Malu Gaspar
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Malu Gaspar

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Por — Brasília

A investigação da Polícia Federal que levou ao indiciamento de Jair Bolsonaro por peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro no caso das joias sauditas apontou uma contradição em um personagem-chave do esquema de desvio de presentes enviados por autoridades estrangeiras.

Em áudios obtidos pela PF, o ex-chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) da Presidência da República Marcelo Vieira deixa claro que cuidava dos presentes de Bolsonaro de acordo com os interesses privados do chefe do Executivo.

“Tem que ver qual é o desejo do presidente, que isso vire acervo ou não”, afirmou Vieira num dos áudios.

O GAHD é um departamento responsável por receber os presentes entregues ao chefe do Poder Executivo, fazer a triagem e avaliar o que se tratava de presente pessoal, que seria listado como artigo privado do presidente, e o que deveria ser encaminhado ao acervo da União.

Em depoimento à PF prestado em 12 de abril do ano passado, no entanto, Vieira afirmou que conduzia o órgão seguindo critérios técnicos e alegou que o “gosto do presidente” e o “valor econômico” não eram considerados na análise dos presentes enviados por autoridades estrangeiras.

“O declarante quer deixar claro que não se entrava no mérito sobre as características de gênero, valor econômico, gosto do presidente ou qualquer outro aspecto subjetivo, pois se a indicação era que o presente era destinado ao Presidente da República e não se incluía nas condições de que deveria ser considerado integrante do acervo público, ele era considerado do seu acervo privado presidencial”, diz o termo de declarações do depoimento prestado por Vieira à PF.

Os áudios que desmontaram a versão do depoimento de Vieira são de 15 de setembro de 2021, quando um funcionário do setor de coordenação administrativa do Palácio da Alvorada encaminha ao então chefe do GAHD uma foto de um conjunto de facas que Bolsonaro havia recebido.

O servidor diz que Bolsonaro queria guardar as facas e por isso aciona Vieira em busca de instruções sobre onde deixar o presente.

Vieira então responde enviando três mensagens de áudio em que esmiúça o modus operandi do órgão – o celular dele foi alvo de uma operação de busca e apreensão da PF autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o que permitiu aos investigadores o acesso aos áudios e às trocas de mensagens.

“Se o PR (Presidente da República) quiser que isso componha o acervo privado, isso aí a ajudância de ordens sabe o procedimento. Ele vai preencher uma ficha que é determinação legal do TCU, encaminha isso lá pro gabinete, o gabinete faz todo o procedimento museológico e devolve pro PR, só que quando isso vira acervo, isso fica protegido pela lei do acervo”, frisou o então chefe do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) da Presidência da República.

O que chamou a atenção dos investigadores da PF foi o que Vieira disse depois: ele afirma que, se Bolsonaro quisesse usar o presente em sua vida cotidiana, poderia guardá-lo “sem dar entrada oficialmente” no setor, ou seja, sem ser registrado – e por isso esses bens teriam que ficar “separadinho”, sem misturar com o acervo privado.

“Ele pediu pra guardar isso no acervo? Não tem problema nenhum, só que ele não vai ficar, digamos que, registrado oficialmente, a gente vai ter que fazer alguma coisa pra isso ficar ‘separadinho’ lá, entendeu? Não pode misturar o acervo privado”, afirmou Vieira.

Havia, no entanto, uma preocupação de Vieira com as circunstâncias em que o presente tinha sido entregue, particularmente com registros fotográficos em cerimônia oficial, que poderiam deixar rastros para a imprensa.

“Eu não sei em que circunstâncias ele recebeu, vai que isso foi numa cerimônia oficial, no gabinete dele, teve registro fotográfico? Quem deu, foi uma autoridade? É uma pessoa comum? Um artista? Uma pessoa jurídica? Então tem que ter todo um cuidado pra que a gente não exponha o Presidente da República, porque amanhã depois chega a LAI, Lei de Acesso à Informação, eles pedem a lista de presentes do presidente, aí, não consta, por exemplo, essa faca”, comentou, sem especificar quem seriam “eles”.

Vieira propõe então colocar o conjunto de facas em um “lugar seguro, com pouca movimentação de pessoas”. “Eu acho hiper bacana! Mas tem que ver qual é o desejo do presidente, que isso vire acervo ou não”, ressaltou.

“Se o presidente falar: ‘Eu quero agora sem registro’, não manda pro GADH registrar, não preenche a papeleta, só que tem que tomar esse cuidado pra saber quais foram as circunstâncias que foram dadas, é essa minha preocupação, se teve fotografia, imprensa.”

Para a Polícia Federal, ao afirmar que “tem que ver qual é o desejo do presidente, que isso vire acervo ou não”, Vieira expõe que o critério para definir se um presente seria destinado ao acervo privado ou público, ou se sequer passaria pelo procedimento legal de tratamento, “ficava condicionado à vontade do presidente da República Jair Bolsonaro” – e não ao cumprimento da legislação e de um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2016, que definiu que joias como as oferecidas pelo governo da Arábia Saudita não se enquadram como itens de "natureza personalíssima".

Ou seja, dependendo da ocasião e da forma como o presente foi enviado, o item poderia ser desviado sem passar pela análise do GADH. De acordo com a PF, foi esse o procedimento adotado no caso de esculturas douradas de um barco e de uma árvore que Bolsonaro recebeu de autoridades dos Emirados Árabes Unidos e do Bahrein em novembro de 2021.

Aqueles presentes não foram submetidos ao tratamento de destinação ao acervo público pelo GADH. O ex-ajudante de ordens Mauro Cid tentou vendê-los nos Estados Unidos, sem êxito.

“Não vale nada, não é nem banhado (a ouro), é latão”, disse Mauro Cid ao seu pai, em outra mensagem obtida pela PF.

Mas nesse caso, os temores de Vieira se revelaram justificados. “Os investigados não se atentaram ao fato de que a cerimônia de entrega da árvore dourada (Palm Tree) foi registrada, com o vídeo publicado o canal oficial da TV Brasil na plataforma YouTube”, observou a PF.

Procurado pela equipe da coluna, o advogado Luiz Eduardo de Almeida Santos Kuntz, que representa Vieira, disse que a defesa ainda precisa ter acesso aos áudios, mas ressaltou que “o mesmíssimo tratamento que era dado nos governos anteriores foi mantido e aprimorado durante o governo Bolsonaro”.

Kuntz rechaçou a conclusão da PF e disse que o ex-chefe do GADH sempre atuou seguindo critérios técnicos, "no sentido de manter total zelo e cuidado com referidos documentos, nos termos da legislação em vigor, sendo incompreensível a sua inclusão nesta investigação”.

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