Marcelo Ninio
PUBLICIDADE
Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

Informações da coluna

Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por Marcelo Ninio — Pequim

Há muito tempo a trajetória de um voo não despertava tanto interesse como o que levava a presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, a Taiwan. Segundo o aplicativo Flightradar24, que monitora rotas aéreas em tempo real, ao longo do dia até 300 mil pessoas acompanhavam simultaneamente os movimentos do Boeing C-40 operado pela Força Aérea americana que serve a comitiva de Pelosi em seu tour pela Ásia. Foi um monitoramento tenso: a promessa de uma "reação firme" da China caso a visita se concretizasse criou a expectativa de que a antiga disputa em torno de Taiwan subisse a um novo patamar de enfrentamento com os EUA.

A presença de Pelosi em Taiwan é mais um degrau numa escalada iniciada gradualmente há pelo menos dez anos. Como é comum em crises diplomáticas, as tensões têm origem na interseção entre política externa e doméstica, neste caso dos três governos envolvidos: Taipé, Pequim e Washington. Novos rearranjos geopolíticos liderados pelos EUA na Ásia em resposta à ascensão da China intensificaram a rivalidade, e a guerra na Ucrânia acendeu de vez o alerta em Taiwan de que a ação militar russa deveria servir como modelo para a defesa contra uma possível invasão chinesa da ilha.

Primeiro, a ascensão de Xi Jinping à liderança do Partido Comunista da China (PCC) em 2012 marcou o início de uma política mais assertiva e nacionalista de Pequim, tanto em casa como na diplomacia do país. Em 2016, veio a eleição da presidente taiwanesa Tsai Ing-wen, que deu um passo atrás na aproximação de seu antecessor com Pequim e reforçou a independência de facto da ilha. E, no ano seguinte, a chegada de Donald Trump à Casa Branca, que virou a chave da política externa americana para o confronto aberto com a China. Em todos, os interesses domésticos e as dinâmicas externas se entrelaçaram para aproximar Washington de Taipé e aumentar o antagonismo entre EUA e China.

Xi Jinping manteve inicialmente a mesma linha dos antecessores de priorizar a reunificação pacífica, mas em 2019 houve uma mudança no tom. Num discurso para marcar os 40 anos da política de Deng Xiaoping, o presidente chinês disse que a reunificação é “uma tendência da História" e que usaria a força se necessário. Desde então, a atividade militar chinesa no entorno de Taiwan foi intensificada, com incursões diárias na zona de identificação aérea da ilha a cada declaração ou movimento militar americano. Em discurso no mês passado em Cingapura, o ministro da defesa, Wei Fenghe, disse que a China está disposta “a lutar até o fim" caso Taiwan declare sua independência.

A repressão chinesa aos movimentos pró-democracia em Hong Kong, a ex-colônia britânica onde Pequim também prometera aplicar a fórmula de "um país, dois sistemas", convenceu a maioria dos taiwaneses de que teriam o mesmo destino se houvesse uma reunificação. A lição impulsionou o apoio à reeleição da presidente Tsai Ing-wen, em 2020, numa derrota para a China. Apesar do discurso mais duro de Pequim e das constantes incursões aéreas, a maioria da população de Taiwan não parecia preocupada com a ameaça de uma invasão chinesa, até a guerra na Ucrânia. Desde a invasão russa, a procura por treinamento com armas de fogo quadruplicou na ilha, segundo a imprensa local.

O sentido de urgência sobre uma possível ação militar chinesa não ficou só na população taiwanesa. Em maio, durante uma visita ao Japão, o presidente Joe Biden disse que o compromisso dos EUA em defender Taiwan havia se tornado “ainda mais forte" após a ação militar russa. Para o brasileiro Moisés de Souza, professor-assistente de estudos asiáticos e relações internacionais da Universidade Central de Lancashire, no Reino Unido, mais que a dinâmica das relações entre China e Taiwan, foi a guerra na Ucrânia o “gatilho" que intensificou as tensões.

— Nas relações internacionais, toda vez que há um impasse, em que as partes ficam travadas sem conseguir uma solução, abre-se a possibilidade de que um fator externo desajuste o equilíbrio. É quando crises ou mesmo conflitos acontecem. Um exemplo clássico disso é a Primeira Guerra Mundial. No contexto atual, no caso de Taiwan, o gatilho foi a guerra da Ucrânia — diz Souza.

Com longa vivência em Taipé, onde fez mestrado e doutorado em estudos de Ásia-Pacífico na Universidade Nacional Chengchi, Souza explica que o apoio internacional a Taiwan faz parte da sobrevivência política da ilha — que só mantém relações diplomáticas plenas com 14 países — mas também tornou-se um instrumento político do Ocidente.

— É importante destacar que Taiwan se agarra firmemente a toda oportunidade de aumentar sua visibilidade e espaço internacional, fundamentais para sua sobrevivência. No entanto, neste processo a ilha acabou também enredada numa narrativa de defesa da ordem liberal. Os americanos e europeus jamais estariam interessados em Taiwan se lá houvesse um regime autoritário. Taiwan acabou ganhando importância para a manutenção da ordem liberal, não por Taiwan em si, mas em função da negação à China — afirma.

Mais recente Próxima