Vera Magalhães
PUBLICIDADE
Vera Magalhães

Os principais fatos da política, do Judiciário e da economia.

Informações da coluna

Vera Magalhães

Jornalista especializada na cobertura de poder desde 1993. É âncora do "Roda Viva", na TV Cultura, e comentarista na CBN.

Por

O discurso de Lula na abertura da Assembleia Geral da ONU foi praticamente impecável: teve como eixos grandes temas globais, como deve ser a preocupação do líder do país designado para abrir um evento dessa magnitude.

Não se perdeu em negacionismo nem picuinhas domésticas eivadas de ideologia barata, como Jair Bolsonaro fez nos últimos anos, embaraçando o Brasil.

Conseguiu ser inspirado e inspirador ao falar de temas que de fato são caros a Lula e têm lastro em sua história política e de vida, como combate à desigualdade em suas amplas manifestações e à fome, em particular. Foi ainda corajoso, ao colocar o dedo em várias feridas que mostram o porquê do enfraquecimento do multilateralismo do qual a ONU é o principal pilar.

O grande risco que havia, o de Lula repetir a formulação que imputa à Ucrânia igual responsabilidade numa guerra movida pela Rússia, não se concretizou: embora o presidente brasileiro não tenha condenado a invasão da Ucrânia pelo país comandado por Vladimir Putin, também não culpou a vítima dessa vez.

Os acenos a Cuba e ao Brics são pequenos "biscoitos" para a militância de esquerda, compreensíveis dado que o presidente acabou de visitar a ilha, inclusive.

Os maiores aplausos vieram justamente nos momentos em que Lula saudou a democracia e apontou os riscos a ela vindos de "aventureiros de extrema-direita", e naqueles em que pontuou suas diferenças em relação a Bolsonaro, ao dizer que o Brasil voltou -- seu slogan de governo.

Para além da retórica diplomática, na qual o presidente chegou perto de um 10, há, no entanto, que se cotejar a fala com a prática, seja no front interno, seja no tabuleiro global. E aí há algumas claras contradições a apontar.

A principal delas pode ser extraída justamente de um dos pontos altos do discurso, construído a muitas mãos e cuja versão final foi aprovada por Lula. No ponto em que ele diz que quando as instituições replicam desigualdades elas fazem parte do problema, e não da solução, querendo se referir a organismos multilaterais, Lula parece não se dar conta de que poderia perfeitamente estar falando do Supremo Tribunal Federal ou da Procuradoria-Geral da República, duas das mais importantes instituições brasileiras, para as quais ele está na iminência de fazer nomeações que, justamente, replicam desigualdades.

Ele até tentou mostrar avanços do seu governo na questão da equidade de gênero, ao falar da aprovação do projeto de lei que trata da paridade salarial entre homens e mulheres. Era um dos poucos ganchos domésticos num discurso voltado aos altofalantes mundiais.

Mas isso não diminui o retrocesso que será diminuir pela metade a presença feminina na mais alta corte de Justiça do Brasil, por uma decisão política que leva em conta apenas a circunstância de ter no STF ministros alinhados ideologica e juridicamente com o governante de turno.

Cobrar uma participação maior dos países pobres em instâncias como a própria ONU, o FMI e o Banco Mundial sem entender que negar essa participação a mulheres nas instâncias de decisão internas também é replicar uma desigualdade histórica e deletéria.

Outra contradição evidente se dá no campo dos compromissos e das cobranças feitos por ele na fala em relação às mudanças climáticas. Foi uma das partes mais bem construídas do discurso, que não só recoloca o Brasil entre os países comprometidos com os ODSs da Agenda 2030 como corretamente cobra dos países ricos que paguem pela conservação das florestas e demais biomas.

Mas qual a coerência que existe entre essa cobrança e a reafirmação das metas e a insistência em se abrir uma nova fronteira, na Amazônia, de exploração de petróleo, quando ele mesmo diz que a crise climática já está se mostrando em todo o seu poder de devastação e ninguém sabe se ainda será sustentável extrair petróleo em regiões isoladas como foi no outrora festejado pré-sal e como provavelmente seria na margem equatorial?

São só dois exemplos claros em que a retórica deveria inspirar as decisões de governo. Lula fez várias pontes com sua primeira vez na ONU, em 2003. Sabiamente, não ficou só no retrovisor e tratou de deixar claro no próprio discurso que o mundo mudou rápido demais. Acompanhar essas mudanças e a necessidade de reduzir as desigualdades que ele levou ao coração de sua fala são lições para que seu mandato não seja só uma "volta", verbo que ele adora conjugar, mas um novo começo.

Mais recente Próxima Vale-tudo eleitoral une de Lira ao PT