Boa Viagem

Nos passos de um 'turista aprendiz': as viagens de Mário de Andrade pelo Brasil

Como as andanças do escritor, da Amazônia ao Triângulo Mineiro, o ajudaram a descobrir o país de Macunaíma
O escritor Mário de Andrade posa na praia do Rio Caripi, nos arredores de Belém do Pará, em maio de 1927, durante a viagem de expedição etnográfica que realizou pela Região Norte do Brasil Foto: Instituto de Estudos Brasileiros / USP / Divulgação
O escritor Mário de Andrade posa na praia do Rio Caripi, nos arredores de Belém do Pará, em maio de 1927, durante a viagem de expedição etnográfica que realizou pela Região Norte do Brasil Foto: Instituto de Estudos Brasileiros / USP / Divulgação

"Não fui feito pra viajar, bolas", dizia Mário de Andrade, aparentemente mais decidido a escrever do que a viajar. Seu destino era viver no consolo dos livros, na “sua casa de verdade”, em São Paulo.

— Mário de Andrade sempre viajou em roda de seus livros e através deles, território seguro e confortável — conta Tatiana Longo Figueiredo, que em 2015 lançou com Telê Ancona Lopez uma reedição bancada por USP e Iphan de “O turista aprendiz”, com registros das andanças do autor.

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Publicado originalmente em 1976 com textos reunidos por Telê, o livro mostra que , se o turista era aprendiz, tinha sanha de aprender. Composto de fragmentos e crônicas das viagens à Amazônia e ao Nordeste, é considerado um dos mais importantes de relatos em áreas remotas do Brasil.

O paulistano desvairado isolava-se na chácara do fazendeiro Pio Lourenço Corrêa — grande amigo a quem o escritor chamava de tio — em Araraquara (SP) para finalizar textos. Viajou para Minas Gerais, onde “descobriu” Aleijadinho e o barroco em 1919, e também para Águas de Lindóia e Araxá, onde curava as dores que cancelavam seus dias.

Explorador modernista: Mário de Andrade posa com flores típicas da Amazônia em Assacaio, localidade próxima às fronteiras com a Colômbia e com o Peru, em 1927 Foto: Instituto de Estudos Brasileiros / USP / Divulgação
Explorador modernista: Mário de Andrade posa com flores típicas da Amazônia em Assacaio, localidade próxima às fronteiras com a Colômbia e com o Peru, em 1927 Foto: Instituto de Estudos Brasileiros / USP / Divulgação

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Em suas viagens mais longas, esteve na Amazônia até dizer chega e viajou comprido pelo Nordeste com sua “Codaque” (e Luís da Câmara Cascudo) a tiracolo. Empanturrou-se de Brasil, viu piranha espiar na linha d’água e floresta de cabeça para baixo em igarapés.

Apesar de ser “trezentos, trezentos-e-cincoenta” num só, Mário não deu conta do encontro do rio com o mar. Nada do que se via cabia nos olhos. “Não tem nada no mundo mais sublime”, registrou em seu diário. Parecia literatura, mas era a foz do Amazonas que se “cartãopostalizava” diante dele.

— Em seus relatos de viajante, Mário busca partilhar sensações, gostos, cheiros e faz o leitor saborear cada fruta, escutar cada “causo” — lembra Figueiredo.

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E se não tinha nada para ver, sonhava, como na amazonense Itacoatiara, a cidade dos “palácios triangulares” e das ruas líquidas, onde moças iam em botos e homens, em peixes-boi.

De Curitiba a Estocolmo, ele tinha o mundo em casa, em forma de postais enviados por amigos. Só lamentou não ter ido a Paris, menos por vontade do que pela cobrança por nunca ter pisado na Europa.

Veja por onde Mário de Andrade andou.

Minas Gerais (1924)

São João del-Rei, Tiradentes, Congonhas e Ouro Preto foram algumas cidades na caravana da “viagem de descoberta do Brasil”. Eram Mário, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e o filho Nonê, René Thiollier, a dama do café Dona Olívia Guedes Penteado e seu genro Godofredo da Silva Telles, e Blaise Cendrars, o poeta suíço que encheu os modernistas de novidades europeias e destacou a brasilidade autêntica que a gente precisava no próprio país.

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“Minas coincidiu comigo”, confessaria Mário à poetisa Henriqueta Lisboa.

A viagem o inspiraria no poema “Noturno de Belo Horizonte” e na ideia de criar um órgão de preservação do patrimônio nacional, já abandonado naquela época. As andanças marcariam também Oswald, em seu livro de estreia, “Pau-Brasil”.

Amazônia (1927)

Acompanhado de Dulce, filha de Tarsila do Amaral, Dona Olívia e a sobrinha Margarida, Mário fez uma “bonitíssima duma viagem” de três meses.

Seguiu de trem para o Rio de Janeiro, tomou barcos até Belém, cruzou o Amazonas, atravessou para Iquitos, a capital da Amazônia peruana, sapateou trilhos na ferrovia Madeira-Mamoré e foi bater lá na Bolívia para, na volta, passar pela Ilha de Marajó, no Pará.

Mário de Andrade posa sentado em trilhos da ferrovia Madeira-Mamoré, em Porto Velho, Rondônia, em julho de 1927 Foto: Instituto de Estudos Brasileiros / USP / Divulgação
Mário de Andrade posa sentado em trilhos da ferrovia Madeira-Mamoré, em Porto Velho, Rondônia, em julho de 1927 Foto: Instituto de Estudos Brasileiros / USP / Divulgação

“Não sei que mais coisas bonitas enxergarei por este mundo de águas”, escreveu ao amigo Manuel Bandeira. A pesquisa feita nessa viagem daria outros rumos a seu clássico “Macunaíma”, já em gestação.

— A rapsódia, depois de passar por algumas versões, recebeu outro final depois da experiência de Mário ao vislumbrar o céu do Hemisfério Norte — conta Tatiana.

Nordeste (1928)

“Ah, seu Carlos, que viajão”, descreveu Mário em carta para Drummond.

A bordo do vapor Manaus, em dezembro, saiu da Guanabara, navegou até Pernambuco e seguiu sertão adentro pela paraibana Catolé do Rocha e pelas potiguares Seridó e Parelhas.

Esqueceu as saudades do “Sul”, devorando dunas de caju, se emocionou com o coco de Chico Antônio, fechou o corpo num catimbó em Natal, e, procurando maracatu, teve um porre de éter no carnaval do Recife.

De volta em fevereiro de 1929, Mário trouxe crenças, danças e feitiçaria que dariam corpo a estudos etnográficos.

Turismo de saúde

Saúde, dinheiro e viagens eram algumas das fragilidades de Mário, que dizia não saber ser doente (“a doença cansa-me”). E, quando se cansava, viajava.

Águas de Lindóia, estância hidromineral no interior paulista, lhe trazia os dias de volta, como a ida para tratar seu “mal dos rins”. Araxá, “água e mais água” no Triângulo Mineiro, também lhe curava as dores.

Em Araraquara, fugia para inexistir (e comer mangas) na chácara Sapucaia, ao lado do “tio” Pio e de sua esposa Zulmira, essa sim, sua prima. Era ali que Mário se refugiava para descansar das próprias viagens e onde acabaria concluindo sua obra mais famosa, em meio a um mundo de cigarras, murtas e magnólias.

Ai que preguiça.