A relação de criminosos com alguma religião não vem de hoje. Nos anos 1980 e 1990, eram comuns os cruzeiros no alto dos morros do Rio. Imagens de santos como São Jorge ou de orixás como Ogum, que representa a guerra, apareciam indistintamente em santuários nas favelas do Comando Vermelho e do Terceiro Comando Puro. Traficantes pediam a mães de santo trabalhos para “fechar o corpo”, ou seja, os protegerem da morte pelos rivais.
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Nos anos 2000, com o crescimento das igrejas neopentecostais nas comunidades, o quadro mudou. Símbolos do Estado de Israel surgiram em algumas favelas. Teólogos, antropólogos e cientistas sociais passaram a pesquisar esse fenômeno no chamado Complexo de Israel, na Zona Norte do Rio. Moradores das comunidades que compõem o complexo, vivem sob o julgo de Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão.
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF, que coordena o Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião, Christina Vital escreveu sobre a criação do Complexo de Israel e sua relação com o crescimento do pentecostalismo em periferias. Ela ressalta a mudança de referências religiosas nas favelas do TCP. Em Acari, por exemplo, controlada pela mesma facção de Peixão, surgiram nos muros inscrições de salmos bíblicos há 20 anos. A fé também é propagada pelos radiocomunicadores dos traficantes ao amanhecer.
— Não cabe ao pesquisador dizer se ele (Peixão) é evangélico ou não. Há moradores que o reconhecem como evangélico, como ele próprio tem também essa convicção. Nenhum dos líderes evangélicos acredita que uma pessoa que esteja no crime possa se dizer de fato religiosa — explicou a autora de “Oração de traficante”.
A teóloga Viviane Costa, que escreveu “Traficantes evangélicos: quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus”, também pesquisou Peixão. Perguntada sobre o perigo de o traficante usar a violência para impor sua crença, desencadeando uma postura fundamentalista, a pesquisadora responde que existe essa possibilidade:
— Toda religiosidade exclusivista, que se pretende única, soberana e superior, é fundamentalista. Sempre que a gente pensar em alguém que tem uma religiosidade que precisa anular o outro e, às vezes, anular no sentido mais literal, e impedir que o outro exerça a sua religiosidade, esse alguém está sendo fundamentalista. Então, sim, é possível fazer essa associação.
Uma ética própria
Teólogo e autor de livros, André Reinke diz que Peixão criou sua própria ética:
— Obviamente que, como evangélico, tenho que rejeitar que alguém seja ao mesmo tempo traficante e evangélico, porque vai absolutamente contra a fé. Eles vão dizer: “não, a gente aqui não trafica crack, nem heroína. Só maconha”. Então existe uma ética própria deles, que está fora do que a gente, como evangélico, aceita. Eles leem os salmos e cantam hinos antes de sair para o confronto de manhã.
Na opinião do secretário de Segurança Pública, Victor Santos, Peixão usa a religião para expandir territórios:
— A intolerância religiosa é mais uma das várias violências que ele pratica. Reconheço que o uso da “religião” por ele facilita o recrutamento e sua liderança, porque a crença, mesmo sendo deturpada, cria pontos de contato e afinidade por parte do seu bando.