Segredos do crime
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Segredos do crime

Histórias policiais, investigações e bastidores dos crimes

Informações da coluna

Vera Araújo

Jornalista investigativa há 30 anos e autora de "Mataram Marielle" e "O Plano Flordelis: Bíblia, Filhos e Sangue". Passou por "Jornal do Brasil" e "O Dia"

RESUMO

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GERADO EM: 17/07/2024 - 04:30

Investigação de Lavagem de Dinheiro em Terreno Ligado a Caso Marielle Franco

PF investiga possível lavagem de dinheiro na compra de terreno ligada ao caso Marielle Franco. Transação suspeita envolve empresa de conselheiro do TCE e indícios de grilagem. Coaf analisa o caso. Pedido de inquérito por lavagem de dinheiro. Contexto de usucapião e disputas fundiárias. Valores questionados levantam suspeitas. Explicações da empresa envolvida.

A compra de um terreno de dez mil metros quadrados, no Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste do Rio, por uma empresa do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Domingos Brazão é peça central da investigação do homicídio da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Analisada pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), a transação imobiliária é citada na denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR), com base na investigação da Polícia Federal que aponta indícios “robustos” de grilagem de terras e cita uma possível fraude na negociação do imóvel. Domingos está preso sob a acusação de ser mandante da morte de Marielle, junto com o seu irmão Chiquinho Brazão.

Numa das áreas mais valorizadas da região, próximo ao um shopping e a uma estação do BRT, o terreno teria sido comprado pela empresa de Domingos por R$ 110 mil, em 2013. Na denúncia, a PGR ressalta o fato de a prefeitura do Rio ter avaliado o imóvel em R$ 7,096 milhões para calcular o valor do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), em julho de 2023, quando a escritura foi assinada. O documento só pôde ser registrado após a Justiça dar o usucapião.

Domingos Brazão — Foto: Domingos Peixoto
Domingos Brazão — Foto: Domingos Peixoto

No mês seguinte, o 9º Registro Geral de Imóveis comunicou ao Coaf a transação considerada suspeita, seguindo a normativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2020. Por isso, o conselho verifica se houve prática de lavagem de dinheiro durante a transação imobiliária. Segundo a delação do ex-sargento da Polícia Militar Ronnie Lessa, assassino confesso da parlamentar e do motorista, a motivação do crime foi a questão da regularização fundiária na Baixada de Jacarepaguá.

Diante desses indícios, o responsável pelo inquérito do caso Marielle, o delegado federal Guilhermo Catramby, pediu ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes autorização para instaurar um inquérito para apurar o crime de lavagem de dinheiro contra os irmãos Brazão.

Denúncia da PGR aponta que Domingos Brazão comprou terreno "a preço módico, em claro ajuste com participantes" — Foto: Reprodução de documento
Denúncia da PGR aponta que Domingos Brazão comprou terreno "a preço módico, em claro ajuste com participantes" — Foto: Reprodução de documento

Posse, usucapião e venda

A denúncia da PGR afirma que, enquanto Marielle defendia a legalização de áreas de especial interesse social para famílias com baixa renda, os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão tinham como propósito “favorecer ainda mais os grileiros, especuladores imobiliários e milicianos”.

Terreno de 10 mil metros quadrados, no Recreio, comprado pela Superplan de Domingos Brazão, por R$ 110 mil — Foto: Criação O GLOBO
Terreno de 10 mil metros quadrados, no Recreio, comprado pela Superplan de Domingos Brazão, por R$ 110 mil — Foto: Criação O GLOBO

A transação imobiliária sob o crivo do Coaf tem uma cronologia complexa. Documentos obtidos pelo GLOBO mostram que a propriedade do terreno foi transferida em 2021 para o comerciante João Peixoto Coutinho, de 76 anos, e sua mulher, a dona de casa Jandra de Anchieta Coutinho, de 73, por uma ação de usucapião iniciada em 2012. No processo judicial, o casal alegou morar no imóvel desde 1984, quando assinou a cessão de direitos com o antigo proprietário, por meio de instrumento particular, de uma área total de 20 mil metros quadrados.

Em junho de 2003, o posseiro português Manuel de Jesus Marques teria transferido, de vez, o sítio para Peixoto e sua esposa, sob a alegação de que voltaria para o país natal. Eles relatam que continuaram a plantar no terreno como fazia o antecessor, além de morar no “casebre” existente no local, o que “resultou em (área) de interesse social e econômico”. De acordo com essas datas, Brazão teria comprado 50% do imóvel do casal no decorrer da ação de usucapião (2013), mas a transferência para a empresa do conselheiro só foi efetivada em 2023, dois anos após o reconhecimento do usucapião.

Após Justiça reconhecer posse de terreno, João Peixoto Cordeiro vende imóvel para Domingos Brazão — Foto: Reprodução
Após Justiça reconhecer posse de terreno, João Peixoto Cordeiro vende imóvel para Domingos Brazão — Foto: Reprodução

Ainda conforme os autos, em 2011, o espólio de Rosário Giovani Humberto Stramandinoli ingressou na Justiça contra Peixoto e a mulher, reivindicando o terreno. Após uma sucessão de cinco ações, envolvendo ambos os lados, em 2020, a Justiça decidiu favoravelmente ao casal.

Em 13 de julho de 2023, foi assinada a escritura de compra e venda entre Peixoto e Jandra e a Superplan Administração de Bens, Imóveis e Participações, cujos sócios são Domingos e sua esposa, Alice de Mello Kroff Brazão. De acordo com o documento, lavrado no 14º Ofício de Notas, em Campo Grande, na Zona Oeste, a quantia paga pelo terreno de dez mil metros quadrados foi de R$ 110 mil, firmado entre as partes em 30 de setembro de 2013. Esse valor atualizado, corrigido pelo IPCA, corresponde a cerca de R$ 200 mil. Só o IPTU de 2024 do imóvel é de R$ 91.423.

Comprovante de ITBI mostra que terreno foi vendido por R$ 110 mil e cálculo de imposto baseou-se no valor de R$ 7 milhões, conforme  a prefeitura — Foto: Reprodução
Comprovante de ITBI mostra que terreno foi vendido por R$ 110 mil e cálculo de imposto baseou-se no valor de R$ 7 milhões, conforme a prefeitura — Foto: Reprodução

O que chamou a atenção dos investigadores da Polícia Federal e do vice-procurador-geral da República, Hindenburgo Chateaubriand Filho — que assina a denúncia contra Domingos e mais quatro réus pela morte de Marielle e Anderson —, foi o valor do ITBI pelo imóvel. A Superplan desembolsou, em 29 de junho do ano passado, R$ 212.880 para quitar o imposto, quase o dobro do valor pago pelo imóvel citado na escritura. O terreno tem hoje dívidas de IPTU no total de R$ 1.255.892,59.

"Tudo registrado", diz sócia

A sócia-administradora da Superplan, Alice Brazão, explicou ao GLOBO que o terreno foi adquirido em 2013, como consta na escritura, e justificou que o imóvel valorizou desde então.

Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes — Foto: Reprodução
Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes — Foto: Reprodução

— A pessoa de quem compramos tinha usucapião desde 1984. Fizemos o documento de cessão de direitos, tudo registrado. Havia vários processos, por isso, só em 2023 conseguimos registrar, quando terminou tudo. Tenho cópias do cheque e do extrato bancário com a transação (o pagamento dos R$ 110 mil). Para a nossa surpresa, o cálculo do ITBI nos revelou como o imóvel valorizou. Pagamos 50% do IPTU da área total, que é de 20 mil metros quadrados, pois adquirimos a metade do terreno — justificou Alice.

A outra parte do terreno no Recreio teria sido vendida a outra empresa. Jandra disse ao GLOBO que morou por “muitos anos” no imóvel.

— Esses negócios aí (a venda do terreno) são com o meu marido. Eu não entendo nada. Só ele pode explicar — disse ela.

Peixoto não atendeu as ligações feitas pelo GLOBO. O Coaf informou que não comenta investigações. Em nota, o conselho explicou que: “o Coaf não atua como órgão de investigação ou de persecução penal... A produção de inteligência financeira consiste no recebimento de informações de fontes legalmente previstas, principalmente comunicações provenientes dos vários setores obrigados definidos no art. 9º da Lei nº 9.613, de 1998, e na análise dessas informações. Nos casos em que as referidas fontes apontem situação suspeita, são produzidos e disseminados Relatórios de Inteligência Financeira (RIF).”

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