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Boa Viagem Nápoles

A Nápoles de Elena Ferrante: conheça o roteiro inspirado em 'A amiga genial'

Passeio pela cidade no sul da Itália leva a cenários dos livros e da série da HBO
Pintura simila a casa da personagem Lenu, da quadrilogia que começa com o livro 'A amiga genial', em Nápoles, Itália Foto: Giuseppe D'Anna / Divulgação
Pintura simila a casa da personagem Lenu, da quadrilogia que começa com o livro 'A amiga genial', em Nápoles, Itália Foto: Giuseppe D'Anna / Divulgação

NÁPOLES - Esqueça aquela Nápoles que os clichês consagraram, a do porto alegre, da tarantela e da pizza na calçada. A face cinza da cidade, com seus conjuntos habitacionais modestos, é o novo chamariz de turistas. É o ambiente que Elena Ferrante consagrou em sua quadrilogia best-seller que começa com "A amiga genial" e virou série na HBO. Leitores da autora cuja verdadeira identidade se mantém em segredo buscam conhecer o bairro que a inspirou, o Rione Luzzatti. Procuram pistas de Lila e Lenu, as amigas que encantam com a saga que começa nos anos 1950 e vem até os dias de hoje.

Elas moravam numa área pobre. Lá, ficava uma boa biblioteca, uma escola, uma padaria, uma loja de frios, uma praça e o terraço onde, na ficção, houve uma guerra de fogos de artifício. Este lugar existe. Sophia Seymour, inglesa radicada em Nápoles e jornalista do “The Guardian” e do “Lonely Planet”, criou um roteiro dedicado a essa história, que batizou de Looking for Lila (Procurando Lila). Parece o conto de João e Maria, em que os irmãos vão seguindo uma trilha de migalhas de pão. Os fãs de Ferrante cumprem um caminho de pistas deixadas pelo livro.

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Nesta peixaria no Borgo Sant'Antonio, em Nápoles, a mesma família vende bacalhau dessalgado há várias gerações Foto: Giuseppe D'Anna / Divulgação / HBO
Nesta peixaria no Borgo Sant'Antonio, em Nápoles, a mesma família vende bacalhau dessalgado há várias gerações Foto: Giuseppe D'Anna / Divulgação / HBO

O passeio começa a pé, fora do Rione, e será, a guia anuncia, pautado por trechos dos livros (de vez em quando, ela faz uma pausa para ler alguma passagem em voz alta). Mas não só isso. Sophia avisa que também apresentará os sabores típicos:

— Para participar do tour, é bom se preparar para comer bastante.

O ponto de partida é uma pequena lanchonete que poderia ser frequentada por Lenu e Nino no ensino médio. Ali, explica, “eles seriam fãs do baba au rum”. O doce é um pão de ló de proporções agigantadas regado com a bebida.

De lá, o grupo se dirige a uma peixaria, no Borgo Sant’Antonio. Antes de entrar, avistamos um pequeno santuário cercado de vidro e de grades, preso a um muro, feito com o patrocínio de católicos de algumas posses. Na mesma calçada fica a pequena peixaria, onde a mesma família vende bacalhau dessalgado há várias gerações. Enzo, o peixeiro, serve pedacinhos frescos do bacalhau, com generosas doses de limão perfumado espremido. A gentileza italiana do Sul e o calor das relações fazem parte desse cardápio. O ambiente, limpíssimo, conta com uma balança centenária e fotos dos antepassados enquadradas na parede.

O passeio continua até uma feira que se estende pelas ruelas estreitas da região. Na entrada, fica um quiosque antigo. Nesse lugar é vendida a água mineral sulfurosa Telese, usada tradicionalmente para acalmar males digestivos. A fonte foi descoberta em 1349, perto do Vesúvio. Por causa de sua composição, a água tem gás. O dono do comércio prepara um drinque que “as mães de Lenu e Lila as fariam beber se estivessem com algum mal-estar”. A mistura de limonada com água mineral sulfurosa tem cheiro e gosto de enxofre, mas encare como “a madeleine de Ferrante”.

Nos embrenhamos pela feira. Ela começa com roupas e sapatos baratos, vindos da China, e segue com o contrabando de cigarros. Mas logo surgem os legumes e as frutas regionais. Pimentões, limões e, se for no verão, os pêssegos perfumados. Sophia apresenta comerciantes tradicionais, mostra que eles moram ali mesmo, no segundo andar dos pequenos armazéns. Até que alcançamos uma pequena porta, um lugar escondido. A entrada, sem graça, não entrega nada das delícias produzidas na Antica Freselleria di Paolo, a pequena fábrica de gestão familiar que fornece as bruschettas para os restaurantes mais famosos de Nápoles.

Eles produzem mais de oito mil pães por dia. É, portanto, hora de parar para provar uma bruschetta com tomate. Não há, aliás, tomates mais saborosos e doces do que os de lá, cultivados na subida do Vesúvio. Uma mesa de mármore instalada entre os fornos recebe os pratinhos e a conversa com os rapazes que gerenciam o negócio herdado do bisavô também vale a parada. Chega a hora de fechar esta etapa do tour com uma visita a Pascoale. Ele ó responsável por pintar todos os cartazes de preços da feira. As placas são feitas à mão. Quem quiser uma com o seu nome pode levar, custa €5 e é uma lembrança charmosa.

(A jornalista Patrícia Kogut conta mais detalhes do roteiro no quadro Boa Viagem, do podcast 'Ao ponto'. Ouça abaixo)

Atrás de pistas sobre a autora misteriosa

Teraços dos prédios típicos do bairro de Rione Luzzatti e um dos pátios internos que ligam as contruções e servem de cenário para as histórias de Ferrante em Nápoles Foto: Giuseppe D'Anna / Divulgação / HBO
Teraços dos prédios típicos do bairro de Rione Luzzatti e um dos pátios internos que ligam as contruções e servem de cenário para as histórias de Ferrante em Nápoles Foto: Giuseppe D'Anna / Divulgação / HBO

De carro, o grupo se dirige finalmente ao Rione Luzzatti. É o coração do território de Lila e Lenu. A guia explica que, quando foi construído, no período fascista, o bairro se destinava a famílias de classe média. Era chamado por alguns de “bairro francês”, por causa de sua arquitetura. Ficava longe do centro. Os livros mencionam um “estradão”. Trata-se de uma rua movimentada, de mão dupla, que atravessa o lugar e hoje tem um trânsito intenso. Perto dali fica o túnel, por onde as personagens fizeram sua primeira grande aventura em dupla, uma excursão para tentar conhecer a praia. O passeio foi frustrado, e Mar Tirreno fica distante dali. Na época em que a ação dos primeiros livros se desenrola, o Rione era isolado e cercado de mato e de terrenos baldios. Aos poucos, foi virando uma zona industrial. O túnel, hoje, é um lugar muito movimentado, onde duas meninas dificilmente caminhariam com tranquilidade. O fluxo de carros é tal que a prefeitura separou um único cantinho que funciona de passagem para pedestres. Mesmo assim, pouca gente se arrisca por ali.

A emoção de “encontrar” Elena Ferrante é grande. A presença dos romances está em pinturas dos personagens nos muros e em algumas janelas. Entramos na Biblioteca Andreoli, tão presente na obra. Ali fica uma exposição dedicada à tetralogia que tornou o bairro célebre. O muro externo do prédio ostenta uma foto de Dora Romano, atriz que interpreta a professora Olivero na série da HBO dirigida por Saverio Costanzo. A segunda temporada está sendo gravada numa cidade cenográfica que reproduz o bairro, em Caserta, perto de Nápoles.

A biblioteca é cheia de velhas estantes com portas de vidro, com volumes que, sugere a guia, estavam disponíveis ali quando a trama de “A amiga genial” se desenrola. Perguntados se sabem qual é a verdadeira identidade de Ferrante, os funcionários desconversam, fazendo mistério. É voz corrente que Olivero foi inspirada num professor adorado pelas crianças locais nos anos 1950 e 60.

A pé, seguimos até a praça e paramos para tomar café num bar. Maurizio Pagano se junta ao grupo. Escritor, nascido no Rione Luzzatti, ele é autor (em parceria com Francesco Russo) de um livro sobre a geografia de Elena Ferrante (à venda na Amazon). Ele fornece explicações históricas sobre o lugar e nos leva para conhecer os prédios.

Há um comércio local modesto, e crianças brincando na rua. Passa um cortejo fúnebre, que se dirige à igreja, outro importante cenário na literatura. Reina um clima cordial de subúrbio, todos se conhecem e se cumprimentam. Cada edifício tem quatro andares e uma espécie de pátio central os separa. É nesse lugar que Lila e Lenu se encontravam para conversar e brincar. Maurizio aponta para um vão gradeado que leva ao subsolo dos prédios. É onde Lila atirou a boneca da amiga. Ao ver de perto essas construções, também fica mais fácil imaginar a passagem em que o pai de Lila, enfurecido, a espancou e atirou pela janela. Como foi que ela escapou viva dessa agressão tão violenta? É que a altura é a de um andar, insuficiente para uma queda fatal.

Há desenhos das meninas em muitas paredes, e os turistas fazem selfies à vontade. Finalmente, subimos pelas escadas — outro cenário de passagens marcantes da tetralogia napolitana — para chegarmos ao terraço. Teria sido num lugar como esse a festa de Ano Novo da família Caracci. Para quem não leu as mais de mil páginas, foi um grande acontecimento que começou alegre e terminou mal. A festa degringolou numa guerra de fogos de artifício. Como quase tudo no bairro, acabou em violência. Nessa hora, Sophia lê em voz alta um trecho do primeiro volume: “Como em todos os anos, os irmãos iam para cima e para baixo em sua Millecento, o porta-malas cheios dos explosivos que, na noite do Ano Novo, matariam passarinhos, assustariam cães, gatos, ratos, fariam tremer os prédios do subsolo até a última laje.”

Para os leitores de “A amiga genial”, “História do novo sobrenome”, “História de quem foge e de quem fica” e “História da menina perdida”, este périplo é imperdível e faz sonhar. É como passear num lugar que não existe.

LOOKING FOR LILA: A inglesa Sophie Seymour oferece dois tipos de passeios guiados, para até cinco pessoas, por Nápoles. Um sobre aspectos gerais da cidade, como história antiga e máfia (€ 250 por pessoa, três horas e meia de duração); o outro mais focado nos livros de Elena Ferrante (€ 270 por pessoa, com quatro horas de duração), incluindo endereços citados nos textos. As reservas podem ser feitas pelo e-mail [email protected] ou pelo telefone 39 389 846 3510 (com WhatsApp). lookingforlila.com

Patrícia Kogut viajou a convite da HBO