True Crime
PUBLICIDADE
True Crime

Histórias, detalhes e personagens de crimes reais que mais parecem ficção

Informações da coluna

Ullisses Campbell

Com 25 anos de carreira, sempre atuou como repórter. Passou pelas redações de O Liberal, Correio Braziliense e Veja. É autor da coleção “Mulheres Assassinas”

Um mistério de 60 anos intriga o Rio Grande do Sul até hoje. Na tarde do dia 20 de junho de 1962, a socialite Margit Mailaender Kliemann, de 38 anos, foi brutalmente assassinada dentro da mansão em que morava com a família em um bairro nobre de Porto Alegre. A mulher apresentou sinais de espancamento pelo corpo todo, inclusive no crânio, com uso objeto contundente. Agredida no segundo pavimento da casa, ela também foi empurrada do alto da escadaria, morrendo instantaneamente.

O crime hediondo teve vários suspeitos, mas três foram considerados os principais: o marido de Margit, o deputado estadual Euclides Kliemann (PSD), de 41 anos na época do homicídio; um sobrinho do casal de 17 anos; e uma personagem misteriosa conhecida na crônica policial dos pampas como “dama de vermelho”. A polícia gaúcha, contudo, jamais conseguiu elucidar o caso, o que ainda atiça o imaginário dos envoltos no universo true crime.

A socialite Margit Mailaender Kliemann — Foto: Foto de arquivo
A socialite Margit Mailaender Kliemann — Foto: Foto de arquivo

Suspeito número 1

Euclydes foi apontado como autor do assassinato porque Margit teria descoberto um caso extraconjugal do marido com uma garota de programa da boate Riviera, um badalado ponto de prostituição de luxo de Porto Alegre. Na época, quem acusava Euclydes sustentava que o casal havia brigado calorosamente por causa da suposta traição.

Em um ímpeto, o marido teria avançado sobre a esposa com um objeto metálico e pontiagudo – provavelmente um atiçador de lareira. Ato contínuo, ele teria empurrado a vítima escada abaixo, simulando uma queda acidental.

O casal tinha três filhas com idades entre 9 e 15 anos. No dia em que a mãe morreu, as meninas estavam na casa do avô, na cidade de Santa Cruz do Sul, a 154 quilômetros de Porto Alegre.

O deputado estadual Euclides Kliemann, marido da vítima — Foto: Foto de arquivo
O deputado estadual Euclides Kliemann, marido da vítima — Foto: Foto de arquivo

Chamado na delegacia para depor como suspeito cinco dias depois do crime, Euclydes apresentou ao delegado Julio Moraes a sua agenda vespertina como álibi. Enumerou com precisão de horas e frações de minutos todos os lugares por onde teria passado a tarde enquanto a esposa era assassinada. Disse que foi à relojoaria, à floricultura e passou em diversas lojas, além de ter estado no prédio da Assembleia Legislativa, onde dava expediente como parlamentar de oposição ao governo de Leonel Brizola (1922-2004).

Ainda segundo a linha de tempo de Euclydes, já à noitinha, ele teria telefonado para casa com intuito de falar com Margit, mas ela não atendeu. Euclydes, então, passou a procurar pela mulher na casa de parentes. Ela foi encontrada por ele morta às 20 horas, no chão da sala, numa poça de sangue.

A escada da qual a vítima despencou — Foto: Foto de arquivo
A escada da qual a vítima despencou — Foto: Foto de arquivo

Os policiais consideraram Euclydes frio no momento em que falava sobre a morte da esposa, o que aumentou ainda mais as suspeitas sobre ele. Os investigadores também estranharam que o deputado tivesse memorizado todos os lugares com tantos detalhes em um dia tão trágico.

Quase 50 anos depois, entretanto, foi revelado que Euclydes havia feito, de fato, uma lista minuciosa com todos os lugares onde esteve no dia do crime, com horário de chegada e saída. As anotações estariam organizadas numa folha de papel justamente para evitar contradições, trazendo mais uma camada de suspense para o caso.

A entrada da mansão dos Kliemann — Foto: Foto de arquivo
A entrada da mansão dos Kliemann — Foto: Foto de arquivo

Suspeito número 2

Também apontado como assassino, o bad boy Luiz Fernando Kurth, então com 17 anos, chegou a ser detido pela polícia para prestar depoimento. Filho de uma irmã de Euclydes, o rapaz integrava uma gangue de rua, cometia pequenos furtos e era dependente químico. Segundo a narrativa policial, ele teria matado a tia durante uma luta corporal por causa de morfina.

Essa versão começa com a história de uma queda que Margit sofreu ao descer do carro três anos antes de ser assassinada. Mesmo depois de peregrinar por vários médicos, ela não havia descoberto por que as dores persistiam. A socialite teria, inclusive, passado um tempo andando em cadeiras de rodas.

De tanto usar morfina para aplacar o sofrimento físico, ela mantinha um estoque considerável da droga pesada em casa. Por isso, Luiz Fernando teria ido até a casa da tia para roubar frascos da substância. Flagrado pela vítima, ele teria travado uma luta corporal e cometido o crime.

Luiz Fernando Kurth era sobrinho da vítima — Foto: Foto de arquivo
Luiz Fernando Kurth era sobrinho da vítima — Foto: Foto de arquivo

Em depoimento, Luiz Fernando disse que estava trabalhando na hora do assassinato da tia. O jovem conseguiu provar que bateu o ponto de entrada na firma, mas não havia registro do ponto de saída, embaralhando ainda mais a investigação. Em determinado momento, a polícia mandou apreender uma calça jeans do suspeito que estaria suja de sangue. Mas, quando os investigadores puseram as mãos na peça de roupa, ela já havia sido lavada e enxaguada numa máquina.

Sem provas, os investigadores riscaram o nome de Luiz Fernando da lista de suspeitos. Mas seu destino foi insólito. Depois de ser acusado de ter matado Margit, ele foi para o Rio de Janeiro e se envolveu em outros crimes. Voltou para o Rio Grande do Sul, onde entrou novamente em conflito com a lei. Morreu em 1981 na UTI do Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, aos 35 anos, após levar um tiro na cabeça.

O corpo da vítima deixa a mansão — Foto: Foto de arquivo
O corpo da vítima deixa a mansão — Foto: Foto de arquivo

Suspeita número 3

A terceira acusada de ter matado Margit é uma lenda urbana gaúcha conhecida como "dama de vermelho". A história dessa moça começou nas páginas do extinto Diário de Notícias, um jornal com viés político opositor ao do então presidente João Goulart (1919-1976).

Uma reportagem policial publicada no tabloide na época do crime dava conta de que uma mulher muito bonita, toda vestida de vermelho, teria sido vista saindo da mansão na tarde em que Margit foi assassinada. A reportagem aumentava a suspeita de que Euclydes tinha uma amante e insinuava que ela teria matado a socialite para ter o caminho livre para ficar com o deputado.

Na sequência, a história da Dama de Vermelho ganhou manchetes de jornal e tumultuou ainda mais as investigações. Isso porque um taxista se deu ao trabalho de depor na delegacia contando que havia conduzido a tal mulher da porta da mansão até uma calçada do Centro de Porto Alegre. Na oitiva, ele ressaltou a beleza da jovem. Depois, feito uma metamorfose ambulante, o taxista desdisse o que disse antes. Alegou nunca ter feito corrida com a sujeita e que sofria lapsos de memória.

Sandra Riba, que chegou a se apresentar como a Dama de Vermelho — Foto: Foto de arquivo
Sandra Riba, que chegou a se apresentar como a Dama de Vermelho — Foto: Foto de arquivo

Para apimentar o enredo policial, uma garota de programa conhecida como Sandra Ribas, de 18 anos, subiu ao palco do bordel Riviera numa noite de casa cheia e gritou para quem quisesse ouvir que era a Dama de Vermelho. Todos esses desdobramentos pitorescos foram publicados pelo Diário de Notícias, fazendo com que a lenda se perpetuasse.

Em uma entrevista, Sandra chegou a afirmar que se encontrou com Euclydes. A farsa da Dama de Vermelho só foi sepultada depois de ela ser algemada e detida como suspeita de assassinato. Morrendo de medo, a prostituta assumiu que inventou tudo para se promover.

Mais uma morte na família

Um ano depois da morte de Margit, uma outra tragédia se instalou na família Kliemann. Euclydes falava para os ouvintes da Rádio Santa Cruz sobre seus feitos políticos. O deputado havia conseguido liberação de verba pública para pavimentar uma estrada no município de Santa Cruz do Sul, sua terra natal. No entanto, ele disse que a obra não saía do papel porque os vereadores de oposição estavam criando empecilhos por questões políticas.

Nessa época, era comum os partidos comprarem espaço nas rádios para seus integrantes falarem o que bem quisessem. O microfone ficava aberto sem qualquer jornalista para fazer perguntas ou moderação. Depois de Euclydes criticar a oposição, ele deixou o estúdio, mas continuou no prédio da rádio.

Em seguida, o vereador Floriano Peixoto Karan Menezes (PTB), conhecido como Marechal, entrou no estúdio para se defender. Ele pegou o microfone e atacou Euclydes, chamando-o de “baixo” e lembrando aos ouvintes que o parlamentar era “suspeito de ter matado a esposa”. Euclydes não aguentou a acusação pública e invadiu o estúdio para tirar satisfação com o seu adversário. Os microfones transmitiram toda a confusão ao vivo.

O vereador Floriano Peixoto Karan Menezes — Foto: Foto de arquivo
O vereador Floriano Peixoto Karan Menezes — Foto: Foto de arquivo

Sem pestanejar, Marechal sacou uma arma calibre 32 e deu um tiro à queima-roupa no deputado. A bala varou a mão da vítima e se alojou no coração. Euclydes morreu nos estúdios da rádio da cidade em que construiu toda a sua base política. Pelo crime, o vereador Marechal foi condenado a seis anos e meio de prisão por homicídio simples. Ele morreu em 8 de abril de 2004 vítima de um tumor no cérebro.

Com a morte trágica de Euclydes, as investigações sobre o assassinato da sua esposa foram minguando. O desdém com o inquérito após o sepultamento do deputado reforçou a tese de que o assassino seria ele. A um jornalista, o delegado titular do caso defendeu categoricamente dez anos depois do crime que Euclydes matou Margit.

O comissário Alfredo Vitorino Vargas, conhecido como Sherlock, também deu declaração semelhante depois de se aposentar. Segundo os dois policiais, como o crime envolvia um deputado estadual de prestígio e havia muita repercussão, o caso nunca foi investigado como deveria. “Tinha pessoas de nome e com muito dinheiro no meio, além de políticos. Então todo mundo queria resolver o mistério para se promover. Quando eu chegava num lugar para investigar, já tinha estado lá 60 pessoas, estragando tudo. Aí fizeram uma polenta que se tornou impossível de resolver”, desabafou Sherlock, em 1972.

Sumiço do inquérito

Como o crime nunca foi esclarecido, a morte da socialite tornou-se um exemplo de impunidade no país. Para deixar a história ainda mais nebulosa, o inquérito com toda a investigação simplesmente desapareceu das gavetas da extinta Delegacia de Segurança Pessoal (DSP) de Porto Alegre em data imprecisa. Pelo menos é a resposta que a Polícia do Rio Grande do Sul dá aos jornalistas e pesquisadores que tentam acessar a investigação.

Numa tentativa de resgatar essa lacuna na crônica policial gaúcha, o jornalista Ricardo Düren investiga a morte de Margit há 15 anos. O resultado dessa pesquisa está no livro “O caso Kliemann e seus personagens misteriosos”, publicado pelo Clube de Autores, lançado recentemente e disponível no site da editora. Quando perguntado quem teria assassinado Margit, o autor arrisca um palpite: “Acho que foi o sobrinho dela. Mas minha mulher acredita que foi o marido”.

A capa do livro “O caso Kliemann e seus personagens misteriosos”, de Ricardo Düren — Foto: Reprodução
A capa do livro “O caso Kliemann e seus personagens misteriosos”, de Ricardo Düren — Foto: Reprodução
Mais recente Próxima Mãe de Isabella Nardoni fala em 'indignação' por atividades de Anna Jatobá fora da cadeia: 'Vida boa de luxo'