True Crime
PUBLICIDADE
True Crime

Histórias, detalhes e personagens de crimes reais que mais parecem ficção

Informações da coluna

Ullisses Campbell

Com 25 anos de carreira, sempre atuou como repórter. Passou pelas redações de O Liberal, Correio Braziliense e Veja. É autor da coleção “Mulheres Assassinas”

Por — São Paulo

Mistério, inabilidade policial, reviravoltas e alguns segredos de família revelados no curso da investigação. Está no brejo paraibano um dos crimes mais enigmáticos do Brasil. Tudo começou na hora do almoço da terça-feira 4 de julho de 2023, quando a pequena Ana Sophia Gomes dos Santos, de 8 anos, comeu pipoca com refrigerante e uma barra de chocolate. Tomou um banho, pôs um vestidinho azul escuro todo florido, arrumou um laço cor-de-rosa na cabeça e calçou sandálias de dedos. Vaidosa, passou um batom clarinho na boca e um pouco de pó no rosto. Perfumou-se. Em seguida, toda arrumada, a menina saiu de casa sozinha, no município de Bananeiras, para brincar na residência da amiguinha Emilly, de 9 anos. Conforme captado por câmeras de segurança, Ana Sophia caminhou por 1,1 quilômetros durante cerca de 20 minutos, passando basicamente por três vias do distrito de Roma, entre elas a rua Miguel Paulino Maia, uma das mais movimentadas do município rural de 23.134 habitantes, segundo o censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ao chegar à casa de Emilly, às 12h33, Ana Sophia descobriu que dera viagem em vão. A amiguinha estava de saída com a mãe — elas iriam fazer compras em Solânea, uma cidade vizinha. “Volta outro dia”, sugeriu Emilly. A menina iniciou, então, o mesmo trajeto da ida, dando a entender que regressava para casa. No entanto, enquanto caminhava pela rua Miguel Paulino Maia, Ana Sophia simplesmente desapareceu. Passados quase oito meses, não se sabe onde ela está. Não se tem 100% de certeza de quem a sequestrou, muito menos se está viva ou morta. A cada dia que passa, o carrossel de suspense só faz crescer, causando uma dor sem fim na mãe da garota, a dona de casa Maria do Socorro Nobre Gomes, de 42 anos. “Sonho todos os dias com a minha filha vivíssima, dizendo para eu esperar por ela. Já, já ela voltará para casa. É nisso que eu me agarro”, conta ela, aos prantos.

Segundo as imagens de uma câmera externa instalada na fachada da residência de Emilly, Ana Sophia conversou por menos de um minuto com a coleguinha e retornou da porta, ou seja, sem sequer entrar na casa da amiga. O trajeto de volta de Ana Sophia pôde ser reconstituído pela polícia a partir de duas câmeras externas instaladas em comércios da rua Miguel Paulino Maia, a uma distância de 350 metros uma da outra.

Diferentes câmeras de segurança mostram Ana Sophia nos últimos momentos em que ela foi vista — Foto: Reprodução
Diferentes câmeras de segurança mostram Ana Sophia nos últimos momentos em que ela foi vista — Foto: Reprodução

Como era hora do almoço e o sol estava escaldante, havia poucas pessoas na rua. A primeira câmera mostrou primeiro uma senhora passando sozinha, às 12h34, usando uma bermuda jeans e uma camiseta regata branca. Na sequência, um minuto depois, Ana Sophia apareceu também sozinha, sem ninguém por perto. Quatro minutos depois, a tal senhora surgiu novamente só, passando pelo foco da segunda câmera. Já Ana Sophia não apareceu nesse ponto — ou seja, ela teria sido raptada exatamente nesse trecho da rua dois minutos depois de sair da casa de Emilly. Essa foi a última vez que a garota foi vista, segundo o inquérito policial aberto para investigar o caso, cujo O GLOBO teve acesso. “As imagens mostram Ana Sophia voltando tranquilamente e sozinha pela Rua Miguel Paulino, uma das mais movimentadas do município, com acesso às comunidades rurais da região”, descreveram no documento dois policiais, José Francisco Nóbrega e Luiz Pereira Soares.

A procura por Ana Sophia foi classificada pelo delegado Diógenes Fernandes como um quebra-cabeça. Até um açude inteiro foi esvaziado com uso de retroescavadeiras para tentar achar o seu corpo. Pelo menos dez investigadores percorreram dezenas de vezes o trecho feito pela menina e bateram de porta em porta para tentar saber em qual casa ela poderia ter entrado tão logo passou pela primeira câmera de segurança. Nessa varredura, os policiais descobriram pelas imagens de uma terceira câmera que Ana Sophia teria entrado às 12h40 na residência do casal Tiago Fontes Silva da Rocha, porteiro de 34 anos, e Zilda Fernandes Silva da Rocha, professora de 39. Eles residiam lá com dois filhos, um de 1 ano e meio e uma adolescente de 14, que disse não ter visto Ana Sophia em casa nesse dia. Para deixar o caso mais intrincado, Socorro tem absoluta certeza que é a sua filha que aparece nas imagens entrando na casa de Tiago.

Na primeira versão do inquérito policial, os investigadores disseram que uma “pessoa não identificada” entrou na casa de Tiago. Na segunda versão, eles garantem que essa tal pessoa é Ana Sophia. Com isso, a polícia deu o caso como encerrado fazendo a seguinte narrativa: Tiago estava sozinho em casa, viu Ana Sophia passar pela rua desacompanhada na hora do almoço e a chamou para entrar. Essa cena não tem qualquer testemunha. Dentro da casa, ele teria violentado a garota sexualmente, matando-a em seguida — tampouco sabe-se como. Ato contínuo, ainda de acordo com a polícia, Tiago colocou o corpo da vítima no porta-malas do carro, um Fiat Argo, e o levou para desová-lo em local jamais encontrado.

A imagem que mostraria Ana Sophia entrando na casa de Tiago — Foto: Reprodução
A imagem que mostraria Ana Sophia entrando na casa de Tiago — Foto: Reprodução

Convictos, policiais invadiram a casa de Tiago com um mandado de busca e apreensão em mãos e levaram de lá celulares e computadores. Como a perícia não encontrou provas concretas, como fotos e vídeos que ligassem Tiago à pratica de pedofilia, ele acabou voltando para casa após dar um depoimento, no dia 31 de agosto. Dez dias depois, ele foi convocado para depor mais uma vez. Segundo o delegado Pablo Everton Macêdo do Nascimento, do núcleo de homicídio da 21ª Seccional da Polícia Civil da Paraíba, a essa altura a perícia já havia descoberto que o suspeito havia entrado no Google para pesquisar sobre “genitálias de crianças”. Ainda conforme consta na investigação, Tiago também fez outras pesquisas no dia do sumiço de Ana Sophia: “como desmembrar corpo de crianças”, “como dissolver ossos em ácidos” e “como destruir cadáveres usando fogo”.

O segundo depoimento de Tiago ocorreria em 11 de setembro. Nesse dia, o suspeito seria surpreendido com a sua prisão temporária decretada com base nas pesquisas macabras feitas pelo acusado na internet. “Ele tem amplo conhecimento em tecnologia e conseguiu formatar e apagar tudo o que estava armazenado na memória dos equipamentos. Por isso não encontramos nenhuma imagem. Mandamos os telefones e os computadores dele até para a Polícia Federal, em Brasília, e não foi encontrado nada. Agora estamos investigando as nuvens”, explicou o delegado Diógenes Fernandes, titular da 21ª Seccional de Polícia da Paraíba.

Tiago não compareceu para depor pela segunda vez e desapareceu, passando a ter o status de “foragido da polícia”. Dois meses depois, o caso teve uma reviravolta surpreendente: o corpo dele foi encontrado numa região de mata fechada na zona rural de Bananeiras. Tiago encontrava-se suspenso por uma corda amarrada ao pescoço, sugerindo morte por suicídio. Seu corpo estava em avançado estágio de decomposição, impossível de reconhecimento a olho nu. A foto do cadáver chamou a atenção porque seus pés tocavam no chão. “Conheço o meu marido desde a infância. Crescemos no mesmo bairro. Ele não era pedófilo. Nem acredito que ele tenha se matado. Mas, se fez isso, foi por causa dessa falsa acusação”, afirmou Zilda, a viúva de Tiago. O corpo dele foi reconhecido por exame de DNA.

Tiago teria manobrado carro para esconder corpo — Foto: Reprodução
Tiago teria manobrado carro para esconder corpo — Foto: Reprodução

Em depoimento, Zilda confirmou que o marido era expert em tecnologia. “Ele foi o primeiro morador de Bananeiras a ter um computador. E ele sempre fazia questão de ter o modelo mais atual”, contou. Ela também revelou que Tiago vinha cultivando hábitos estranhos nos últimos dias. “Ele não vinha se alimentando direito. Ficava subindo e descendo as escadas da casa sem parar”, relatou a esposa. No dia que daria o segundo depoimento, segundo Zilda, Tiago saiu de casa sem a carteira e o celular, vestindo short verde, camiseta bege e sandálias havaianas. “Ele contou que ia encontrar o meu pai e seguir à delegacia”, relatou.

Para a polícia, há outras evidências que incriminam Tiago. Ele costumava andar de moto. Justamente no dia do desaparecimento de Ana Sophia, resolveu usar o carro. Esse veículo sempre estava na garagem com o porta-malas virado para a rua. Alguns minutos depois de a menina entrar na casa dele, na versão dos investigadores, Tiago teria retirado o carro da garagem e colocado novamente em seguida, dessa vez com o porta-malas virado para dentro da casa. Na narrativa da polícia, isso facilitou a retirada do corpo da menina da casa do suspeito pela porta da sala.

Como se trata de uma cidade minúscula, todo mundo se conhece em Bananeiras. Ana Sophia, por exemplo, estudava na escola João Paulo II, onde Zilda era vice-diretora. Os pais dela, João Severino dos Santos, conhecido como seu Jacó, e Teresinha Fernandes dos Santos, também tiveram ligação direta com a família da menina desaparecida. Dona Socorro alugava da família de Zilda por R$ 300 reais a casa onde ela morava com as filhas quando Ana Sophia desapareceu. “O seu Jacó nos expulsou dessa casa logo após a polícia acusar o Tiago de ter matado a minha menina”, disse a mãe de Ana Sophia.

Tiago Fontes Silva da Rocha: para a polícia, o autor do crime — Foto: Reprodução
Tiago Fontes Silva da Rocha: para a polícia, o autor do crime — Foto: Reprodução

Zilda e dona Socorro acusam a polícia da Paraíba de “montarem” uma versão “à força” para esclarecer o desaparecimento de Ana Sophia “a todo custo”. Já o delegado Pablo se defende pontuando que as duas sentem dores muito fortes por perdas recentes e impactantes e vê o mistério como solucionado: “Uma perdeu a filha. A outra perdeu o marido. Eu entendo a negação de ambas. Mas, infelizmente, não resta a menor dúvida que Tiago matou Ana Sophia, deu fim do corpo e depois se matou levando com ele um grande segredo: onde está o corpo da vítima”. O próximo passo, segundo a polícia, é indiciar Tiago, mesmo morto, e pedir ao Ministério Público o arquivamento do caso, já que é impossível ele se sentar no banco dos réus. “Ana Sophia não está mais sendo procurada. A não ser que surja uma pista nova”, avisou o delegado.

Além do vídeo mostrando Ana Sophia entrando na casa de Tiago, não há qualquer vestígio provando que a menina realmente esteve lá. Não foi encontrado sequer um fio de cabelo da garota, nem impressões digitais dela na casa, nem no carro dele, atestaram os laudos da perícia. A filha mais velha de Tiago estava em casa no momento em que a menina teria entrado e também disse não ter visto Ana Sophia.

Algumas possíveis falhas no inquérito engrossam os argumentos de quem critica as investigações. Dona Socorro tem 8 filhas, incluindo Ana Sophia. Todas foram depor na delegacia para falar da menina desaparecida. No dia 7 de julho de 2023, compareceram separadamente uma jovem de 19 anos e outra de 14. A primeira depôs pela manhã, e a segunda à tarde. No entanto, o texto do depoimento das duas é idêntico, sugerindo que os policiais simplesmente deram um copia/cola, mudando apenas o nome da depoente e a hora do interrogatório. “Elas foram à delegacia e disseram exatamente a mesma coisa. Não mudou nada. Por isso os depoimentos têm o mesmo texto”, justificou o delegado Pablo, que ouviu as duas irmãs. E há outra queixa por parte da família: segundos os parentes de Ana Sophia, a filha menor de idade teve o depoimento colhido pelo policial sem estar acompanhada pelos pais ou responsáveis. Para esse lapso, a polícia paraibana não se manifestou.

O trajeto feito por Ana Sophia no dia do desaparecimento — Foto: Reprodução
O trajeto feito por Ana Sophia no dia do desaparecimento — Foto: Reprodução

Ao depor, uma das irmãs de Ana Sophia acabou revelando na delegacia que um tio agricultor costumava abusar sexualmente das sobrinhas, inclusive da menina desaparecida. “Ele costumava oferecer dinheiro para tocar nas nossas partes íntimas”, afirmou. O parente negou a acusação em depoimento, mas revelou na delegacia um segredo que guardava há anos. Ele e a Socorro manteriam um caso extraconjugal há uma década e meia, e dessa relação nasceu uma das irmãs de Ana Sophia, de 17 anos.

Socorro confirmou a informação, deixando claro que todos na família, inclusive seu marido, João Simplício, de 62 anos, já perdoaram a infidelidade. “Eu tive apenas uma noite de sexo com o meu cunhado e não um caso de 14 anos. E o que isso tem a ver com o sumiço da minha filha? Nada! Quando falei das minhas intimidades na delegacia, disseram que essa informação não sairia daquela sala. Hoje toda cidade sabe”, esbravejou dona Socorro em entrevista ao GLOBO.

De acordo com a polícia, o caso extraconjugal de Socorro veio à baila no inquérito porque parte dos familiares de Ana Sophia, inclusive o agricultor, figurou na lista de suspeitos logo no início das investigações. Principalmente depois de ter sido revelado que o tio abusava das sobrinhas.

Ana Sophia com a mãe, Socorro — Foto: Reprodução
Ana Sophia com a mãe, Socorro — Foto: Reprodução

Segundo o delegado Diógenes, o caso Ana Sophia teve as investigações bastante prejudicadas por uma série de youtubers especializados em contar histórias de crimes reais na internet. “Fizeram do caso uma novela recheada de fofoca, incluindo esses casos extraconjugais e acusando ainda a mãe da menina de negligência, já que a Ana Sophia saiu sozinha de casa. Esse pessoal também iludiu a dona Socorro, que mantém a esperança de que sua filha esteja viva. Com toda essa repercussão, ela passou a ser beneficiada com vaquinhas, recebeu dinheiro e até uma casa própria”, comentou o delegado.

Dona Socorro assume que ganhou uma casa nova no valor de R$ 100 mil de uma emissora de televisão e que recebe donativos em dinheiro vivo e mantimentos. “Se estão me oferecendo dinheiro e comida, por que vou negar? A vida aqui no interior da Paraíba é de muita miséria. Toda ajuda é bem-vinda. Só tenho a agradecer”, assume a mãe de Ana Sophia, que já perdeu a conta de quantos advogados e agentes já procuraram por ela oferecendo meios para capitalizar a tragédia familiar seja em livros, filmes, séries de TV e até documentários.

A menina Ana Sophia desapareceu em julho de 2023, aos 8 anos — Foto: Reprodução
A menina Ana Sophia desapareceu em julho de 2023, aos 8 anos — Foto: Reprodução
Mais recente Próxima Década de golpes em cidadezinha paulista chega ao fim por motivo inesperado: uma certidão de casamento