Malu Gaspar
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Malu Gaspar

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Informações da coluna

Por Johanns Eller

Uma delação premiada feita nos Estados Unidos está na origem das investigações que levaram à realização, na semana passada, da operação Perfídia, da Polícia Federal, sobre as fraudes em contratos da intervenção federal no Rio em 2018.

O delator foi o empresário venezuelano Antonio Intriago, dono da nebulosa empresa americana CTU Security, que tinha como representantes no Brasil dois coronéis e contratou generais para fazer lobby no governo Jair Bolsonaro em favor do certame, que previa a aquisição de 9.360 coletes balísticos destinados à Polícia Civil do Rio.

Investigado nos EUA por uma possível colaboração com o assassinato do presidente do Haiti em 2021 e preso em fevereiro deste ano, Intriago, conhecido como Tony ou “general”, revelou aos americanos que a CTU também operou um esquema criminoso no Brasil.

A informação levou a uma cooperação internacional entre o governo dos EUA e a PF e justificou a apreensão do celular de um sócio brasileiro de Intriago no aeroporto de Miami, em agosto de 2022. O histórico de conversas compôs o conjunto de evidências compartilhado com a Justiça brasileira em outubro passado e pavimentou o caminho para a deflagração da Operação Perfídia no último dia 12.

O sócio em questão, o coronel da reserva da Aeronáutica Glaucio Octaviano Guerra, é apontado pela PF como o “mentor” do esquema que beneficiaria a CTU com o contrato de venda de coletes à intervenção no Rio.

Segundo documentos da Justiça americana obtidos com exclusividade pela equipe do blog, a CTU Security participou da conspiração para matar o líder haitiano Jovenel Moïse, diante da promessa de que, com a troca de comando no país, a empresa seria beneficiada com contratos de natureza militar e obras de infraestrutura.

Uma das etapas cruciais do plano envolvia o fornecimento de coletes pela empresa de Intriago para os mercenários contratados pela própria CTU Security para assassinar Moïse.

De acordo com o relatório da Justiça americana, os coletes a prova de balas foram transportados para a capital haitiana como equipamentos médicos.

É a partir deste ponto que a trama do Haiti se cruza com o caso brasileiro.

Depois de ser preso, o empresário venezuelano fechou acordo de delação com as autoridades americanas e, em seus depoimentos, citou outro esquema envolvendo o fornecimento de coletes balísticos, desta vez para o Brasil, com dispensa de licitação.

As investigações da PF abertas a partir da cooperação com os americanos mostraram uma série de irregularidades no contrato. Nos autos da Perfídia, o delegado Bernardo Adame Abrahão vê indícios de conluio entre a intervenção federal e a CTU.

Uma delas era o fato de que a empresa concedeu a um advogado brasileiro uma procuração para atuar em licitações do gabinete chefiado por Braga Netto três dias antes do governo brasileiro tornar pública a intenção de compra dos coletes balísticos no Diário Oficial da União (DOU).

Outra ilegalidade destacada pela PF é o fornecimento de uma certificação falsa da empresa Applied Fiber Concepts para os coletes. Nos diálogos dos investigados fica clara a tentativa de forjar uma parceria comercial entre as empresas para atender a uma das etapas do processo.

As suspeitas de fraude em contratos assinados pelo gabinete da intervenção, comandado pelo general Walter Braga Netto (PL) – incluindo a compra de coletes fornecidos pela CTU Security – já eram conhecidas na presidência da República.

Mas, até então, o contrato ainda não havia sido investigado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), embora nenhuma apuração tenha sido aberta, como mostramos no último sábado. Só depois de ter sido questionado pela PF é que o tribunal produziu um relatório elencando as irregularidades que subsidiou as investigações.

A compra dos coletes já havia sido suspensa em julho de 2019 pelo governo federal, depois que uma concorrente fez uma denúncia sobre a fraude na certificação dos coletes pela fabricante original – que, inclusive, negou qualquer vínculo comercial com a CTU após ter sido questionada pelo gabinete da intervenção.

Segundo apurou a equipe do blog, a PF não teve acesso à íntegra da delação de Intriago. Teriam sido fornecidos apenas os detalhes pertinentes ao suposto conluio para fraudar os contratos da intervenção federal.

No entanto, depois que o celular de Glauco Guerra foi apreendido em Miami, uma cooperação entre a corporação e os americanos permitiu o fornecimento dos dados e a deflagração da Perfídia.

Até aquele momento, o caso só havia sido investigado por uma apuração interna da Presidência da República na gestão Jair Bolsonaro, de quem o ex-interventor Braga Netto foi vice na chapa à reeleição em 2022.

A partir das mensagens obtidas no telefone de Guerra, já se sabe, por exemplo, que lobistas militares que atuaram a favor da CTU tentaram articular um jantar com Braga Netto, já empossado chefe da Casa Civil de Bolsonaro, para retomar o contrato. O objetivo da PF, agora, é confirmar se o encontro chegou a ocorrer.

Na perspectiva dos investigadores dos EUA, o esquema de corrupção na intervenção federal do Rio delatado por Intriago é apenas um capítulo incidental na apuração que envolve cidadãos americanos, colombianos e venezuelanos em uma tentativa de golpe no Haiti gestada a partir da Flórida.

Os documentos da apuração americana revelam detalhes inusitados -- como, por exemplo, o fato do nome da companhia envolvida em conspirações internacionais ter sido inspirado na fictícia agência antiterrorismo dirigida por Jack Bauer na série 24 horas.

Durante o planejamento da operação, os conspiradores chegaram a desistir de empossar um dos mentores do golpe como presidente haitiano porque ele não cumpriria os atributos constitucionais para assumir o cargo, mesmo que pela via de um golpe. Além de ter cidadania americana, ele não tinha apoio popular às vésperas da operação.

Foi quando o grupo apostou suas fichas em um ex-ministro da Suprema Corte haitiana. Mas a investigação dos EUA indica que a conspiração foi um tanto atrapalhada.

O plano original envolvia o sequestro do presidente do Haiti, que seria levado para fora do país após o fomento de manifestações populares contrárias ao governo. A estratégia não deu certo por falta de recursos e de munição, e os operadores do golpe optaram pela saída mais sangrenta.

Embora diversos conspiradores tenham sido presos e a presidência não tenha sido ocupada conforme o planejado, os mercenários foram bem-sucedidos na execução de Moïse dentro da sede presidencial e até hoje pairam suspeitas de vínculos do atual líder haitiano com os golpistas.

O fato é que a investigação que desvelou as conexões entre Miami e Porto Príncipe acabou esbarrando em um esquema nebuloso no Rio de Janeiro que havia causado pouca ou nenhuma comoção política no Brasil.

Ainda há muito a ser esclarecido, e não se sabe o que a Polícia Federal descobrirá de agora em diante.

Mas se não fosse pelo cruzamento de histórias a princípio desconexas, o esquema que envolveu lobistas militares e um gabinete de intervenção federal chefiado por um general quatro estrelas que quase chegou à vice-presidência da República acabaria esquecido pelas instituições brasileiras.

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