Malu Gaspar
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Por Malu Gaspar

O evento que o governo Lula preparou para o primeiro aniversário dos atos golpistas de 8 de janeiro foi pensado para ser uma grande celebração. Da mesa em que estarão o presidente, o vice-presidente Geraldo Alckmin e dos chefes dos Três Poderes, devem ser feitos discursos comemorando a preservação da democracia e louvando o papel de alguns personagens, como a ex-presidente do STF Rosa Weber e o ministro Alexandre de Moraes, que comandou a reação do tribunal aos ataques.

Quem mais ganhou com o esforço de superação da ameaça golpista, porém, ficará em silêncio e talvez nem seja lembrado diretamente: os militares. Eles serão representados na plateia pelos comandantes das Forças Armadas, cuja presença foi exigida pelo ministro da Defesa, José Múcio, como gesto simbólico de respeito à democracia.

Exigência correta, mas nem um pouco difícil de ser cumprida, uma vez que a caserna foi muito bem tratada pelo governo desde os ataques às sedes dos Três Poderes.

Embora oficiais de alta patente (na reserva e na ativa) tenham tido papel fundamental no avanço do golpismo – e vários de forma sistemática, durante todo o governo Bolsonaro – nenhum foi indiciado, denunciado, julgado ou preso até hoje.

No governo, Múcio foi bastante eficiente em desarmar as bombas legais ou institucionais que poderiam incomodá-los, anulando aos poucos o argumento – defendido não só pelo PT mas por vários setores da sociedade – de que para evitar novas insurreições seria preciso reduzir o poder dos militares e recolocá-los em suas devidas caixinhas.

A primeira iniciativa do PT a ser desidratada foi a de reescrever o artigo 142 da Constituição, tantas vezes usado pelos bolsonaristas para justificar uma intervenção militar. O 142 diz que as Forças Armadas devem garantir a “defesa da Pátria" e "dos poderes constitucionais", mas “sob a autoridade suprema do Presidente da República”.

A ideia no PT era anular qualquer brecha no texto que permitisse aos golpistas evocar um poder "moderador" ou de "árbitro", como tantas vezes se fez nos últimos anos. Passado o primeiro trauma do 8 de janeiro, porém, o governo Lula prontamente desestimulou a ideia.

Outra proposta cara propositalmente esquecida por Lula foi a reabertura da comissão dos mortos e desaparecidos políticos, que chegou a ser incluída no relatório de transição como prioridade a ser implementada nos primeiros três meses de mandato.

O ministério dos Direitos Humanos, de Silvio Almeida, redigiu uma minuta de decreto que indicava até os membros da nova comissão, mas ela tramitou a passos de jabuti no governo, até ir parar em uma gaveta da Casa Civil, à espera da assinatura presidencial que nunca veio.

Nas conversas com integrantes do primeiro escalão ninguém fez segredo sobre o desconforto de Múcio e das Forças Armadas com a proposta. O próprio Lula desconversou todas as vezes que lhe perguntaram sobre a comissão.

O projeto de lei que acabava em definitivo com as pensões para filhos de militares – hoje válidas apenas para quem começou a receber o benefício antes de 2000 – também foi engavetado sem maiores explicações.

A única iniciativa que prosperou no Congresso foi um projeto de lei que proíbe oficiais da ativa de se candidatarem a cargos eletivos – que só foi adiante porque era aprovada pelos comandantes.

A ideia original era impedir também que o pessoal da ativa fosse nomeado para ministérios, como fez Bolsonaro em seu governo, mas esse ponto não foi adiante porque não tinha o aval dos fardados.

Além de se empenhar em não melindrar as Forças Armadas, o governo Lula também se empenhou em conquistá-las com verbas, dando à Defesa a maior fatia do orçamento da nova versão do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) – R$ 52,8 bilhões.

No dia-a-dia, a cúpula militar recebeu atenção especial de Lula, em encontros reservados e até um churrasco. Com o comandante do Exército, Tomás Paiva, o presidente fala direto ao telefone.

É verdade que a cúpula fez sua parte – em especial o general Tomás, com seus discursos, entrevistas e ordens do dia exortando a tropa a respeitar a democracia e obedecer o desejo das urnas. Mas não há dúvida que é muito mais fácil controlar uma tropa com afagos do que tentando tirar suas regalias.

Os militares têm consciência das vitórias acumuladas. Nas conversas internas sobre o saldo deste ano após 8 de janeiro, os generais não se acanham em dizer que estão no lucro.

No âmbito judicial, a situação não é muito diferente, apesar do intenso trabalho do Supremo, da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Federal. Em que pesem as 1345 denúncias feitas contra invasores do 8 de janeiro, dos quatro inquéritos abertos e das diversas operações da PF, ainda há muitas perguntas sem resposta.

Até hoje não se sabe exatamente o que diz a delação de Mauro Cid e o que, nela, fica de pé, ou o que a PF de fato descobriu sobre quem planejou o golpe e quem financiou seus preparativos. Um único financiador foi denunciado, um empresário que desembolsou pouco mais de R$ 50 mil – dinheiro de pinga para o tamanho da mobilização testemunhada há um ano.

A iniciativa mais contundente veio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que ao decretar a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, o que desarticulou a extrema-direita pró-intervenção.

Do governo Lula, por ora, as Forças Armadas só receberam afagos, o que não chega a ser surpresa para quem acompanhou a relação do petista com a caserna em mandatos anteriores.

Não custa lembrar, porém, que, nos últimos anos, não foram poucos os que lamentaram que nenhum presidente após a redemocratização tenha levado adiante a ideia de rever a Lei da Anistia e punir os responsáveis por assassinatos cometidos pela ditadura.

Claro que esse não foi o único fator a turbinar a extrema-direita no Brasil, mas é razoável supor que falta de um amplo julgamento público ajudou a abrir espaço para narrativas tortas e até uma certa romantização do regime militar, permitindo a emergência de figuras como Bolsonaro e abrindo os bueiros do golpismo.

Pode parecer implicância falar em ameaça no momento em que se celebra um ano de paz na caserna. Mas é nas horas de calmaria que se desfaz os nós mais difíceis e previne novas tempestades. Hoje o golpismo parece debelado, mas suas raízes não chegaram a ser cortadas – o que pode se tornar um risco grave se e quando as condições para uma insurreição voltarem a se apresentar.

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