Míriam Leitão
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Míriam Leitão

O olhar único que há 50 anos acompanha o que é notícia no Brasil e no mundo

Informações da coluna

A economista italiana Mariana Mazzucato participou na manhã desta segunda-feira, no Rio, do " States of the Future", evento paralelo do G20 Brasil, em que falou do desafio do Brasil e de outros países para caminhar rumo a um desenvolvimento sustentável. Copresidente do Grupo de Peritos do Grupo de Trabalho do G20 para uma Mobilização Global contra as Mudanças Climáticas, Mariana é professora na University College London, Diretora Fundadora do Instituto para Inovação e Propósito Público – IIPP. Citada nominalmente pelo Papa Francisco, em 2020, como uma das pessoas que poderiam ajudar a pensar o futuro, a economista conhece bem os desafios brasileiros. Ela foi uma das conselheiras sobre a estratégia industrial e de inovação do Brasil no governo da presidente Dilma Rousseff, 2015, e trabalha desde o ano passado com o governo Lula na sua agenda de transformação do Estado.

Nessa entrevista que concedeu ao blog, Mariana conta que o Brasil não seguiu todas as suas recomendações na nova política industrial lançada pelo governo, mas afirma que "a agenda de transformação econômica do Brasil tem um enorme potencial porque visa explicitamente alinhar o crescimento econômico, as metas climáticas e a inclusão".

A economista destaca que desenvolvimento sustentável exige a reforma das finanças globais para garantir que todos os países tenham espaço fiscal para responder à crise climática e para investir em estratégias industriais verdes. E diz que quando se fala em financiamento, não se trata apenas de cifras, mas da qualidade do crédito;

- A forma como as finanças públicas estão estruturadas determina onde os investimentos são feitos, o que é financiado e quem beneficia.

Sobre o apagão da última sexta-feira, a pesquisadora afirma que é preciso combater o pode do monopólio digital e fortalecer o papel do governo na concepção, desenvolvimento e gestão de infraestruturas públicas digitais.

Quando começou a sua aproximação com o Brasil?

Fui convidada para ser uma das conselheiras na construção da estratégia industrial e de inovação do Brasil no governo da presidente Dilma Rousseff, 2015, trabalhei com o ministro Aldo Rebelo, que era ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação na época. Em 2016, publiquei um relatório sobre como projetar agências de inovação do Brasil para serem orientadas para missões: "O Sistema Brasileiro de Inovação: Uma Proposta de Política Orientada para Missões". Meu envolvimento com o governo do Brasil também se concentrou no desenho das finanças públicas, por exemplo, através de compromissos com o BNDES.

Outro foco tem sido a saúde. Em setembro passado, lancei a tradução para o português do relatório final do Conselho de Economia da Saúde para Todos da Organização Mundial da Saúde (OMS), ao qual presidi, " Saúde para Todos: Transformando economias para entregar o que importa", ao lado de líderes governamentais, incluindo a ministra da Saúde brasileira, Nísia Trindade Lima.

Como começou essa parceria entre seu instituto e a gestão do presidente Lula? A senhora firmou parceria com o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos do Brasil, o que poderia dizer que já avançou? Existe um novo relatório sobre o caminho que você pode antecipar?

O Ministério de Gestão e Inovação (MGI) do Brasil procurou o Instituto UCL de Inovação e Propósito Público (IIPP), que fundei e dirijo, para buscar apoio no desenvolvimento de sua agenda de transformação do estado. O IIPP trabalha com parceiros governamentais sobre como implementar estratégias ambiciosas que alinhem os objetivos econômicos, sociais e ambientais. Nossa colaboração com a MGI começou em julho de 2023 com foco na construção das capacidades do setor público necessárias para implementar a ambiciosa agenda de transformação econômica do Brasil - incluindo sua estratégia industrial e plano de transição ecológica.

Divulgamos um relatório inicial em dezembro de 2023 sobre "Crescimento inclusivo e sustentável impulsionado pela inovação: desafios e oportunidades para o Brasil". O nosso próximo relatório, que será divulgado no próximo inverno, centrar-se-á nas mudanças específicas que possam ser necessárias na concessão dos contratos públicos, na governação das empresas estatais e na concessão e governação da infraestrutura pública digital para apoiar a implementação desta agenda. Este projeto é financiado por uma organização filantrópica terceirizada, Open Society Foundations. Também estamos trabalhando com a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) para oferecer um programa de aprendizagem aplicada que ajudará a capacitar o serviço público.

Este projeto baseia-se em um relatório que escrevi com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) da ONU em 2022 sobre "Mudança Transformacional na América Latina e no Caribe: Uma abordagem orientada para a missão."

No Brasil, temos incêndios destruindo o bioma Cerrado, secas nos rios amazônicos, enchentes no Sul, parece que até agora os governos não agiram para garantir o desenvolvimento sustentável. Qual o caminho para garantir uma estratégia de desenvolvimento sustentável?

O desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo exige que os governos redesenhem fundamentalmente a economia para trabalhar para as pessoas e para o planeta. Isto requer uma estratégia industrial verde. Embora a estratégia industrial se concentre tradicionalmente na escolha de setores específicos a apoiar, a estratégia industrial moderna deve catalisar o investimento intersetorial e a inovação direcionados para a resolução de grandes desafios como as alterações climáticas. Esta abordagem – “estratégia industrial orientada para missões” – pode ajudar os países a transformar as suas economias para alcançarem as suas metas de Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). Mas requer uma abordagem de todo o governo.

Por exemplo, responder à crise climática não envolve apenas energias renováveis. Deve também incluir a transformação da forma como nos movemos (mobilidade sustentável), como construímos (infraestruturas verdes) e como comemos (alimentos sustentáveis). As alterações climáticas não dizem respeito apenas aos ministérios do Meio Ambiente ou de Energia. Todos os ministérios devem contribuir, incluindo os ministérios relacionados às finanças e os bancos centrais.

O desenvolvimento sustentável também exige a reforma das finanças globais para garantir que todos os países tenham espaço fiscal para responder à crise climática e para investir em estratégias industriais verdes. De acordo com a UNCTAD, estima-se que é necessário mobilizar anualmente cerca de US$ 4 bilhões para combater as alterações climáticas e alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – uma grande lacuna, mas que representa apenas cerca de 1% do total dos ativos financeiros globais.

É importante, porém, nos concentrarmos não apenas na quantidade de financiamento, mas também na sua qualidade. As finanças não são neutras. A forma como as finanças públicas estão estruturadas determina onde os investimentos são feitos, o que é financiado e quem beneficia. Para impulsionar o crescimento verde, é necessário um financiamento a longo prazo. Os bancos públicos de desenvolvimento, apoiados por bancos de desenvolvimento multilaterais orientados para missões, desempenham um papel vital no fornecimento do financiamento a longo prazo que é necessário, mas devem mudar a sua mentalidade de “reduzir o risco” do financiamento privado para partilhar riscos e recompensas com o setor privado, investidores e adotar mandatos claros e orientados para a missão, centrados em direcionar o financiamento para responder a desafios como a crise climática.

Por último, enfrentar a crise climática exige mudanças na governança global para garantir que a equidade esteja integrada na forma como as estratégias industriais são implementadas e como o financiamento é concebido. O G20 tem um papel vital a desempenhar na liderança de uma abordagem mais robusta à cooperação e coordenação globais, para permitir uma transição justa e verde para todos os países.

A Dra. Vera Songwe e eu, como copresidentes do Grupo de Peritos do G20 do Grupo de Trabalho para uma Mobilização Global contra as Alterações Climáticas, publicaremos um relatório neste outono com recomendações específicas para os estados do G20 em cada uma destas três áreas.

O Brasil pode realmente desempenhar um papel de liderança neste movimento global de transição para uma economia mais sustentável ou esta é mais uma alegoria do “Brasil como o país do futuro”? Como a senhora avalia o plano de transição econômica brasileiro, estamos sendo ousados?

A agenda de transformação econômica do Brasil tem um enorme potencial porque visa explicitamente alinhar o crescimento econômico, as metas climáticas e a inclusão. O Brasil já tem um histórico de fazer isso em áreas-chave. A aquisição das refeições escolares, por exemplo, tem sido utilizada tanto para alimentar as crianças como para criar uma oportunidade para as empresas agroalimentares, contribuindo assim para objetivos sociais e econômicos.

Da mesma forma, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde do Brasil alavancou compras públicas e “Parcerias de Desenvolvimento Produtivo” – que incluem acordos de transferência de tecnologia – para melhorar o acesso a produtos de saúde prioritários para o povo do Brasil, ao mesmo tempo que construiu a base de produção do país para produtos farmacêuticos.

No entanto, estes exemplos precisam de ser sistematizados de forma generalizada, com objetivos ousados ​​​​e claros em torno dos quais a ação interministerial seja coordenada. Atualmente – tal como outros países – existem desafios relacionados com a cooperação interministerial que impedem esta agenda. O Brasil tem a vantagem de uma série de instituições, como o BNDES, que pode ajudar a implementar esta agenda. Nem todos os países têm isso. Para ter sucesso, o governo deve aproveitar e alinhar todo o conjunto de ferramentas e instituições do setor público à sua disposição.

Como em outros países, existe também o risco de que suposições ultrapassadas possam inibir o papel do Estado na formação dos mercados e na orientação do crescimento econômico. Será, por exemplo, vital garantir que a estratégia industrial do Brasil se concentre na catalisação da inovação e do investimento intersetorial destinado a resolver grandes desafios como as mudanças climáticas, e não regredir ao antigo modelo centrado em setores.

Também é importante evitar o risco de captura. Uma agenda de transformação econômica do governo deve ser concebida e governada para alcançar objetivos ambiciosos em matéria de clima e inclusão e para maximizar o valor público; deve evitar a captura por interesses privados.

Em julho do ano passado, em palestra em Brasília, a senhora falou sobre as missões identificadas pelo governo brasileira, que vão de cadeias agroindustriais digitais e sustentáveis ​​para erradicar a fome; sistema de saúde resiliente; infraestrutura sustentável para integração produtiva; transformação digital da indústria; descarbonização da indústria, habitação e mobilidade sustentáveis ​​para o bem-estar nas grandes cidades. Desde então, como a senhora avalia o progresso do Brasil nessas missões?

Com minha equipe do Instituto UCL de Inovação e Propósito Público, aconselhei o Governo do Brasil na concepção de sua estratégia industrial. Mais tarde, o governo adotou uma abordagem orientada para a missão, informada pelo meu trabalho. Convoquei um workshop juntamente com o MGI em Setembro de 2023 centrado em como promover uma coordenação interministerial mais profunda para permitir a implementação bem sucedida desta estratégia. Este workshop contou com a participação de altos representantes governamentais de vários ministérios – incluindo os ministérios da Fazenda; Desenvolvimento, Indústria e Comércio; Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação; Casa Civil; Gestão e Inovação; Saúde; e Meio Ambiente e Mudanças Climáticas.

Publiquei um relatório, "Crescimento inclusivo e sustentável impulsionado pela inovação: desafios e oportunidades para o Brasil", que recomendava uma abordagem orientada para a missão que ajudaria a operacionalizar a visão ousada do governo, coordenando todos os ministérios, bem como diferentes níveis de governo, em torno de objetivos partilhados e estimulando o investimento e a inovação em todos os setores. Recomendamos que cada missão estabeleça um objetivo claro, inspirador, mensurável, ambicioso e orientado para desafios que exija o envolvimento de múltiplos ministérios e múltiplos sectores

Embora a Nova Estratégia Industrial do Brasil não siga inteiramente os nossos conselhos, ela tem um potencial real. Os maiores obstáculos à concretização deste potencial incluem o risco de reverter para uma abordagem setorial em vez de uma abordagem orientada para missões, e de não conseguir alcançar a coordenação interministerial necessária para a implementar.

O governo também terá de garantir que a colaboração público-privada necessária para implementar a sua estratégia industrial seja estruturada para maximizar o valor público e não apenas o valor privado. Podem fazê-lo estabelecendo fortes condições para o acesso do setor privado ao financiamento governamental e outros benefícios para, por exemplo, garantir que os produtos e serviços resultantes sejam amplamente acessíveis e economicamente acessíveis, para partilhar os lucros, para exigir o reinvestimento dos lucros em I&D e na formação dos trabalhadores. E evitar que os lucros sejam aplicados em recompras de acionistas e garantir o alinhamento da missão.

Seus estudos demonstram que o investimento público, principalmente as compras públicas, pode ser motor do desenvolvimento da inovação. Quão difícil é implementar isso na prática? Que países já estão efetivamente a utilizar este instrumento para mudar as suas mentalidades económicas?

Os contratos públicos podem ser uma poderosa alavanca do lado da procura para moldar oportunidades de mercado que funcionam como um estímulo à inovação e ao investimento alinhados com as prioridades políticas governamentais. Mas muitas vezes, em vez de utilizarem as aquisições de forma estratégica, os governos concentram-se apenas na gestão de custos e riscos reduzidos. Precisamos de uma nova economia de compras que se concentre, em vez disso, na maximização do valor público.

Na Suécia, por exemplo, a aquisição de refeições escolares saudáveis, saborosas e sustentáveis ​​cria simultaneamente uma oportunidade de mercado para as empresas agroalimentares, proporcionando às crianças alimentos saudáveis ​​e descarbonizando as cadeias de abastecimento. Recentemente, a minha equipa e eu trabalhámos com o bairro londrino de Camden para redesenhar de forma colaborativa a sua política de aquisições para alinhá-la com as suas “Missões de Renovação”.

Em tempos de guerra ou de crise – incluindo a recente pandemia de Covid-19 – os governos mudam a forma como utilizam as aquisições para cumprir rapidamente os objetivos políticos. Esta utilização estratégica dos contratos públicos precisa de ser normalizada fora de tempos de crise.

A pandemia de Covid-19 mostrou as fragilidades dos governos, como a senhora destacou à épocaConsidera que os Estados estão a sabendo aproveitar a oportunidade de mudança que esta crise nos oferece? Vê mudanças significativas em algum país? Se sim, onde isso está acontecendo?

Durante a pandemia de Covid-19, os governos compreenderam a necessidade de agir de forma ambiciosa e rápida para moldar os mercados para enfrentar a crise, mas este entendimento não durou para além da crise. No entanto, é notável que a resposta à pandemia não refletiu o fato de uma pandemia ser inerentemente um desafio global e, portanto, exigir que a equidade global esteja no centro da resposta. Em vez disso, os países de rendimento elevado agiram em defesa dos seus interesses nacionais e o nacionalismo das vacinas prolongou, portanto, a crise com enormes consequências para as economias e para a vida das pessoas em todo o mundo.

Esta é uma lição fundamental à qual os líderes devem prestar atenção quando se reunirem para as reuniões do G20 desta semana. Reconhecer que desafios como as pandemias, a crise climática e a crise hídrica são globais e exigem colaboração A estratégia industrial de um país, por exemplo, não deve ser concebida para permitir que um país alcance uma transição verde, evitando ao mesmo tempo que outros países o façam. Significa garantir que todos os países tenham o espaço fiscal necessário para fazer estes investimentos. E isso significa construir capacidade de produção distribuída.

No meu trabalho como copresidente da Comissão Global sobre a Economia da Água, analiso a cooperação global necessária para enfrentar a crise hídrica global. O ciclo hidrológico global, do qual depende toda a vida, está em risco e nenhum país pode enfrentar este desafio sozinho. As atividades num país têm impacto nas chuvas ou na seca em outros.

Você diz que o capitalismo precisa ser mais inclusivo, a inclusão é um requisito para garantir o crescimento. Enquanto isso, cresce no mundo a extrema direita que prega exatamente a exclusão, a discriminação e que os países devam focar apenas nas suas questões internas. Vivemos num mundo que já é bastante desigual e enfrenta enormes desafios climáticos. Como pode um mundo assim sobreviver a esta crescente força política negacionista?

Enquanto houver desigualdade, haverá populismo. Esta é uma das razões pelas quais o crescimento inclusivo é importante.

Mudando um pouco de assunto: na semana passada tivemos uma falha cibernética em uma empresa que levou a um apagão global. O mundo inteiro também discute os males sociais causados ​​pelos algoritmos e pelas redes sociais. É hora de repensar este mundo hiperconectado? Qual é o caminho?

As plataformas digitais devem ser concebidas e geridas no interesse do bem comum. Algumas das minhas investigações recentes centraram-se nas respostas regulamentares necessárias para combater o poder e as rendas do monopólio digital, bem como no papel do governo na concepção, desenvolvimento e gestão de infraestruturas públicas digitais para maximizar o seu valor público.

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