da rede de água e esgoto no país.

Soma-se a isso o fato de que dados do Sistema Nacional de Informações do Saneamento (SNIS) apontam que a renda das pessoas com acesso ao saneamento básico é, em média, cinco vezes maior que a renda das famílias sem acesso. Assim, percebe-se que o cashback tem potencial para resolver uma parcela muito pequena dos problemas decorrentes da reforma para o saneamento básico. Afinal, mesmo com a implementação do cashback, as companhias de tratamento de água e esgoto suportariam um aumento muito expressivo em seus custos e, ainda, a população sem acesso aos serviços permaneceria invisível.

Para resolver a questão, propõe-se uma alternativa relativamente simples na regulamentação: para além de fixar em 100% a devolução do IBS/CBS à população de baixa renda (aumentando a proposta de devolução do IBS, que atualmente é de apenas 20%), é imperioso incluir os serviços de saneamento básico na lista de “serviços de saúde” (art. 9º, §1º, inciso II, da EC nº 132/2023), de modo a que passem a se beneficiar da redução de alíquota de 60%. O objetivo dessa qualificação, obtendo-se assim a esperada redução de alíquota, é fomentar os investimentos privados para contribuir com a universalização desses serviços essenciais. Caso o saneamento seja considerado “serviço de saúde”, com a consequente redução de alíquota, o Brasil terá a alíquota de IVA sobre serviços de saneamento abaixo da média da União Europeia.

Segundo estudo da ABCON SINDCON (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), a Organização Mundial da Saúde indica que a cada US$ 1 investido em saneamento, economiza-se US$ 5,50 em saúde. Ademais, as doenças relacionadas à falta de saneamento no Brasil teriam sido responsáveis por cerca de 330 mil internações e por quase 70 mil óbitos ao ano nos últimos três anos. Do total de internações que tiveram alta por óbito, 10,7% foram ocasionadas por essas doenças, chegando-se a um montante de despesas com tais internações que atingiriam cerca de R$ 740 milhões ao ano.

Tal medida estaria em linha com o próprio tratamento constitucional e legal da matéria, conforme o que está disposto no art. 200, inciso IV da Constituição Federal de 1988, que inclui o saneamento básico dentre as responsabilidades do Sistema Único de Saúde, e no artigo 3º, caput, da Lei nº 8.080/1990 (Lei do SUS), que aponta o saneamento básico como um dos fatores determinantes e condicionantes da saúde.

Trata-se, pois, de reconhecer que o direito tributário, manejado de modo a cumprir funções sociais (a extrafiscalidade tributária), pode se configurar em valoroso auxílio e ferramenta de inclusão social no campo do saneamento. Num país em que, segundo dados do Censo 2022 do IBGE, 24,3% da população (quase 50 milhões de brasileiros) reside em domicílios com soluções de esgotamento sanitário mais precárias e reputadas inadequadas, torna-se imperativo reconhecer a real importância do saneamento básico na garantia do acesso da população ao direito fundamental e social da saúde. A saúde do povo brasileiro agradece.

*Marcus Abraham é desembargador federal no Tribunal Regional Federal da 2ª Região, professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj e pesquisador na FGV Justiça.

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