Marcelo Ninio
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Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

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Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por Marcelo Ninio — Pequim

Marcada para agosto na África do Sul, a próxima reunião de cúpula dos Brics promete. Primeiro, há a crescente rivalidade entre o Ocidente e dois dos membros do grupo, China e Rússia, que buscam nos Brics um ponto de apoio para contrabalançar a influência do G7, o clube dos países industrializados que teve sua cúpula semana passada. Mais de vinte nações já manifestaram interesse em entrar nos Brics, diz Anil Sooklal, o representante da África do Sul no grupo de economias emergentes, do qual fazem parte também o Brasil e a Índia.

Para Sooklal, é um sinal de que o Sul Global vê no Brics um meio de ganhar voz para construir um mundo “mais justo e inclusivo”, disse o diplomata sul-africano em entrevista. Outro ponto de tensão é a possível participação do presidente da Rússia, Vladimir Putin, contra quem há um pedido de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI). Sooklal descartou a possibilidade de a África do Sul deixar o TPI para evitar ter que prender Putin. Mas confirmou que o presidente russo foi convidado para a cúpula — e aceitou o convite.

Quais serão as prioridades da cúpula?

Os temas escolhidos pela África do Sul, e que foram aceitos pelos outros membros, são Brics e África, parceria para um crescimento acelerado mútuo, desenvolvimento sustentável e multilateralismo inclusivo. Queremos encarar os desafios para uma ordem multilateral inclusiva, que é um foco constante do Brics desde seu nascimento. A atual arquitetura multilateral não reflete a realidade do mundo, por isso gostaríamos de manter o foco na reforma da agenda multilateral.

Que reformas vocês propõem?

Como um coletivo, acho que os Brics têm que sempre dar voz à lentidão do processo de reforma do Conselho de Segurança da ONU. São quase 20 anos de discussão sem progresso. E o mesmo para as outras instituições multilaterais. Ao articular essa frustração como uma prioridade, nós mantemos o assunto no radar global. É necessária uma transformação séria, não apenas uma reforma, para que essas instituições sejam mais inclusivas e representativas. O sistema ficou semiparalisado porque certos países continuam dominando as instituições e não querem uma reforma séria.

Em que estágio está a ideia de expandir os Brics?

Houve um tremendo interesse no último ano de países de todas as regiões do Sul Global em se tornarem membros dos Brics. O número de países que manifestaram interesse, formal ou informalmente, passa de 20. É evidente que os temas, princípios e valores que os Brics defendem encontram ressonância na comunidade internacional, especialmente no Sul Global. Esses países se veem marginalizados, sentem que suas vozes não são ouvidas e que decisões são tomadas por eles. Acho que se cansaram disso. E articularam sua frustração dizendo que sim, veem nos Brics a voz do Sul Global para uma arquitetura mundial mais justa e inclusiva, que não sirva aos interesses só de uns poucos. É o que estamos vendo: países menores exercendo sua soberania, reivindicando seu espaço político para tomar suas próprias decisões nos grandes temas globais, sem serem forçados a tomar um lado. Querem ser parte da solução dos problemas globais, e não que eles sejam decididos sem sua presença e voz.

Como será a expansão? Os novos países serão candidatos plenos?

No ano passado, na cúpula dos Brics presidida pela China, a declaração final falava especificamente em expandir o grupo. Os líderes concordaram em começar a discutir a expansão e instruíram seus representantes a examinar os princípios, padrões, critérios e procedimentos que a guiarão, com base em consultas e consensos. Esses princípios serão apresentados na reunião de chanceleres da próxima semana na Cidade do Cabo. Estamos ainda numa fase inicial.

E em relação à ideia de estabelecer uma moeda dos Brics?

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou muito fortemente contra o domínio de apenas uma moeda. Os Brics têm discutido isso há muito tempo, de fato há alguns anos assinamos o acordo de arranjo interno que facilita o comércio em nossas próprias moedas. Ele precisa ser atualizado e agora há um grande foco nisso, não apenas entre os países dos Brics. Muitos países do Sul Global gostariam de exercer sua soberania financeira e começar a comercializar entre eles e também tomar empréstimos no mercado global em moedas locais, sem serem obrigados a usar uma determinada moeda, que traz desvantagens para nós. É isso o que estamos discutindo dentro dos Brics, em um estágio inicial, para começar o comércio entre nossos países em moedas locais. É um primeiro passo para a independência financeira.

É esperada uma decisão sobre isso na cúpula de agosto?

Será parte da discussão. Não acredito que uma decisão será tomada, porque estamos num estágio inicial. Mas é um tema importante da agenda.

Como a guerra na Ucrânia afeta o funcionamento dos Brics?

Veja, esse conflito já está ocorrendo há quase 18 meses e os Brics continuam a funcionar de forma coerente, a guerra não afetou os trabalhos do grupo. É um assunto que preocupa a todos nós. Cada um apresentou sua posição. O que nós queremos é que haja um processo para resolver o conflito entre Rússia e Ucrânia pacificamente, e de forma diplomática, por meio de negociações. Acho que a cúpula apresenta uma oportunidade para isso, o presidente Lula também tem se manifestado nesse sentido. É o que todos nós gostaríamos, um fim ao conflito por meio de um processo coletivo que atenda às preocupações dos dois lados.

A ideia é uma mediação por meio dos Brics?

O presidente Lula já se referiu a isso e você deve ter visto que o presidente [sul-africano, Cyril] Ramaphosa está ocupado com uma iniciativa de líderes africanos, que em breve visitarão a Ucrânia e a Rússia. O presidente Narendra Modi tem falado sobre a vontade da Índia de mediar a paz, o presidente [da China] Xi Jinping apresentou uma proposta de 12 pontos sobre o conflito. Todos os líderes do Brics têm estado na linha de frente das iniciativas de paz. Portanto, quando se reunirem na cúpula eles discutirão formas de avançar um processo de paz como um coletivo, para buscar uma resolução pacífica ao conflito.

O Tribunal Penal Internacional [TPI] emitiu uma ordem de prisão contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Ele estará na cúpula?

O presidente Putin foi convidado pelo presidente Ramaphosa para comparecer à cúpula. Temos consciência dos desafios associados ao TPI, visto que a África do Sul é membro do tribunal. Nosso presidente nomeou um comitê sob a chefia de seu vice para estudar esse assunto e os desafios que ele apresenta à África do Sul.

A África do Sul estaria disposta a sair do TPI, como foi noticiado?

Não, isso não está sendo considerado. Nosso vice-presidente está estudando o assunto, e o isso está recebendo máxima atenção do gabinete.

Se a ideia é promover uma solução negociada para o conflito, seria uma opção convidar para a cúpula dos Brics o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky?

Eu prefiro não comentar sobre isso, porque os Brics são um grupo do Sul Global Em nossas reuniões paralelas nós convidamos líderes do Sul Global. Nunca convidamos líderes do Norte Global.

O que há de verdade na acusação dos EUA de que a África do Sul forneceu armas para a Rússia?

Nosso presidente nomeou um comitê ministerial para examinar essas alegações. O tema está sendo investigado.

No clima atual de competição geopolítica, a tendência é que os Brics se tornem um bloco de oposição ao G7?

Não. Desde a criação dos Brics, nunca nos vimos como um bloco em competição com outras formações, nem um contrapeso ao G7 e outras estruturas. Os Brics existem para servir aos nossos interesses e do Sul Global. O objetivo é trabalhar de forma coletiva para corrigir as grandes fraturas geopolíticas que existem na atual arquitetura geoconômica global, que é distorcida e favorece uma minoria. Mas os Brics estão aberto a todos, do Sul e do Norte.

O senhor tem um longo histórico na área de direitos humanos, na qual Rússia e China são alvo de denúncias frequentes de violações. Entre os candidatos potenciais a entrar nos Brics há vários outros países com regimes autoritários, como Arábia Saudita, Irã e Egito. Como vê o risco de que os Brics virem um “clube de ditaduras"?

Acho muito errado categorizar países entre aqueles que cumprem e os que violam direitos humanos. É lamentável que o Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra tenha sido politizado por uns poucos, incluindo alguns que deixam o conselho e voltam quando lhes é conveniente. Violações de direitos humanos deveriam preocupar a todos, porque não estão confinados a um país ou região em particular. Elas acontecem de maneira generalizada, independentemente do tipo de governo. Não significa que um certo grupo de países que defendem a democracia são os guardiões dos direitos humanos. A realidade é diferente. Se olharmos para as últimas declarações das cúpulas dos Brics, os direitos humanos sempre receberam atenção. Acho errado considerar alguns poucos países os guardiões dos direitos humanos, isso não faz sentido.

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