Com o recorde mundial e o ouro conquistados nos 100m livre, o nadador chinês Pan Zhanle transformou-se instantaneamente num dos grandes nomes da Olimpíada de Paris. Sua chegada na final, com um corpo de vantagem sobre o segundo colocado, foi tão assombrosa que Brett Hawke, treinador do australiano que levou a prata, chamou o feito de “humanamente impossível”.
Em outro contexto até poderia ser um grande elogio. Mas não no momento atual de tensão geopolítica e com o clima de desconfiança que havia em torno dos nadadores chineses. Façanhas sobre-humanas estão entre o que há de mais memorável nas Olimpíadas. Não só as vitórias, mas também os exemplos de superação. Um dos momentos mais famosos da história olímpica é a chegada da suíça Gabriela Andersen-Schiess em 1984, que completou a maratona à beira do colapso físico em Los Angeles.
Ao usar a expressão “humanamente impossível”, Hawke evocou nos chineses um estigma racial que vem de longe na memória coletiva do país. O treinador insinuava que o triunfo de Pan só teria sido possível graças ao uso de drogas, mesmo após o campeão ter passado por uma exaustiva série de testes antes dos Jogos. “Se parece bom demais para ser verdade, provavelmente é”, alfinetou o treinador australiano.
Talvez não tenha sido a intenção, mas o termo escolhido por Hawke evocou a desumanização que há no racismo histórico cultivado no Ocidente. Ele vem de longe, desde os tempos do “perigo amarelo” propagado por países europeus a partir do século XIX, e voltou a ressurgir com força na pandemia de Covid, quando chineses sofreram discriminação e ataques pelo mundo, acusados de serem responsáveis pelo vírus. Em Paris, a delegação chinesa desembarcou marcada pela suspeita de doping.
O que causou revolta entre muitos atletas foi o suposto acobertamento pela Agência Mundial Antidoping (WADA, na sigla em inglês) de um caso envolvendo 23 nadadores chineses. Eles testaram positivo para uma substância proibida sete meses antes da Olimpíada de Tóquio-2021, mas foram liberados para disputar os Jogos. O caso só ficou conhecido graças a uma investigação conjunta da TV alemã ARD e do jornal New York Times. Onze dos 23 estão nos Jogos de Paris. A WADA aceitou o argumento de que os nadadores ingeriram a substância sem querer, provavelmente em alimentos contaminados.
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Segundo o Comitê Olímpico Internacional, os nadadores foram testados mais de 600 vezes desde janeiro, muito mais que atletas de qualquer outro país, sem nunca dar positivo. Pan Zhanle, o fenômeno vencedor dos 100m livres, foi ignorado ao cumprimentar atletas dos EUA e da Austrália. É uma variante da hostilidade política dos países em relação à China, que não deveria se estender ao esporte. A tensão geopolítica tende a confundir a linha que separa a crítica legítima do preconceito.
Outro episódio que chamou a atenção envolveu a tenista Zheng Qinwen, vencedora de um ouro inédito na competição feminina. Após ser derrotada, a americana Emma Navarro disse ao cumprimentar Zheng que “não a respeitava como competidora”. Pegou mal. Para muitos fãs, incluindo nos EUA, o comentário soou como superioridade racial. Já nas redes sociais chinesas, virou um conto de Cinderela, o triunfo da perseverança sobre a arrogância: Zheng, tirada de casa aos sete anos para treinar longe da família, contra a patricinha nascida em berço de ouro, filha de um banqueiro bilionário.