Marcelo Ninio
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Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

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Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por — Pequim

“Estou velho e já não me resta muito tempo de vida. O futuro pertence aos jovens. Que tipo de sociedade vocês terão? Sua ansiedade deveria ser maior que a minha. O progresso é responsabilidade de todos. Mas se há retrocesso, ele também é causado por cada um de nós.”

O recado, escrito à mão e divulgado numa rede social por amigos, foi uma espécie de despedida do veterano economista chinês Mao Yushi. Depois de anos vivendo sob as restrições impostas pelo governo e às vésperas de completar 95 anos, ele decidiu se mudar com a mulher para o Canadá, provavelmente para nunca mais voltar. Se a mensagem aos jovens pareceu cifrada, quem conhece o economista entendeu muito bem o recado.

Mesmo silenciado, Mao mantinha-se como o principal dos economistas liberais chineses que ainda viviam no país. Não era uma posição confortável. No espectro ideológico da China atual, liberal significa defender menos intervenção estatal e controles sobre o setor privado e, no caso de Mao Yushi, democracia plena, eleições livres e um sistema multipartidário.

Praticamente o oposto da cartilha adotada pelo presidente Xi Jinping. Para Xi, o custo de políticas liberais como as defendidas por Mao seria intolerável, levando à perda de controle do Partido Comunista.

Não surpreende, portanto, que o velho economista tenha vivido os últimos anos sob a vigilância das autoridades. Em 2013, eu visitei Mao em seu apartamento em Pequim, e entre goles de chá verde ele reiterou suas convicções sobre o futuro que sonhava para a China. Para seguir adiante, as reformas econômicas de que o país precisa dependem de abertura política, proteção dos direitos humanos e igualdade de oportunidades.

Por suas críticas a Mao Tsé-tung, o economista havia sofrido poucos dias antes de nossa conversa um cerco de militantes ultraesquerdistas, que foram a sua casa disparar ameaças e insultos. Mas Mao Yushi (sem parentesco com o líder comunista) não parecia abalado. Na penumbra de sua sala de estar, ele disse que Mao Tsé-tung “foi pior que Stalin e Hitler”, pelos erros que causaram 50 milhões de mortes em tempos de paz.

O velho liberal agora acompanhará da longínqua Vancouver a trajetória de seu país. Em meio à desaceleração da economia, ironicamente muitas das críticas que o governo tem sofrido são direcionadas à insuficiente ação estatal para reavivar o consumo com medidas de estímulo mais robustas. Mais um exemplo das complexidades de um modelo que desafia definições.

Nunca houve acordo entre os especialistas sobre o que está por trás do sucesso econômico da China nas últimas quatro décadas, diz Wang Tao, economista-chefe do banco UBS para a China. Autora do livro “Entendendo a economia chinesa”, incluído na lista dos melhores de 2023 do jornal Financial Times, Wang está convencida de que o governo mantém o pragmatismo e a capacidade de adaptação, apesar do viés ideológico da atual liderança.

Em 2017, as autoridades ordenaram o fechamento do Instituto Unirule, fundado 24 anos antes por Mao Yushi. Foi o ponto final a um dos últimos centros de pesquisa independentes da China. A pressão não alterou os princípios do economista. A mensagem que escreveu ao completar 95 anos, há duas semanas, soou não só como mais um conselho aos jovens, mas como a antecipação de seu epitáfio: “Espírito independente, pensamento livre”.

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