Malu Gaspar
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Por Johanns Eller e Rafael Moraes Moura — Rio e Brasília

Indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a chefia da Procuradoria-Geral da República (PGR) nesta segunda-feira (27), Paulo Gonet foi seriamente cotado para o mesmo cargo no início do governo Jair Bolsonaro, em 2019. Na ocasião, Gonet tentou se viabilizar com credenciais conservadoras que hoje podem render constrangimentos a Lula junto à militância do PT.

Como integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, nos anos 90, ele já se posicionou contra a responsabilização do Estado brasileiro pela morte de opositores da ditadura militar. Além disso, é um duro crítico do aborto, pauta apoiada por boa parte da esquerda e que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF).

Nos esforços para conquistar Lula, Gonet contou com o apoio explícito e a campanha de dois ministros do STF: o decano Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, que recentemente se aproximaram do presidente mas não mantêm laços com o petismo.

Mas, em 2019, quem apadrinhou publicamente a campanha de Gonet para a PGR foi ninguém menos que a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), integrante da tropa de choque bolsonarista no Congresso que já o definiu como “conservador raiz”.

O novo PGR foi contemporâneo de Kicis no curso de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e são amigos desde os anos 80. Foi a deputada, que se aposentou como subprocuradora-geral da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, levou Gonet para uma reunião em 2019 para defender a indicação do colega. Na ocasião, a parlamentar relatou nas redes sociais detalhes da conversa entre Gonet e Bolsonaro.

"O candidato à PGR, Paulo Gonet, disse ao presidente Jair Bolsonaro que nenhum candidato pode prometer que jamais haverá uma ação que [o] incomode. Mas garantiu que jamais usaria do cargo para atrapalhar o governo", escreveu Kicis.

"Paulo Gonet é conservador raiz, cristão, sua atuação no STF nos processos da Lava-Jato foi impecável. Ele não tem capivara. E o fato de ter sido sócio de Gilmar Mendes no IDP em nada interferiu em sua atuação profissional”, complementou.

Por fim, Bolsonaro acabou escolhendo Augusto Aras para comandar a PGR. Quatro anos depois e com Lula de volta ao poder, Gonet viu uma nova janela de oportunidade e conseguiu driblar as reservas de setores do PT ao seu histórico conservador.

Ironicamente, o mesmo Lula sacou Gonet da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos logo no início de seu primeiro mandato, em 2003. Esse capítulo da carreira do subprocurador guarda episódios espinhosos envolvendo a repressão da ditadura militar, tema caro à esquerda que voltaria a ser abordado pelos governos petistas com a criação da Comissão Nacional da Verdade sete anos mais tarde.

Ao longo dos anos 90, quando representou o MPF no colegiado, Gonet se posicionou contra a responsabilização do Estado pela morte dos guerrilheiros Carlos Marighella e Carlos Lamarca, do estudante secundarista Edson Luís e da estilista Zuzu Angel, além da reparação aos familiares da vítima da ditadura.

Em todos os casos, Gonet acabou sendo voto vencido. Mas seu posicionamento foi criticado publicamente pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e por ONGs como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch.

No cerne da divergência está fato de que a lei que criou a comissão, sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995, dizia que o objetivo era apurar assassinatos e desaparecimentos com motivação política entre 1961 e 1979 e “mortes não naturais” ocorridas em “dependências policiais ou assemelhadas” de pessoas que tenham participado ou sido acusadas de participação em atividades políticas.

Na ocasião, Gonet e o representante das Forças Armadas, general Oswaldo Pereira Gomes, argumentaram que as vítimas em questão não haviam morrido em instalações policiais.

Isso porque a lei que criou a comissão, sancionada no governo Fernando Henrique Cardoso, definia como objetivo apurar assassinatos e desaparecimentos com motivações políticas entre 1961 e 1979 e “mortes não naturais” ocorridas em “dependências policiais ou assemelhadas” de pessoas que tenham participado ou sido acusadas de participação em atividades políticas.

Por fim, prevaleceu a tese de que mortes em “dependências assemelhadas” não se limitariam a estabelecimentos físicos e se aplicariam também a contextos jurídicos e políticos nos quais as vítimas estavam sob a custódia ou o domínio dos agentes da repressão, como o caso de Marighella e Lamarca, assassinados em emboscadas do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), e Zuzu Angel, morta em um atentado no Rio orquestrado por agentes da ditadura.

A atuação na comissão não é o único calcanhar-de-aquiles do novo procurador-geral da República em um governo de vertente progressista. Ele também manifestou posições conservadoras nas chamadas pautas de costumes.

Católico praticante, Gonet é um duro crítico do aborto. Em artigo publicado em 2009 sob o título “Proteção à vida: a questão do aborto”, o então subprocurador criticou enfaticamente o direito à interrupção da gravidez.

O texto foi publicado em um periódico do Instituto Brasileiro de Ensino, Brasileiro e Pesquisa (IDP), instituição de ensino superior ligada a Gilmar Mendes da qual o subprocurador foi sócio até 2017, em meio à discussão sobre a possibilidade do uso de embriões para pesquisas científicas, jurisprudência firmada pelo STF em 2008.

O artigo cita diversas referências conservadoras, incluindo uma encíclica do Papa João Paulo II e artigos do Ives Gandra Martins, jurista defensor da controversa tese de que o artigo 142 da Constituição atribui às Forças Armadas um poder moderador, explorada por Bolsonaro e apoiadores no enfrentamento ao Supremo e ao Congresso.

Em síntese, Gonet defende no ensaio o argumento de que a vida humana deve ser considerada desde a concepção – o que incluiria embriões usados em pesquisas – e sustenta que a rejeição do procedimento seria um “dever do Estado no domínio do nosso direito constitucional”.

O Código Penal autoriza o aborto em duas exceções: estupro e risco de vida. Além disso, em 2012, o STF autorizou a interrupção da gravidez em casos de feto anencéfalos, quando há má formação congênita do cérebro.

O julgamento da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação no STF, pautado pela então presidente do STF Rosa Weber, foi interrompido em setembro por um pedido de destaque do atual dirigente do tribunal, Luís Roberto Barroso. Ainda não há previsão para retomar o processo. Antes de se aposentar, Rosa se manifestou a favor da pauta.

Outra pauta de costumes criticada por Gonet é a criminalização da homofobia e transfobia pelo Supremo, que em 2019 equiparou os dois crimes ao de racismo, que é imprescritível e inafiançável. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo em 2019, ao tentar se viabilizar para a PGR de Bolsonaro, o subprocurador manifestou ao então presidente sua contrariedade à decisão do STF.

O histórico conservador do novo PGR, que até sua indicação acumulava a função de subprocurador com a de vice-procurador-geral eleitoral da Procuradoria-Geral Eleitoral, foi ofuscado por um episódio que lançou holofotes sobre seu nome e aumentou seu valor de passe na disputa pelo cargo.

Seu parecer contundente pela condenação de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na ação de investigação judicial eleitoral (Aije) do PDT que acabou tornando o ex-presidente inelegível pela infame reunião com embaixadores com ataques ao sistema eleitoral brasileiro foi encarado como um dos principais trunfos de Gonet sobre outros concorrentes, como os subprocuradores Antonio Carlos Bigonha, Aurélio Rios e Carlos Frederico Santos.

Mas, internamente, colegas de Gonet no MPF avaliam que sua atuação na PGE foi extremamente autocontida durante o processo eleitoral, quando não havia certeza de quem seria o presidente a partir de janeiro de 2023, e que ele teria deixado o ônus político de denunciar o candidato à reeleição para os partidos políticos.

O então vice-procurador-geral eleitoral chegou a engavetar uma notícia de ilícito da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), que atua como uma espécie de “ombudsman” do MPF na defesa de direitos constitucionais, que pedia a investigação de Bolsonaro pela reunião com os embaixadores no Palácio do Planalto.

A representação foi assinada pelos 27 procuradores da PFDC em todas as unidades da federação, mas foi arquivada prontamente por Gonet, que detinha de fato o poder de denunciar candidatos a presidente em ações eleitorais.

Um mês após o episódio, Gonet se manifestou sobre a reunião no TSE, onde defendeu a remoção do vídeo da reunião das redes sociais e multar a campanha de Bolsonaro. Os ministros acataram o pedido de setembro, mas a falta de uma ação mais incisiva – como a abertura de uma Aije – provocou muito desconforto no MPF.

A investigação e condenação do ex-presidente, de fato, a cargo da ação protocolada pelo PDT. Gonet só recrudesceu o tom contra o ex-presidente em abril deste ano, quando se manifestou pela sua condenação. Àquela altura, Lula já havia tomado posse, Bolsonaro se tornara alvo de diversos inquéritos no STF e a sucessão de Augusto Aras começava a ganhar forma.

Só em abril deste ano, com Lula já eleito e Bolsonaro na mira do Supremo e da Polícia Federal, Gonet se manifestou pela sua condenação de Bolsonaro no processo conduzido por Alexandre de Moraes,.

No julgamento do TSE, chegou a dizer inclusive que as ações do então presidente tinham um “infesto potencial antidemocrático”. Bolsonaro acabaria condenado pelo TSE por um placar de 5 a 2, e, por consequência, está inelegível até 2030.

Nas últimas semanas, Lula ouviu de aliados no Congresso que Gonet não promoveria surpresas à frente da PGR, o que agrada tanto ao petista quanto à cúpula do Congresso – o subprocurador contou com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). O PGR é a única autoridade com poder para denunciar criminalmente presidentes da República e autoridades com foro privilegiado.

O comportamento de Gonet durante o governo Bolsonaro pode sugerir que Lula, enquanto estiver no poder, poderá ter essa expectativa de lealdade (ou submissão) atendida – mas também indica que não há garantias depois que o presidente deixar o Planalto, seja em 2027 ou em 2031.

Mas é difícil que essa vantagem estratégica amacie a militância progressista diante da biografia do novo procurador-geral, em meio ao desapontamento com a falta de representatividade nas indicações para o Supremo Tribunal Federal (STF) e a demissão de mulheres do primeiro escalão do governo.

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