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Por Cláudia Meneses

Uma forma de produção que ultrapassa dois mil anos será celebrada com uma grande festa no Alentejo, o grande guardião do vinho de talha em Portugal. O Amphora Wine Day, considerado um dos maiores eventos do enoturismo daquele país, será em 11 de novembro, quando se comemora o dia de são Martinho. Estarão presentes cerca de 50 produtores de diferentes países, entre eles: os portugueses Herdade do Rocim, José de Sousa, Esporão, Cortes de Cima, Adega Marel e XXVI Talhas; Lagazi Winery (Geórgia); Castelo Vichiomaggio (Itália) e Sébastien David (França). Ano passado, 1.500 visitantes foram nessa data à bela Herdade do Rocim, em Cuba.

— O vinho de talha é uma tradição antiga, sobretudo no Sul de Portugal, no Alentejo. O país destaca-se dos demais países produtores pela sua enorme diversidade de terroirs, de uvas autóctones e também por manter muitas das tradições, como a fermentação em lagares com pisa a pé. Elas estão cada vez mais a serem recuperadas e são um marco importante da antiguidade e especificidade da produção de vinhos em Portugal — explica Frederico Falcão, presidente da ViniPortugal.

O evento será na Herdade do Rocim, que produz o vinho de talha e defende a tradição — Foto: Divulgação
O evento será na Herdade do Rocim, que produz o vinho de talha e defende a tradição — Foto: Divulgação

jornalista e crítico de vinhos Luís Lopes explica que o evento, que está na sexta edição, é pioneiro em Portugal:

— O Amphora Wine Day cativa anualmente um número muito importante de apreciadores. Todos os anos, aparecem novos produtores “de talha” no Alentejo, e este evento é a forma mais fácil e eficaz de se mostrarem ao público consumidor.

Na data, Lopes vai conduzir provas comentadas, bem como as amphora wine talks:

— Espero que venham a ser um momento importante do evento Amphora Wine Day, aqui centrado na partilha de experiência e conhecimento entre produtores de vinhos que, em várias partes do mundo, usam recipientes de argila de várias formas, tipos e tamanhos, para fazer vinhos diferenciadores.

Além das provas e bate-papos, haverá comidas regionais à venda. Uma apresentação do cante alentejano, um canto coral com duas vozes solistas que alternam com um coro. Essa manifestação cultural é patrimônio mundial imaterial da humanidade desde 2014.

Barraca com comidas regionais no Amphora Wine Day — Foto: Divulgação
Barraca com comidas regionais no Amphora Wine Day — Foto: Divulgação

Técnica trazida pelos romanos

O Alentejo preserva ainda hoje a técnica de vinificação trazida ao país ibérico pelos romanos, com poucas mudanças com relação ao passado. Outro local que mantém essa forma de produção com ânfora com pouca ou nenhuma intervenção enológica é a Geórgia.

— A manutenção do vinho de talha na cultura do Alentejo não se deve aos produtores profissionais, mas sim ao povo alentejano. Foram as populações que mantiveram vivos a arte e o conhecimento de fazer vinho de talha em casa, para beber em família e com os amigos.

Após a vindima, as uvas são esmagadas e colocadas em talhas de barro, onde ocorre espontaneamente a fermentação. As cascas que sobem à superfície e formam uma capa sólida são mexidas com um rodo de madeira. Com essa movimentação, o vinho ganha mais cor, aromas e sabores. Quando a fermentação termina, essas massas acabam ficando no fundo do recipiente.

Uvas e engaços são colocados em talha para a produção de vinho tinto no Alentejo — Foto: Divulgação / CVRA
Uvas e engaços são colocados em talha para a produção de vinho tinto no Alentejo — Foto: Divulgação / CVRA

Abertura das talhas no dia do santo

Nas talhas, perto da base, existe um orifício onde é instalada uma torneira. O vinho é filtrado por essa massa de películas de uva e sai puro e límpido. Segundo a tradição, a abertura das talhas ocorre exatamente no dia 11 de novembro, dia de são Martinho:

— É uma data dedicada à festa, ao convívio entre família, amigos, vizinhos. Quem tem vinhos de talha abre as portas de sua casa ou adega, coloca petiscos na mesa, e “abre” a primeira talha. Abrir a talha significa tirar a rolha que existe na base da ânfora, deixando o vinho correr livremente para um alguidar de barro. E dali é retirado com um jarro e levado à mesa para ser apreciado e bebido com os petiscos tradicionais alentejanos, sobretudo queijos de cabra e ovelha e carnes e enchidos à base de porco.

Abertura de talha no dia de são Martinho — Foto: Divulgação
Abertura de talha no dia de são Martinho — Foto: Divulgação

No Amphora Wine Day, as talhas serão abertas às 18h. Lopes diz que a talha e o dia de são Martinho, para o alentejano, podem ser comparados à corrida de cavalos Palio para os italianos de Siena.

— Só que a talha no Alentejo é muito mais antiga — enfatiza o especialista em vinhos.

A Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA) explica que a região detém a única certificação mundial de “vinho de amphora”, o vinho DOC Talha Alentejo. A prefeitura de Vidigueira defende a candidatura do vinho de talha a patrimônio cultural imaterial da Unesco:

— O vinho de talha e a própria palavra “talha” não podem ser dissociados do Alentejo. Foi nesta região que a tradição da talha nasceu, há mais de dois mil anos, e ali permaneceu viva, nas aldeias e vilas alentejanas, até hoje. Em grande parte das casas alentejanas, ainda existem talhas prontas para fazer vinho. Também por isso a designação vinho de talha está protegida na lei portuguesa, só podendo ser aplicada a vinho com Denominação de Origem Alentejo. A história, a cultura, o impacto social do vinho de talha do Alentejo são ímpares no mundo, fazendo por isso todo o sentido a sua candidatura a patrimônio da Humanidade — explica Luís Lopes.

Talhas com vinhos no Alentejo — Foto: Divulgação
Talhas com vinhos no Alentejo — Foto: Divulgação

Existe uma rota oficial do vinho de Talha, criada pela Câmara Municipal da Vidigueira em 2021. Em razão da procura, outros municípios alentejanos também tem roteiros com produtores: Aljustrel, Almodôvar, Alvito, Arronches, Borba, Beja, Campo Maior, Cuba, Elvas, Estremoz, Évora, Ferreira do Alentejo, Marvão, Mora, Moura, Redondo, Reguengos de Monsaraz, Santiago do Cacém, Serpa e Viana do Alentejo.

Revestimento da talha influi no sabor

Segundo Luís Lopes, os vinhos de talha certificados podem ter características distintas, dependendo do produtor ou da casa que os fez. Uma coisa têm em comum: brancos e tintos são obrigados, por lei, a manter as cascas das uvas na talha, pelo menos, até 11 de novembro:

— Isso desde logo imprime aos vinhos características de cor (no caso dos brancos, sobretudo), aroma e sabor distintos. Mas, em muitos casos, as talhas só são abertas em fevereiro ou março, acentuando essas características. O revestimento interior da talha, barrada com uma mistura de cera de abelha e resina de pinheiro, também pode ser fator diferenciador no aroma e sabor, não importa se esse revestimento, chamado pez, tenha sido feito há vários anos ou há pouco tempo. Geralmente, são vinhos intensos, mas ao mesmo tempo bastante suaves e equilibrados.

Degustação de vinhos de talha no Amphora Wine Day — Foto: Divulgação
Degustação de vinhos de talha no Amphora Wine Day — Foto: Divulgação

Luís Lopes detalha que são quase sempre feitos com as uvas tradicionais do Alentejo, frequentemente de vinhas velhas. As variedades brancas costumam ser Antão Vaz, Rabo de Ovelha, Diagalves, Manteúdo e Arinto. Já tintas podem ser Trincadeira, Moreto, Castelão, Aragonez e Alicante Bouschet.

— A predominância de branco ou tinto varia muito com a região do Alentejo. Por exemplo, na Vidigueira, historicamente, imperavam os brancos, enquanto na Granja-Amareleja eram os tintos. E existe ainda uma variante tradicional, feita com mistura de uvas brancas e tintas, chamada petroleiro devido à cor de petróleo do vinho que origina.

Interesse e procura crescentes

Visitantes e produtores no Amphora Wine Day — Foto: Divulgação
Visitantes e produtores no Amphora Wine Day — Foto: Divulgação

O consumo do vinho de talha ainda é pequeno. Lopes detalha que se trata de um nicho de mercado, formado por um público que procura vinhos singulares, raros, diferenciadores, ainda que não unânimes.

— São também vinhos que, na maior parte dos casos, necessitam de ser explicados e contextualizados, vendidos sobretudo em restaurantes de topo, com serviço de sommelier. Dito isto, o interesse e a procura são crescentes e notórios, como se vê pelo cada vez maior número de vinhos Alentejo Talha colocados no mercado.

Frederico Falcão ressalta que a produção desses rótulos também é baixa, mas que claramente está aumentando. Mas essa elevação é limitada pela pequena quantidade de talhas ou ânforas disponíveis.

— Ainda que a produção, sob o ponto de vista de quantidade, seja pequena, esses vinhos atingem muito reconhecimento por parte do público, assumindo assim uma forte importância em termos de imagem.

Os ingressos para o Amphora Wine Day podem ser comprados no site ticketline por 19,50 euros. Também é possível adquirir as entradas na bilheteira no dia do evento por 22,50 euros.

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