Segredos do crime
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Segredos do crime

Histórias policiais, investigações e bastidores dos crimes

Informações da coluna

Vera Araújo

Jornalista investigativa há 30 anos e autora de "Mataram Marielle" e "O Plano Flordelis: Bíblia, Filhos e Sangue". Passou por "Jornal do Brasil" e "O Dia"

A chuva que caiu na madrugada do dia 21 de novembro de 1994 poderia ajudar na produção de provas para elucidar o homicídio do vice-presidente da Bradesco Seguros Rogério Dantas Freire, de 64 anos. O inspetor Jamil Warwar, chamado para descobrir quem disparou um único tiro à queima-roupa no ouvido direito da vítima, logo imaginou a possibilidade de identificar o autor do crime pela pegada no quarto. O caso é o segundo da trilogia Agente Elementar, de histórias que parecem saídas dos romances policiais, mas aconteceram de verdade. O GLOBO começou a publicar a série no domingo passado, com o Caso Cláudia Lessin, e o último capítulo será no dia 26.

O executivo foi assassinado enquanto dormia, às 3h05, no número 193 da Rua Alberto de Campos, em Ipanema, na Zona Sul do Rio. Para Warwar, a perícia na cena do crime trouxe um “resultado esdrúxulo”. Motivo: várias pessoas passaram pelo local, mas o laudo só constatou pegadas da esposa da vítima, Luciana Isabel da Silveira Freire.

Mortes em série: do executivo do Bradesco à execução de esposa e de amante

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Por meio de outras provas, principalmente de testemunhos, o experiente detetive apontou Luciana, então com 56 anos, e o amante, o pedreiro Walter de Souza Ouverney, de 37, como mandantes. Segundo o investigador, o casal contratou um policial militar para executar Freire. Com a morte do marido, Luciana tinha direito a receber 75% dos R$ 570 mil do seguro de vida dele; o restante seria dividido entre os três filhos, que renunciaram em favor da mãe. Também havia um patrimônio de R$ 2,5 milhões.

Luciana Isabel da Silveira Freire, de 58 anos, suspeita de ser a mandante, com o advogado Albino da Silva — Foto: Domingos Peixoto/arquivo/Agência Globo
Luciana Isabel da Silveira Freire, de 58 anos, suspeita de ser a mandante, com o advogado Albino da Silva — Foto: Domingos Peixoto/arquivo/Agência Globo

Em seus 87 anos, Warwar conta que já investigou mais de 2 mil casos em mais de 40 anos de profissão. O resultado foram os convites que recebeu, ao longo da carreira, inclusive para fazer fotonovelas quando o assunto tinha como base uma investigação policial. No entanto, o detetive diz que nem de longe os folhetins se aproximam da realidade do cotidiano. O assassinato de Freire, um CEO — quando a palavra sequer era usada à época — da Bradesco Seguros, ganhou repercussão nacional. O desdobramento do caso ainda seria mais trágico.

Morto no quarto

Casados há mais de quatro décadas, com filhos bem-sucedidos, Rogério e Luciana viviam em aparente harmonia. Na verdade, o casal estava se divorciando e já dormia em quartos separados. No dia do crime, um domingo, a rotina havia sido quebrada pela esposa. Nos últimos oito anos, ela viajara todos os fins de semana para Cachoeiras de Macacu, na Região Metropolitana do Rio, saindo às sextas e retornando às segundas-feiras. Mas, naquele fim de semana, a mulher do executivo retornou um dia antes. O fato foi relatado em depoimento a Warwar pela cozinheira da casa, Idalina Maria de Jesus, então com 59 anos — o blog teve acesso ao depoimento no processo arquivado no Acervo do Tribunal de Justiça.

Walter Ouverney, amante de Luciana Freire, suspeito de ser mandante, com o advogado na delegacia — Foto: Chiquito Chaves/arquivo/Agência Globo
Walter Ouverney, amante de Luciana Freire, suspeito de ser mandante, com o advogado na delegacia — Foto: Chiquito Chaves/arquivo/Agência Globo

Por volta das 19h de domingo, a empregada, que dormia no local de trabalho, viu o casal lanchando na cozinha. Três horas após a cena, Idalina foi dormir. Só a patroa continuava acordada. Às 3h05 da manhã, a cozinheira despertou com o barulho de um único tiro. Assustada, abriu a janela do quarto e viu tudo calmo do lado de fora. O som veio de dentro do apartamento.

Jamil Warwar investigou o homicídio do vive-presidente do Bradesco Seguros Rogério Dantas Freire, ocorrido em novembro de 1994 — Foto: Fernando Lemos
Jamil Warwar investigou o homicídio do vive-presidente do Bradesco Seguros Rogério Dantas Freire, ocorrido em novembro de 1994 — Foto: Fernando Lemos

Do quarto, Idalina viu a luz da cozinha acesa e, ao se aproximar, assustou-se. Ela contou que Luciana estava de costas para ela quando a observou fechando a porta da cozinha, devagar, por onde passava “um homem de cor preta, estatura mediana, forte, corte (de cabelo) rente ao couro cabeludo, trajando jaqueta jeans desbotada”. Segundo a empregada, a patroa ficou bastante nervosa ao ser flagrada. E prossegue dizendo que Luciana sentou-se no sofá da sala de TV, lhe pediu um copo com água e disse: “mataram meu marido”.

Idalina contou ainda que Luciana a agarrou e pediu que ela a acompanhasse até o quarto do marido. E perguntou: “Será que ele morreu? Vamos ver se ele está morto”. Estranhando o pedido, a cozinheira se recusou. Da porta do quarto da vítima, ela o viu de bruços, com os braços ao lado do corpo coberto até a metade, além de sangue no chão. Desconfiada, Idalina não aceitou sequer os remédios tarja preta que Luciana lhe ofereceu.

Jamil Warwar foi personagem de fotonovelas na década de 90 — Foto: Simone Marinho/Agência O GLOBO
Jamil Warwar foi personagem de fotonovelas na década de 90 — Foto: Simone Marinho/Agência O GLOBO

A polícia foi acionada; Warwar lembra de ter sido um dos primeiros a chegar.

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— Sempre seguindo o raciocínio da lógica, imaginei que, como o dia era chuvoso, a pegada do assassino poderia estar por ali. Mas como o resultado desses exames demorava, fui ouvindo as testemunhas ali mesmo no apartamento. A empregada era muito segura, evangélica. Disse que viu a patroa fechando a porta para um homem sair do local — relembra o investigador. — Desconfiei que a esposa da vítima tinha um amante, o que se confirmou. Enquanto todos caíam em contradições, só quem seguiu firme era a cozinheira. Ela chegou a ser ameaçada de morte para não confirmar o que me disse.

Idalina ainda revelou, em depoimento na delegacia, que a outra empregada, Tereza Batista, da mesma idade de Luciana, lhe disse que ela deveria ter falado que não viu nada. Por trabalhar há 27 anos com o casal, Tereza passou a ser amiga e confidente da patroa. Luciana conheceu o amante num baile em Cachoeiras de Macacu, município onde viviam duas amigas dela.

Ao tentar rebater a versão de Idalina, Luciana acabava se contradizendo, relembra Warwar. Ao depor, Luciana negou que tivesse acompanhado o assassino até a porta do apartamento. Ela teria dito que foi apenas trancar a porta correndo, por ver uma pessoa sair por ela. Num outro momento, a viúva citou dois criminosos, o que chamou a atenção do inspetor.

Durante as investigações, descobriu-se que Rogério Freire também tinha uma amante, funcionária da Bradesco Seguros, há alguns anos. Em depoimento, o filho mais velho do casal contou que os pais sabiam do relacionamento extraconjugal um do outro e que, inclusive, o executivo deu um apartamento, carro e R$ 60 mil à amante. Ainda segundo este filho, no acordo de divórcio, o pai decidiu deixar 80% dos bens para Luciana. Aos amigos, a mãe teria dito ser justo porque, durante o casamento, ela teria herdado muita coisa de parentes que acabou se misturando ao patrimônio do casal.

Perda em dobro

O homicídio de Freire rachou a família. Com as investigações da Polícia Civil convergindo para Luciana e Walter, os três filhos se afastaram da mãe. Ela passou a viver com Walter. Para a sua defesa, ela contratou os advogados Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Fazenda do governo Lula, e um amigo de infância, Albino da Silva Porto. Este último ficou até o fim do caso.

Em 24 de outubro de 1995, Warwar sofreu um duro golpe: a morte da esposa Célia, vítima de um infarto. Ele se afastou das investigações, mas continuava acompanhando as notícias. Quando soube do laudo da perícia, o que resultou no indiciamento dela e de Walter, o inspetor imaginou que algo aconteceria.

— A perícia concluiu que a autoria era só de Luciana. Foi um grande erro. Era óbvio que o executor faria algo para evitar que o casal o incriminasse — afirmou.

Warwar estava certo. No ano seguinte, Luciana comprou um pequeno sítio em Cachoeiras de Macacu. Ela trocou o apartamento de Ipanema para morar num casebre de quarto, cozinha e banheiro, no meio do mato, com Walter. Em 26 de julho de 1996, dois homens obrigaram Luiz Cláudio Alves, sobrinho do companheiro de Luciana, a revelar onde o casal vivia. Às 21h30 daquele dia, os dois criminosos invadiram a casa e atiraram contra Walter, Luciana e Luiz. Todos com tiros na cabeça. O primeiro ainda foi ferido na coluna cervical. Os executores fugiram com dois cúmplices.

Só Walter sobreviveu. Ficou paraplégico e morreu anos depois. A polícia indiciou integrantes de um grupo de extermínio formado por policiais e ex-PMs de São Gonçalo, mas o caso foi arquivado em 2017, a pedido do Ministério Público, sem os punir. Procurados, os filhos de Luciana e Freire não responderam ao blog.

Com a morte da esposa, Warwar entrou em depressão. Era Célia quem o ajudava a datilografar os relatórios rascunhados por ele. Segundo o inspetor, ele só retomaria ao trabalho meses depois, para novos casos.

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