Segredos do crime
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Segredos do crime

Histórias policiais, investigações e bastidores dos crimes

Informações da coluna

Vera Araújo

Jornalista investigativa há 30 anos e autora de "Mataram Marielle" e "O Plano Flordelis: Bíblia, Filhos e Sangue". Passou por "Jornal do Brasil" e "O Dia"

Na delação do ex-sargento da Polícia Militar, Ronnie Lessa, assassino confesso da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, relata a preocupação dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, suspeitos de serem os mandantes do crime, em devolver a submetralhadora HK MP5 "para o mesmo lugar" de imediato. Para Lessa, a arma apontada pelos peritos como a utilizada no duplo homicídio, pertenceria a algum órgão específico, mas não informou qual.

Lessa diz que Arma usada no crime era legal

Lessa diz que Arma usada no crime era legal

Lessa conta que, no terceiro e último encontro dele e o amigo, o sargento reformado da Polícia Militar, Edmilson Oliveria da Silva, o Macalé, com os Brazão, Domingos logo lhes exigiu a devolução da submetralhadora. Macalé, diz o ex-PM em sua delação, era o intermediário das tratativas para o assassinato de Marielle entre ele e os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio (TCE-RJ) e deputado federal, respectivamente.

Num trecho da delação, Lessa relata a conversa deles nesse encontro: "Quando ele diz que o Rivaldo (Barbosa, ex-chefe de Polícia Civil) tem que dar um jeito, de qualquer jeito. Quando a gente está entrando no carro, ele olha o Macalé e diz: 'ô negão, tem que devolver o negócio (arma) lá, vai logo lá, o cara tem que colocar no lugar. Macalé rebate ele: 'ô padrinho (Domingos), isso tem que ir direto para o lixo! Tem que jogar isso fora!". O encontro, segundo o delator, ocorreu numa rua escura, perto do Hotel Transamérica, na Barra da Tijuca, em que os irmãos sequer saíram do carro deles. Não havia câmeras no local.

Mas, segundo o delator, o conselheiro retruca: 'Isso tem que voltar para o lugar'. Lessa explica aos policiais federais e promotores do Ministério Público do Rio (MPRJ), durante a primeira parte da delação, o que entendeu da conversa: "A arma tinha que voltar para o lugar. Ali deixou transparecer que era um acerto, era carga de algum lugar, ela (arma) estava relacionada a algum lugar". Segundo o ex-militar, em dois ou três dias, a submetralhadora fora entregue na favela Rio das Pedras ao ex-assessor de Domingos no TCE-RJ, Robson Calixto Fonseca, o Peixe, pois o trato, desde o primeiro encontro, era de que ela teria que ser devolvida logo.

Domingos e Chiquinho, Rivaldo Barbosa e Peixe foram presos em 24 de março deste ano, um domingo, na Operação Murder Inc. da Polícia Federal. Os três primeiros são acusados de serem os mandantes, sendo Rivaldo descrito como "mentor intelectual". Os quatro estão em presídios federais, separados, em unidades espalhadas pelo país. Já Macalé foi assassinado em 2021, na Zona Oeste do Rio.

Sumiço de submetralhadora

A submetralhadora HK MP5 usada para matar Marielle e Anderson nunca apareceu. Apesar de a Polícia Federal periciar dezenas de armas do mesmo modelo da usada no crime, utilizadas pelas forças de segurança do Rio, nenhuma bateu com as características exatas da submetralhadora que Lessa utilizou. No entanto, a delação dele traz indícios de que ela fora retirada do paiol de algum órgão ligado à segurança pública, caso contrário, ele não teria dito que ela estava "relacionada a algum lugar".

Em investigações feitas por repórteres do GLOBO, logo após o crime, levantou-se que as submetralhadoras HK MP5 eram empregadas no Rio, especificamente, por equipes do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil em escolta de presos ou incursões cirúrgicas a comunidades conflagradas. Na época do crime, as HK MP5 da Polícia Civil ficavam acauteladas na Coordenadoria de Fiscalização de Armas e Explosivos (CFAE). A Polícia Federal também tem algumas em seu arsenal.

Érika Andrade e Rivaldo, delegado do caso Marielle Franco — Foto: reprodução
Érika Andrade e Rivaldo, delegado do caso Marielle Franco — Foto: reprodução

A informação de Lessa sobre a recolocação da arma em "algum lugar", ordenada por Domingos, sugere o acautelamento dela num paiol da polícia, inclusive, naqueles que guardam armamento apreendido. Quando fala sobre o assunto na delação, o assassino confesso cita que Domingos teria comentando antes de exigir a devolução da arma: "Rivaldo tem que dar um jeito".

No relatório complementar da Polícia Federal sobre as investigações do duplo homicídio, assinado pelo delegado federal Guilhermo de Paula Machado Catramby, consta que há "indícios veementes" da atuação de Erika Andrade de Almeida Araújo, esposa do ex-chefe de Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, para obter vantagens indevidas utilizando agentes públicos, supostamente, policiais civis. De acordo com o documento, ela seria a intermediária de Rivaldo "para viabilizar" a regularização de blindagens de carros de um cliente, por meio da empresa que consta em seu nome na Junta Comercial: Armis Consultoria Empresarial Eireli. O documento conhecido como "nada opor", necessário para autorização da blindagem, é emitido pela CFAE da Polícia Civil.

Acusados de mandar matar Marielle Franco, irmãos receberam maior honraria da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro — Foto: Domingos Peixoto/O Globo e Mario Agra/Câmara dos Deputados
Acusados de mandar matar Marielle Franco, irmãos receberam maior honraria da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro — Foto: Domingos Peixoto/O Globo e Mario Agra/Câmara dos Deputados

Foi a extração de dados no celular de Erika, apreendido na operação da PF em março, que trouxe os indícios sobre o suposto uso de mão de obra de servidores públicos da CFAE no negócio particular do casal. No dia 11 de fevereiro de 2019, o cliente envia uma mensagem para Érika informando que irá blindar um de seus veículos e pede um "nada a opor da PC". Ele pergunta se precisa enviar os documentos para Erika. Segundo o relatório da PF, em outra conversa com a mulher de Rivaldo, no dia 27, o cliente conta que fez contato com "uma despachante", cuja orientação foi de que não havia necessidade do "nada opor", pois ele já havia feito outras blindagens antes.

Diante disso, o delegado da PF elabora algumas perguntas no relatório: "Se Erika não era a pessoa que possuía o domínio dos conhecimentos técnicos e burocráticos necessários para orientar o cliente, por qual motivo ele a procurou? O que Erika oferecia que um despachante qualificado na área não poderia ofertar?

Segundo o relatório, Erika explicou ao cliente que "cobraria" (exigiria) a liberação da documentação, o que, no entendimento do investigador, ela tinha "certo grau de ingerência dentro desse setor da PCERJ (Polícia Civil) responsável pela emissão de documentação envolvendo blindagem de veículo e transferência de propriedade". O CFAE é o órgão que também tem como atribuição acautelar as armas da instituição, assim como as apreendidas nas mãos de criminosos.

Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes — Foto: Reprodução
Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes — Foto: Reprodução

Uma análise dos relatórios do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), feita pelos agentes federais, com as transações bancárias vinculadas à empresa de Erika, revela que os depósitos do cliente da blindagem do veículo, no período de 23/02/2018 a 23/12/2019, totalizaram R$ 138 mil. O documento ressalta que foi no ano de 2018 que Rivaldo foi chefe de Polícia Civil.

Rivaldo Barbosa foi nomeado chefe de Polícia Civil um dia antes do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, ocorrido em 14 de março de 2018. Ele ficou no cargo até o fim daquele ano, quando a Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) já investigava Ronnie Lessa como suspeito da morte da parlamentar, preso em março de 2019.

Edimilson Oliveira, o Macalé, foi executado em  Bangu, em 2021. — Foto: Reprodução
Edimilson Oliveira, o Macalé, foi executado em Bangu, em 2021. — Foto: Reprodução

Por meio de nota, a Polícia Civil informou haver 55 submetralhadoras HK MP5 no seu depósito, que continuam em uso. E prossegue: "Todas elas foram acauteladas e periciadas. Como a investigação não apontou qualquer relação das armas com o crime, elas voltaram a ser usadas pelos agentes. Em 2011, a instituição realizou um recadastramento das armas. Na época, quatro armas deste modelo foram consideradas extraviadas. Desde então, uma delas foi recuperada e periciada".

Sobre os policiais civis do CFAE, supostamente empregados pelo ex-chefe de Polícia Civil em serviços particulares, a assessoria da corporação informou que, de acordo com a Corregedoria-Geral de Polícia Civil (CGPOL), há um inquérito em andamento para apurar a conduta do servidor. Esclareceu ainda que "desde que deixou de ser chefe de Polícia, ele não tinha qualquer influência sobre a instituição". A assessoria acrescentou ainda que, "em relação à suposta situação citada, esta não é uma atribuição da Coordenadoria de Fiscalização de Armas e Explosivos (CFAE) desde agosto de 2019".

O blog descobriu que, durante as investigações da Polícia Federal para se chegar aos mandantes, os agentes federais só periciaram duas submetralhadoras acauteladas no CFAE, porque a Polícia Civil apresentou um laudo com a análise das demais, descartando o uso delas no crime.

Procurados, os citados mandaram as seguintes notas:

Pela defesa do delegado Rivaldo Barbosa e de Erika Andrade, os advogados Marcelo Ferreira e Felipe Dalleprane esclareceram: "Os fatos que vieram a tona por ocasião do Relatório Complementar Final não tem nenhuma ligação com o assassinato de Anderson e Marielle. Conforme consta no próprio relatório, essa matéria é antiga e alvo de apuração pelo MPRJ em um Procedimento de Investigação Criminal (PIC). Essa circunstancia, por si só, revela que a PF está totalmente desorientada em relação a autoria intelectual do assassinato e tenta minar a conduta inquestionável de Rivaldo no momento em que o trabalho ineficaz da Polícia Federal está sob severas críticas.

Vale dizer que não há uso da estrutura da Administração Pública para beneficiar interesses pessoais de Rivaldo e Erika. As empresas desempenhavam efetivamente e dentro da legalidade sua atividade econômica, sem qualquer influência sobre servidores públicos. A participação de Rivaldo nessas atividades é legal e, portanto, não existe conduta típica."

Os advogados Marcio Palma e Roberto Brzezinski, que defendem Domingos Brazão, informaram: "Acerca do novo relatório apresentado pela Polícia Federal no âmbito do procedimento que apura o homicídio da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, seu conteúdo afasta-se do objeto das investigações e reforça, mais uma vez, a ausência de elementos que sustentem a hipótese acusatória."

O advogado de Chiquinho afirma que a delação é uma “desesperada criação mental na busca de benefícios e que são muitas as contradições, fragilidades e inverdades”. Já a de Rivaldo disse que ele nunca esteve com os supostos mandantes.

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