True Crime
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Histórias, detalhes e personagens de crimes reais que mais parecem ficção

Informações da coluna

Ullisses Campbell

Com 25 anos de carreira, sempre atuou como repórter. Passou pelas redações de O Liberal, Correio Braziliense e Veja. É autor da coleção “Mulheres Assassinas”

Por — São Paulo

Um dia depois de obter liberdade em decisão da Justiça Federal — que permitiu que ela saia às ruas durante o dia, mantendo o uso de tornozeleira eletrônica —, a doleira Nelma Kodama, de 57 anos, falou ao GLOBO sobre as acusações de tráfico de drogas e organização criminosa das quais é alvo. Ela acredita que só foi presa pela Polícia Federal (PF) por ser famosa. “Fui apresentada como se fosse um troféu”, alega.

A doleira foi capturada em Lisboa, em um hotel de luxo, depois de a PF interceptar em Salvador um avião carregado na fuselagem com meia tonelada de cocaína. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, seria Nelma quem intermediaria a distribuição dessa droga na Europa.

A doleira Nelma Kodama no apartamento de luxo onde mora — Foto: Edilson Dantas
A doleira Nelma Kodama no apartamento de luxo onde mora — Foto: Edilson Dantas

Em 2022, a doleira passou três meses no Estabelecimento Prisional de Tires, em São Domingos da Pena, Portugal. Depois, foi transferida para uma cadeia em Salvador. No passado, no âmbito de outros processos, também esteve na carceragem da PF em Curitiba e no presídio de Sant’Ana, em São Paulo. Com passagens por diferentes prisões, inclusive no exterior, Nelma vê condições melhores no sistema penitenciário lusitano: “Lá, eu comia bacalhau todos os dias. Aqui, já me serviram frango estragado”, reclama.

Usando uma tornozeleira eletrônica na perna esquerda, Nelma pretende investir na carreira de coach para incentivar mulheres a começar a vida do zero depois de “levar tantas pancadas”. Ao se referir ao passado de transgressões, ela afirma se ver como "exemplo de sucesso feminino": "Fui a única doleira do Brasil. Conquistei poder e dinheiro sem abaixar a cabeça para ninguém". No Instagram, com ambições de influenciadora, tem perfil verificado e posta vídeos ensinando a cuidar da pele, cozinhar e a escolher roupas e bons vinhos.

A doleira Nelma Kodama no apartamento de luxo onde mora — Foto: Edilson Dantas
A doleira Nelma Kodama no apartamento de luxo onde mora — Foto: Edilson Dantas

Primeira delatora da Lava-Jato, Nelma mora em um apartamento de 500 metros quadrados no Campo Belo, São Paulo, avaliado em R$ 10 milhões, e ostenta fotos vestindo grifes de alta costura, como Chanel e Louis Vuitton. Apesar disso, ela deve à Receita Federal R$ 127 milhões, além de uma multa de R$ 800 mil por causa da condenação por lavagem de dinheiro e organização criminosa no âmbito da operação que a tornou conhecida. “Levo uma vida modesta”, garante.

Confira os principais trechos da entrevista

Você foi acusada de tráfico de drogas pela PF. O que tem a dizer?

Não! Nunca! Jamais! Nego essa denúncia veementemente. Essa pergunta é até ofensiva. Sempre fui doleira, mas nunca lavei dinheiro do tráfico. Eu atuava vendendo, comprando e guardando dólar da chinesada da 25 de Março.

E sobre a acusação de ligação com a facção PCC?

Em hipótese alguma. Olha, não tenho nada a ver com a droga apreendida naquele avião. Vou te contar uma história de bastidor. Quando fui presa, lá em Portugal, encarei o policial brasileiro que me interrogou e perguntei olhando no olho dele: "Você acha mesmo que tenho alguma coisa a ver com um grama dessa droga?". Ele ficou calado e abaixou a cabeça. Insisti na pergunta. Sabe o que ele falou? O delegado me olhou e disse: "Quando vi o seu nome, eu pensei: peguei um troféu". Foi por isso que fui presa.

E como você pretende provar a inocência que alega?

Contratei advogados maravilhosos para me defender. Além do mais, vou provar que só fui presa nessa operação porque sempre estive na mídia, porque namorei o Alberto Youssef (também doleiro), porque cantei “amada amante” no Congresso e porque fui pega no Aeroporto de Guarulhos com 200 mil euros na calcinha, ou melhor, nos bolsos. Também fiz pose com sapato Chanel vermelho para mostrar a minha tornozeleira. Sou uma estrela da Lava-Jato. Isso é um prato cheio para a PF, que precisa dar visibilidade ao seu trabalho e emplacar no noticiário.

Alberto Youssef e Nelma Kodama: ex-casal de doleiros — Foto: Reprodução
Alberto Youssef e Nelma Kodama: ex-casal de doleiros — Foto: Reprodução

A PF afirma que você foi a Portugal receber o carregamento de drogas e distribuir aos seus fornecedores.

Isso é uma mentira lavada e deslavada. Eu fui a Portugal para procurar novos negócios. Nessa época, Lisboa estava no ápice imobiliário e fui fazer investimentos. Muitos brasileiros estavam se mudando para lá e buscavam por moradia. Vi aí uma nova oportunidade profissional na corretagem de imóveis.

Como foi a sua prisão em Portugal?

Estava tomando café no hotel e fui surpreendida com oito policiais decretando a minha prisão. Não me disseram o motivo, nem deixaram ligar para os meus advogados. Nem teve audiência de custódia. Na delegacia, me mostraram uma foto do meu ex-namorado (Rowles Magalhães Ferreira da Silva) e afirmaram que eu estava envolvida nos crimes dele.

Na Lava-Jato, você também alegou ter sido enganada por um ex-namorado, Alberto Yousseff. Aconteceu de novo?

Eu me apaixonei perdidamente. O Rowles disse que era do agronegócio no Mato Grosso, fiquei muito envolvida. Ele transava muito bem, carinhoso, rico e bonito. Que mulher não se apaixonaria? Não percebi evidências de que ele era um golpista. Ele me apresentou as filhas, a mãe e fui me enfeitiçando cada vez mais. Me deixando dominar. Mas, na verdade, ele era um picareta, canalha mesmo. Quando descobri que ele não prestava, rompi o namoro. Alguns meses depois, veio essa operação da Polícia Federal e acabei presa pelos crimes que esse calhorda cometeu.

Você não sabia que ele estava envolvido com tráfico?

Não posso acusar ninguém de nada.

Você conta que chegou a ser mantida em cárcere privado...

O Rowles chegou com uma história de que estava devendo para umas pessoas aí. Uma das filhas dele teria que ficar de refém até essa dívida ser quitada. Ele me pediu uma ajuda. Como estava apaixonada, cega de amor, fui para o cativeiro no lugar da filha dele. Mas desconfio que ele fez isso para poder viajar com outra mulher.

Nelma Kodama e o ex-namorado Rowles Magalhães Ferreira da Silva — Foto: Reprodução
Nelma Kodama e o ex-namorado Rowles Magalhães Ferreira da Silva — Foto: Reprodução

Você ficou seis meses numa penitenciária em Portugal e passou vários anos em prisões brasileiras. Onde prefere estar?

Mil vezes nas prisões portuguesas. Não há nem o que se comparar. No Brasil, as condições são precárias. Lá, se você for condenado a 20 anos, você fica 20 anos preso. Não tem esses benefícios de completar um sexto, um terço e progredir o cumprimento da pena para regime semiaberto e aberto. Em Portugal, não existe saidinha.

E as condições das penitenciárias?

Em Portugal, as instalações são excelentes. É tudo de primeiro mundo. Bem limpinho, sabe? Fiquei sozinha numa cela. As condições de saúde são excelentes. Tem médicos e dentistas. Tem terapia com psicólogos e psiquiatras. Dentro da cela tem chuveiro com água quente e televisão. Tem uma lavanderia onde eu pagava para lavar as minhas roupas, e elas eram entregues todas passadas. Cantina onde fazia compras semanalmente. Na minha cela havia um telefone fixo que eu podia usar para ligar para todas as pessoas que estavam autorizadas a receber a minha chamada, como advogados e parentes. Ou seja, não precisava fazer contrabando de celular para se comunicar, entendeu? Só o colchão que não era macio.

Da cadeia de Portugal, você foi transferida para penitenciária de Salvador. Houve um choque na mudança?

Nem me fale. Foi assustador. Fiquei numa cadeia chamada Mata Escura com cem mulheres assassinas de alta periculosidade. Lá, eu não rezava para ser transferida. Rezava para ficar viva por mais cinco minutos. Foi o lugar mais horrível por onde passei. Não gosto nem de lembrar. Tinha pesadelos todos os dias. Eu fechava os olhos e pedia a Deus mais alguns minutos de vida.

O que havia de tão assustador?

Tudo! As instalações são precárias. Faz muito calor. Tem muito pernilongo. A comida é muito ruim.

O que era servido na cadeia de Portugal?

A gente comia muito peixe, inclusive bacalhau. Mas lá é normal comer bacalhau. Já na cadeia de Salvador, onde fiquei três meses, eu comia uma papa estragada de arroz e feijão. Uma vez me serviram uma marmita com frango podre. Mas um defensor público me explicou. Aqui no Brasil a cadeia é uma pe-ni-ten-ci-á-ria (fala separando pausadamente as sílabas), ou seja, é um lugar de se pagar penitência, para receber castigo. O preso tem mais que se foder mesmo. Por isso as pessoas saem revoltadas da prisão. Lá fora, não é assim. Eu era muito bem tratada na cadeia de Portugal. O Brasil poderia copiar o modelo português. No banho de sol da cadeia de Lisboa, tem ginástica, vôlei, futebol e até ioga. Tinha terapia com animais, como cavalo e cachorro.

A doleira Nelma Kodama no apartamento de luxo onde mora — Foto: Edilson Dantas
A doleira Nelma Kodama no apartamento de luxo onde mora — Foto: Edilson Dantas

O que você pretende com essa nova carreira de influenciadora digital?

Muitas mulheres e homens gays me chamam para saber de onde tiro força e coragem para enfrentar todos esses processos, tantas acusações falsas, tanta mentira. Há uma década venho tendo dissabores com a Justiça. É uma cacetada em cima da outra. Tive de ser forte e corajosa. Acordar cedo todo dia, respirar fundo e partir para cima. Os meus seguidores querem ter essa coragem também. Sou uma inspiração.

Tem saudades da época em que era conhecida como a dama do mercado?

Eu trabalhei com câmbio numa época em que o mercado era 100% masculino. Fui a única doleira do Brasil. Conquistei poder e dinheiro sem abaixar a cabeça para ninguém. Fui um exemplo de sucesso feminino. Como não ter saudades de essa época?

Hoje, sua dívida financeira tem nove dígitos. Como é viver assim?

Levo uma vida modesta. Não tenho carro. Pago minhas despesas de condomínio e IPTU. Meu advogado é caro, mas ele entende a minha situação. Tenho um acerto com ele para pagar algo só no futuro, dependendo dos acontecimentos. Hoje, só consigo comprar comida e os meus remedinhos.

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