Marcelo Ninio
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Marcelo Ninio

Repórter desde 1989, passou por O GLOBO, Jornal do Brasil, EFE e Folha de São Paulo.

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Marcelo Ninio

Passou pelas redações do Jornal do Brasil, Agência EFE e Folha de S.Paulo. Tem mestrado em relações internacionais pela Universidade de Jerusalém.

Por — Pequim

No tempo em que era o país mais populoso do mundo, a China chegou a ser, para muitos, quase sinônimo de aborto. Mas não no sentido da liberdade de escolha feminina. O aborto era dever, não direito. Instituída nos anos 1970 para evitar uma explosão demográfica, a política do filho único resultou em pelo menos 336 milhões de abortos até 2013, segundo estatísticas oficiais.

Em 2016, o governo chinês mudou a política e passou a permitir dois filhos por casal; seis anos depois, o país perdeu para a Índia o posto de maior população do planeta. Para as autoridades chinesas, o quadro de hoje é inverso. O problema passou a ser o recuo demográfico, que se apresenta como um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento de longo prazo e à ambição de virar uma potência dominante. É uma realidade bem diferente da que vive o Brasil do Projeto de Lei 1904/2024, que equipara aborto a homicídio.

Mas tem em comum com a China a ideia de que o controle da gestação pode estar nas mãos do Estado, seja por motivos econômicos, religiosos ou médicos. Virou até disputa geopolítica, como se viu na recente cúpula do G7, que acabou não incluindo o assunto na declaração final devido a uma queda de braço entre EUA e Itália. Com o declínio no crescimento populacional, a China vislumbra efeitos sistêmicos que tendem a ser sentidos dentro e fora das fronteiras. Em 2021, o país novamente alterou a lei, para permitir três filhos.

Mas o empurrão não surtiu o efeito desejado. Depois de décadas sendo impostos à força, os lares com um filho viraram opção popular. A urbanização acelerada modernizou o país e tirou milhões da pobreza extrema, mas também esvaziou o sonho das famílias numerosas. Para a maioria dos casais, ter mais de um filho é simplesmente caro demais. Na cabeça dos chineses, melhor é concentrar os recursos disponíveis no filho único (ou filha), e dar-lhe condições para ganhar espaço no competitivo mercado de trabalho do país.

Algumas províncias começaram a subsidiar os pais que estiverem dispostos a ampliar a família, assim como já é feito em vários outros países preocupados com a queda de natalidade, da Suécia ao Japão. Por outro lado, o acesso ao aborto tem ficado mais restrito. O motivo inicial foi justo: a necessidade de reduzir o desequilíbrio de gêneros. Como em várias regiões os bebês do sexo masculino eram mais valorizados, casais recorriam ao aborto voluntário quando descobriam que teriam uma menina. Com o declínio populacional, o governo agora quer dificultar a prática do aborto em geral.

A melhora no atendimento às mulheres no sistema de saúde chinês também se refletiu no direito reprodutivo. O índice de mortalidade materna caiu de 89 para 16,9 em cada cem mil nascimentos entre 1990 e 2020. No entanto, as disparidades e desigualdades permanecem, segundo um relatório do Fundo de Populações da ONU. Da mesma forma com que no Brasil as restrições ao aborto representam um risco maior às mulheres pobres, sem condição de pagar um procedimento seguro, na China escapava da política do filho único quem podia pagar.

Um dos casos mais famosos foi o do aclamado diretor de cinema Zhang Yimou, que teve sete filhos mas pagou multa de mais de US$ 1 milhão e não perdeu prestígio. Depois de dirigir a inesquecível abertura da Olimpíada de Pequim, em 2008, Zhang voltou a ocupar o mesmo cargo nos Jogos de Inverno, em 2022.

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